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depressão espiritual
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Título Original:

Spiritual Depression — its causes and cure

Editora:

Pickering & Inglis Ltd.

Copyright:

Mrs Bethan Lloyd-Jones

Tradução do Inglês:

Inge Koenig

Primeira Edição em Português;

1987

Capa:

Karen Abel

Composição:

Intertexto— Linotipadora S/C Ltda.

Impressão:

LIS Gráfica e Editora Ltda.

 

 

 


ÍNDICE

PREFÁCIO.. 4

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS. 4

2. O VERDADEIRO FUNDAMENTO.. 9

3. VEJO OS HOMENS COMO ÁRVORES QUE ANDAM... 13

4. MENTE, CORAÇÃO E VONTADE.. 18

5. AQUELE PECADO.. 22

6. REMORSOS INÚTEIS. 26

7. MEDO DO FUTURO.. 31

8. EMOÇÕES. 36

9. TRABALHADORES NA VINHA.. 40

10. ONDE ESTÁ A SUA FÉ?. 44

11. OLHANDO PARA AS ONDAS. 49

12. O ESPÍRITO DE ESCRAVIDÃO.. 53

13. DOUTRINA FALSA.. 58

14. CANSADO DE FAZER O BEM... 62

15. DISCIPLINA.. 66

16. PROVAÇÕES. 71

17. CORREÇÃO.. 76

18. NO "GINÁSIO" DE DEUS. 80

19. A PAZ DE DEUS. 85

20. APRENDENDO A SER CONTENTE.. 89

21. A CURA FINAL.. 93

SOBRE O LIVRO.. 98

SOBRE O AUTOR.. 98

 

 


PREFÁCIO

Estes sermões foram pregados numa série de domingos con­secutivos na Capela de Westminster, em Londres, e estão sendo publicados virtualmente na forma como foram pregados.

A necessidade destes sermões nasceu como resultado da expe­riência pastoral, e estão agora sendo publicados em forma de livro atendendo ao pedido de grande número de pessoas.

Eu creio que a maior necessidade atual é de uma Igreja rea­vivada e triunfante, e portanto, o assunto tratado nestes sermões é da máxima importância.  Cristãos  deprimidos  constituem uma, recomendação muito pobre para a fé cristã; e não há qualquer dúvida que o regozijo exuberante dos cristãos primitivos foi um dos fatores mais poderosos na expansão do cristianismo.

Este estudo de forma alguma esgota o assunto. Tentei tratar daquelas causas que descobri serem as mais comuns desse problema. Em vários aspectos (por exemplo, o relacionamento entre o físico, o psicológico e espiritual), eu gostaria de ter tratado do problema de maneira mais completa, porém não foi possível fazer isso num sermão. Em todo caso, sermões não visam os "especialistas", e sim o povo comum,  principalmente  aqueles  em necessidade de ajuda.

Minha oração é que Deus use estas mensagens para abençoar tais pessoas.

Os que forem abençoados por este livro, desejarão se unir a mim em agradecimento à Sra. Hutchings que transcreveu os ser­mões, e à minha esposa que se encarregou da revisão, leitura de provas, correções, etc.

D. M. Lloyd-Jones Westminster Chapel Setembro de 1964

 

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS

"Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas em mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei na salvação da sua presença". Salmo 42:5

"Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim? espera em Deus, pois ainda o louvarei. Ele ê a salvação da minha face, e o meu Deus". Salmo 42:11

A descrição mais simples do livro dos Salmos é que ele era o livro inspirado de oração e louvor de Israel. Contém a revelação da verdade, não de forma abstrata, mas em termos de experiência humana. A verdade revelada está imbuída nas emoções, anseios e sofrimentos do povo de Deus pelas circunstâncias que tiveram de enfrentar.

Devido isso ser uma descrição muito fiel dos Salmos, eles sempre têm sido uma fonte de conforto e encorajamento para o povo de Deus através dos séculos — tanto para os filhos de Israel como para a Igreja Cristã.

Aqui podemos observar almas nobres lutando com seus pro­blemas e consigo mesmas. Falam consigo mesmas e às suas almas, descobrindo seus corações, analisando seus problemas, censurando e animando a si mesmas. Às vezes estão animadas, outras vezes deprimidas, mas sempre sinceras consigo mesmas. É por isso que são de tanto valor para nós, se também formos sinceros conosco mesmos.

Neste salmo (42) que pretendemos considerar, o salmista está infeliz e perturbado, e por isso desabafa nestas dramáticas palavras: "Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas em mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei na salvação da sua presença".

Esta declaração, encontrada duas vezes neste salmo, é também repetida no salmo seguinte. Alguns consideram o Salmo 43 como parte do Salmo 42, e não um salmo separado. É algo que não podemos saber, e realmente não é importante, mas encontramos essa declaração em ambos os Salmos, pois está repetida no fim do Salmo 43.

O salmista está compartilhando sua perturbação, a infelicidade de sua alma, e as circunstâncias que estava atravessando quando escreveu estas palavras. Ele nos conta o motivo da sua perturbação. Provavelmente naquele período ele foi impedido de se unir aos outros em adoração na casa de Deus. Mas não só isso: ele estava claramente sendo atacado por certos inimigos. Havia pessoas que estavam fazendo todo o possível para deprimi-lo, e ele relata isso. Contudo, estamos interessados aqui particularmente na maneira que ele enfrenta a situação e pela qual trata consigo mesmo.

Nosso assunto, em outras palavras, é o que poderíamos des­crever como "depressão espiritual", as suas causas e a maneira como deve ser tratada. É interessante notar a frequência com que este assunto é tratado nas Escrituras. Isso nos leva à conclusão que é um problema muito comum, e que parece ter afligido o povo de Deus desde o princípio, pois tanto o Velho como o Novo Testamento o descrevem e o tratam demoradamente. Isso, por si só, seria razão suficiente para trazê-lo à sua atenção, mas eu também o faço porque parece ser um problema que está afligindo o povo de Deus de forma particular nos dias atuais.

Existem muitas razões para isso. Uma das maiores, sem dú­vida, são os eventos terríveis que enfrentamos nesta geração: as duas grandes guerras, e os distúrbios que resultaram delas. Certa­mente não é a única razão, mas não tenho dúvida que ela é parcialmente responsável. Entretanto, qualquer que seja a razão, o fato é que existem muitos cristãos que dão a impressão de serem infelizes. Estão abatidos, suas almas estão perturbadas dentro deles, e esta é a razão porque resolvi trazer este assunto à sua atenção.

Para fazer uma análise a fundo deste tema, precisamos pros­seguir ao longo de duas linhas de pensamento. Primeiro, precisa­mos ver o que a Bíblia ensina sobre o assunto, e então vamos examinar alguns exemplos ou ilustrações notáveis deste problema na Bíblia, e observar como as pessoas envolvidas agiram, e como Deus tratou com elas. Esta é uma boa maneira de enfrentar qual­quer problema na vida espiritual. É sempre bom começar com a Bíblia, onde encontramos ensinamentos claros sobre todo e qualquer problema, e depois examinar exemplos e ilustrações oferecidos pela mesma fonte.

Ambos os métodos podem ajudar-nos muito; e eu gostaria de enfatizar a importância de seguir tanto um como o outro. Há pessoas que só se interessam pelos exemplos, as histórias; mas se não tivermos o cuidado de captar os princípios ilustrados pelas histórias, provavelmente acabaremos por agravar nossa condição, e ainda que possamos ganhar muito através de exemplos e ilus­trações, é imprescindível que primeiro busquemos os princípios. Muitas pessoas hoje têm problemas porque, em certo sentido, estão vivendo das experiências de outros, ou cobiçando a experiência de outros; e é porque estão sempre olhando para outras pessoas e suas histórias em vez de primeiro captarem os princípios, que tantas vezes se desviam. Nosso conhecimento da Bíblia devia ter nos prevenido e protegido de tal perigo, pois invariavelmente faz ambas as coisas, como veremos em nossa discussão desse assunto. Existe este grande ensino doutrinário, claro e simples, e além disso Deus em Sua graça tem acrescentado as ilustrações para que pos­samos ver esses grandes princípios colocados em prática.

Eu nem preciso explicar porque considero importante que examinemos esta questão. Eu o faço, em parte, por aqueles que estão nesta condição, para que possam ser libertos de sua infe­licidade, inquietação, desconforto e tensão, esta perturbação que é descrita com tanta exatidão pelo salmista neste salmo. É muito triste saber que há cristãos que vivem a maior parte de suas vidas neste mundo em tal situação. Não significa que não são cristãos, mas significa que estão perdendo muito, perdendo tanta coisa importante que exige um exame do problema de depressão espiri­tual em toda a sua extensão, conforme apresentado neste salmo, nem que seja somente para o bem deles.

Mas há uma outra razão e mais importante: devemos enfren­tar este problema por amor ao reino de Deus, e para a glória de Deus. De certa forma, um cristão deprimido é uma contradição de termos, e é uma péssima recomendação do evangelho. Vivemos numa época pragmática. As pessoas hoje em dia não estão prima­riamente interessadas na verdade, e sim em resultados. Sua per­gunta sempre é: Isso funciona? Estão freneticamente buscando alguma coisa que possa ajudá-las. Nós cremos que a obra de Deus, a ampliação do Seu reino, é realizada em parte por Seu povo, e sabemos que, no curso da história da Igreja, Deus frequentemente realizou coisas notáveis através da vida de alguns cristãos muito simples e comuns. Por conseguinte, é muito importante que sejamos libertos de uma condição que dê às pessoas que nos observam a impressão que ser cristão significa ser infeliz, triste, mórbido, e que um cristão é alguém que "despreza os prazeres e vive dias laboriosos". Na verdade, há muitos que apresentam isso como razão para não serem cristãos e para desistirem de qualquer inte­resse que possam ter experimentado pela fé cristã. Dizem: "Veja esses cristãos, olha a impressão que eles dão!" E gostam de nos comparar com as pessoas do mundo — gente que parece muito entusiasmada pelas coisas em que acredita, quaisquer que elas sejam. Essa gente grita e torce nos campos de futebol, comenta os filmes que viu, está cheia de vibração e quer que todos saibam disso. Em contraste, muitas vezes os cristãos parecem estar em perpétua depressão, com uma aparência de infelicidade, falta de liberdade e ausência de alegria. Não há dúvida que esta é a razão principal porque tantas pessoas deixaram de mostrar interesse pelo cristianismo. E, para ser franco, essa atitude de certa forma é justificada, e temos que admitir que suas críticas têm razão de ser. Portanto, é necessário, não só por amor a nós mesmo, mas por amor ao reino de Deus, e pela glória do Cristo em quem confiamos, representar a Ele e Sua causa, Sua mensagem e Seu poder de tal maneira que homens e mulheres, em vez de se oporem, sintam-se atraídos e persuadidos ao nos observarem, sejam quais forem nossas circunstâncias e nossa situação. Precisamos viver de tal forma que eles sejam compelidos a dizer: "oxalá eu pudesse ser assim, oxalá eu pudesse viver neste mundo como essa pessoa vive!". Mas é óbvio que se vivermos em depressão, jamais nossa vida terá esse efeito sobre os outros.

Por enquanto quero abordar este assunto de forma geral. Quero examinar e considerar as causas gerais, e também avaliar a maneira que devemos tratar do problema em nós mesmos, se estamos sofrendo dele. Depois dessas considerações gerais, esta­remos em condições de examinar o problema de maneira mais detalhada, e quero enfatizar a importância de fazer isso. Se exami­narmos as obras e os escritos de homens famosos na história da Igreja que trataram de"ste problema específico, vamos descobrir que invariavelmente abordavam o assunto dessa forma. Eu sei que não é assim que se faz hoje em dia. Estamos sempre com pressa e queremos tudo instantaneamente. Achamos que toda verdade pode ser apresentada em poucos minutos. Mas o fato é que isso não é possível; e a razão por que tantos hoje em dia estão vivendo uma vida cristã superficial, é que não estão dispostos a tomar tempo para se examinarem a si mesmos.

Vou usar uma ilustração. Muitas vezes ouvimos falar de pes­soas que têm dificuldade em seguir um tratamento prescrito por um médico. Elas vão ao médico e recebem certas instruções. Então vão para casa certas de que sabem exatamente o que fazer. Mas quando começam a observar o tratamento, descobrem que as instruções do médico não foram suficientemente detalhadas. Ele lhes dera instruções gerais, sem se preocupar em detalhar essas instruções. Sentem-se então confusas, sem saberem o que fazer e sem se lembrarem exatamente como o tratamento deve ser observado. O mesmo se aplica ao ensino — razão porque o professor sábio apresenta primeiro os princípios gerais, mas nunca se esquece de explicá-los depois em detalhe. Declarações gerais não são suficientes em si mesmas — é preciso que sejam depois expostas de maneira específica e detalhada. Por enquanto, todavia, vamos  tratar do  quadro geral.

Antes de tudo, então, vamos examinar o problema. Seria impossível encontrar uma descrição melhor do que a que é dada aqui pelo salmista. É um quadro extraordinariamente preciso de depressão espiritual. Leiam as palavras e quase poderão ver o homem, perturbado e abatido. É quase possível ver isso em seu rosto.

Em relação a isso, notem a diferença entre o versículo 5 e o versículo 11. Vejam o versículo onze: "Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim? espera em Deus, pois ainda o louvarei. Ele é a salvação da minha face, e o meu Deus". No quinto versículo ele diz: "Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim? espera em Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu" (versão atualizada). Nesse versículo ele diz que há auxílio na presença de Deus (i.e., perante a face de Deus); mas no versículo onze ele fala da "minha face". Em outras palavras o homem que se sente abatido, desanimado e miserável, que está infeliz e depri­mido, sempre revela isso em seu rosto. Ele parece preocupado e perturbado. Basta olhar para ele, e se percebe sua condição. "Sim", diz o salmista, "mas quando realmente olho para Deus, e me sinto melhor, minha face também melhora" — "Ele é a salvação da minha face". Aquela aparência cansada, perturbada, aflita, inquieta, perplexa e introspectiva se desfaz, e eu passo a comuni­car uma impressão de paz, calma e equilíbrio. Isso não é uma máscara, e sim um resultado inevitável de olhar para Deus. Se estamos deprimidos e infelizes, queiramos ou não, vamos demonstrar isso em nosso rosto. Por outro lado, se nosso relacionamento com Deus é correto, se estamos andando no Espírito, isso inevi­tavelmente também vai se expressar em nosso semblante. Com isso não estou dizendo que devemos andar por aí com aquele perpétuo sorriso forçado no rosto, que certas pessoas consideram essencial à manifestação da verdadeira alegria cristã. Não preci­samos forçar nada — essa alegria vai se expressar naturalmente: "Ele é a salvação da minha face".

Mas contemplem de novo o quadro que esse pobre homem apresenta. Parece estar carregando o mundo todo sobre seus ombros. Está abatido, triste, perturbado, perplexo. Não só isso, ele também nos diz que chora: "As minhas lágrimas tem sido o meu alimento dia e noite". Ele chora porque está num estado de perplexidade e temor. Está preocupado consigo mesmo, com o que está acontecendo com ele, e perturbado com os inimigos que o estão atacando e insinuando coisas sobre ele e sobre o seu Deus. Tudo parece estar em cima dele, esmagando-o. Ele não consegue controlar suas emoções, e chega ao ponto de perder o apetite. Diz que suas lágrimas têm sido o seu alimento. Todos estamos familia­rizados com esse fenômeno. Se alguém está ansioso ou preocupado, perde o apetite — não quer comer. De fato, a comida parece quase que repugnante. Ainda que este seja um problema digno de nota, mesmo que somente do ponto de vista físico e médico, não decénios nos deter nele, exceto para enfatizar a importância do quadro que apresenta. Um dos problemas resultantes da depressão espiritual é que, com frequência, quando sofremos dela, não esta­mos conscientes da impressão que está sendo transmitida aos outros. Uma vez que devemos nos preocupar com isso, é bom que examinemos o quadro objetivo. Se tivéssemos a capacidade de nos ver a nós mesmos como os outros nos vêem, este muitas vezes seria o passo decisivo para a vitória e a libertação. É bom olhar para nós mesmos, tentando visualizar o quadro que estamos apre­sentando aos outros, como uma pessoa deprimida, chorosa, que não quer comer, nem ver ninguém, e está tão preocupada com seus problemas que comunica a todos um quadro de depressão e miséria.

Tendo descrito o problema de forma geral, quero agora men­cionar algumas das suas causas gerais. Eu não hesito em colocar, em primeiro lugar e acima de tudo, o temperamento. Afinal, é um fato que as pessoas são diferentes em temperamento e personali­dade. Será que alguém se surpreenderá por eu colocar isso em primeiro lugar? Ou argumentará: "Quando você fala de cristãos, não deveria abordar a questão de temperamento, ou tipo de perso­nalidade. Por certo o cristianismo elimina tudo isso, e você não deveria considerar esse aspecto como tendo influência na questão". Pois bem, essa objeção é válida, e deve ser respondida. Quero começar deixando bem claro que o temperamento, o perfil psico­lógico e a nossa personalidade não fazem a mínima diferença no que concerne à nossa salvação. Esta é, graças a Deus, a base da nossa posição como cristãos. Não importa qual é o nosso tem­peramento; somos todos salvos do mesmo modo, pelo mesmo ato de Deus em e através de Seu Filho, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Esta é nossa resposta para a psicologia, e para as críticas ao cristianismo que muitas vezes resultam do estudo da psicologia. Quero deixar uma coisa bem clara: não importa quais sejam seus antecedentes, não importa qual o temperamento que lhe foi dado neste mundo — tudo isso não faz a mínima diferença no que se refere à salvação. Não reconhecemos a existência de um "complexo religioso". Nós nos glorificamos no fato de que a história da Igreja dá provas abundantes de que todo e qualquer tipo concebível de temperamento foi, e ainda é, encontrado hoje na Igreja do Deus vivo. Mas embora eu enfatize, com todo o meu ser, o fato de que o temperamento não faz a mínima diferença quanto à nossa salvação, quero igualmente enfatizar que ele faz uma enorme dife­rença na experiência concreta da nossa vida cristã, e quando esta­mos tratando de um problema como o da depressão espiritual, esta questão do temperamento deve ser um dos primeiros fatores a ser considerado.

Em outras palavras, de acordo com minha compreensão do ensino bíblico sobre esta questão, não há nada tão importante como a necessidade, de nos conhecermos a nós mesmos, e isso tão cedo quanto possível. Pois o fato é que, embora sejamos todos cristãos, unidos num mesmo "corpo", todos somos diferentes, e os problemas e dificuldades, as tribulações e perplexidades que enfren­tamos são, em grande medida, determinadas pelas diferenças de temperamento e tipos de personalidade. Todos participamos da mesma batalha, é claro, pois todos compartilhamos da mesma salvação comum, e temos a mesma necessidade básica. Mas as manifestações do problema variam de um caso para outro, e de uma pessoa para outra. Não há nada mais fútil, ao tratar desse problema, do que agir com base na suposição de que todos os cristãos são idênticos em todos os aspectos. Não são — e Deus jamais planejou que fossem.

Este ponto pode ser melhor ilustrado por um exemplo de uma outra esfera. Todos nós somos seres humanos, tendo basicamente a mesma constituição física, no entanto sabemos muito bem que não há duas pessoas idênticas. Na verdade, somos todos diferentes em muitos aspectos. Ora, muitas vezes encontramos pessoas que defen­dem estilos de vida, ou métodos de tratamento de doenças, que ignoram completamente este fato fundamental, e portanto, estão obviamente erradas. Elas receitariam a mesma dieta para todo mundo. Prescrevem este regime universal, afirmando que vai curar todo mundo. Isso, eu digo, é impossível, e basicamente errado.

Muitas vezes tenho dito que a primeira lei fundamental da dietética se resume naquele ditado, em inglês, que traduzido diz mais ou menos o seguinte: "João da Silva não podia comer gor­dura, sua mulher não podia comer carne". Está certo! É uma declaração engraçada, num sentido, mas por outro lado, é um princípio fundamental de nutrição. João da Silva tem uma consti­tuição diferente da de sua mulher, e sugerir que a mesma dieta seria perfeita para ambos é um erro fundamental. Ambos são seres humanos, mas como seres humanos são diferentes em sua consti­tuição física. Ou, para citar outro exemplo, vejam a tendência de insistir que todas as crianças nas escolas façam ginástica. Aí temos novamente o mesmo erro. Todos diferimos em altura e cons­tituição física, e é algo irracional estabelecer uma regra inflexível para incluir todos os tipos. Alguns têm aptidão para essas coisas, e outros não; e exigir que todas as crianças participem do mesmo tipo de atividade física é tão absurdo como submeter todas as pessoas à mesma dieta. Todos necessitamos de exercício, mas não do mesmo tipo ou na mesma quantidade.

Menciono isso para ilustrar essa tendência à arregimenta­ção; e o ponto que quero esclarecer é< que não podemos estabelecer leis assim generalizadas e universais, como se os homens fossem máquinas. É errado na esfera física, como eu acabo de demonstrar, e é muito mais errado na esfera espiritual.

É bem óbvio que podemos dividir os seres humanos em dois grupos básicos — os introvertidos e os extrovertidos. Há um tipo de pessoa que está constantemente voltada para dentro de si mesma, e outro tipo cuja atenção está em geral voltada para fora. E é muito importante compreender, não só que pertencemos a um desses dois grupos, mas também que o problema de depressão espiritual tende a afetar um desses grupos mais do que afeta ao outro. Precisamos começar por conhecer e entender a nós mesmos.

Há um tipo de pessoa que é especialmente vulnerável ao pro­blema da depressão espiritual. Isso não significa que essas pessoas sejam piores do que as outras. Na verdade, eu poderia sustentar com boa base que as pessoas que se destacaram de forma gloriosa na história da Igreja eram, muitas vezes, do tipo que estamos considerando. Alguns dos maiores santos eram introvertidos; o extrovertido geralmente é uma pessoa mais superficial. Na esfera natural existe o tipo de pessoa que está sempre fazendo auto-aná­lise, avaliando tudo o que faz, e se preocupando com os possíveis efeitos de suas ações, sempre olhando para trás, sempre cheia de remorsos fúteis. Pode ser algo que foi feito uma vez para sempre, mas ela não consegue esquecê-lo. Não pode desfazer o que foi feito, entretanto passa o tempo todo se analisando, culpando e condenando. Vocês estão familiarizados com esse tipo de pessoa. Ora, tudo isso é também transferido para a esfera do espírito, afetando sua vida espiritual. Em outras palavras, há um perigo de que tais pessoas se tornem mórbidas. Eu já disse que poderia mencionar nomes. Certamente um deles foi o grande Henry Martin. Não se pode ler a vida desse grande homem de Deus sem se chegar à imediata conclusão de que ele tinha uma personalidade introspectiva. Era introvertido, e sofria de uma tendência óbvia para a morbidez e a introspecção.

Esses dois termos nos lembram que o problema fundamental dessas pessoas, é que elas muitas vezes não cuidam de estabelecer a linha divisória entre auto-análise e introspecção. Todos concor­damos com a necessidade de nos examinarmos a nós mesmos, mas também concordamos que a introspecção e a morbidez são coisas nocivas. Qual, então, é a diferença entre auto-análise e introspec­ção? Eu diria que atravessamos a linha divisória entre auto-análise e introspecção quando não fazemos outra coisa senão nos exami­nar, e quando essa auto-análise se torna o fim dominante da nossa vida. Devemos nos examinar periodicamente, porém se o fazemos constantemente, colocando, por assim dizer, a nossa alma num recipiente para dissecá-la, isso é introspecção. E se estamos sempre falando com os outros a respeito de nós mesmos, de nossos pro­blemas e dificuldades, e nos aproximamos deles com uma carranca, dizendo: "Tenho tantos problemas!" — provavelmente isso signi­fica que estamos sempre com nossa atenção toda concentrada em nós mesmos. Isso é introspecção, e pode levar à condição conhe­cida como morbidez.

Aqui, então, é o ponto aonde devemos começar. Será que nos conhecemos a nós mesmos? Sabemos quais são as áreas es­pecíficas de perigo para nós? Sabemos a que é que somos espe­cialmente vulneráveis? A Bíblia está repleta de ensinamentos sobre isso. Ela nos exorta a sermos cuidadosos com respeito às nossas forças e às nossas fraquezas. Tomemos Moisés como exemplo. Ele era o homem mais manso sobre a Terra, segundo a Bíblia; e, no entanto, seu maior fracasso teve ligação exatamente com isso. Ele afirmou sua própria vontade, e ficou irado. Temos que vigiar tanto nossas forças como nossas fraquezas. A essência da sabedoria é compreender este fato fundamental sobre nós mesmos. Se eu, por natureza, sou um introvertido, tenho que exercer uma vigilância constante e advertir a mim mesmo sobre isso, para não cair incons­cientemente num estado de morbidez. Da mesma forma, o extro­vertido precisa conhecer-se a si mesmo, mantendo vigilância contra as tentações peculiares à sua natureza. Alguns de nós, por natu­reza e devido ao nosso temperamento, somos mais suscetíveis à esta doença chamada depressão espirtual do que outros. Perten­cemos ao mesmo grupo que Jeremias, João Batista, Paulo, Lutero e muitos outros. Uma companhia muito seleta! Sim, mas não se pode pertencer a ela sem ser especialmente vulnerável a esse tipo específico de tribulação.

Agora passemos à segunda grande causa: condições físicas. Isso surpreende alguém? Há alguém que pensa que a condição física do seu corpo não importa desde que é cristão?. Bem, se pensa assim, não vai demorar para sofrer uma desilusão. A condi­ção física tem muita influência nisso tudo. É difícil marcar uma linha divisória entre esta causa e a anterior, porque o tempera­mento parece ser controlado, até certo ponto ,por condições físicas, e na verdade há pessoas que são, parece, fisicamente vulneráveis ao problema da depressão espiritual. Em outras palavras, existem certas debilidades físicas que tendem a causar depressão. Acho que Thomas Carlyle foi um bom exemplo disso. Ou tomemos aquele extraordinário pregador inglês do século passado, que pre­gou em Londres por quase quarenta anos — Charles Haddon Spurgeon — um dos maiores pregadores de todos os tempos. Esse grande homem era sujeito a depressão espiritual, e a explicação, no caso dele, sem dúvida era o fato de que ele sofria de gota, o problema que acabou causando a sua morte. Ele teve que enfrentar esse problema de depressão espiritual muitas vezes em sua forma mais intensa. Essa tendência à depressão profunda era uma conse­quência do problema de gota, problema esse que Spurgeon herdou de seus ancestrais. E há muitas pessoas que me procuram em busca de ajuda para o problema de depressão, em cujos casos se torna óbvio para mim que a causa de seu problema é, princi­palmente, física. Estão incluídos nesse grupo de causas físicas: cansaço, esgotamento, "stress", e qualquer tipo de doença. Não se pode isolar o físico, separando-o do espiritual, pois somos corpo, mente e espírito. Os melhores cristãos são mais propensos a ata­ques de depressão espiritual quando estão fisicamente fracos — e encontramos grandes ilustrações disso na Bíblia.

Quero dar uma palavra de advertência nesta altura. Não podemos esquecer a existência do diabo, nem permitir que ele nos engane, considerando espiritual aquilo que é fundamentalmente físico. Mas por outro lado, devemos ser cuidadosos nessa distin­ção em todos os aspectos; porque, se jogamos toda a culpa em nossa condição física, podemos nos tornar culpados num sentido espiritual. Entretanto, se reconhecermos que nosso físico pode ser parcialmente responsável por nosso problema espiritual, e levar­mos isso em consideração, será mais fácil tratar do espiritual.

Outra causa frequente da depressão espiritual é o que pode­ríamos chamar de "reação" — reação a uma grande bênção, ou a uma experiência extraordinária ou fora do comum. Pretendo cha­mar atenção posteriormente ao caso de Elias, assentado debaixo do zimbro? Não tenho nenhuma dúvida de que seu problema era que ele estava sofrendo de uma reação ao que acontecera no Monte Carmelo (I Reis, capítulo 19). Abraão teve a mesma experiência (Génesis, capítulo 15). Por isso, quando alguém vem me contar a respeito de alguma experiência extraordinária que teve, eu me regozijo com a pessoa, dando graças a Deus; mas passo a obser­vá-la atenta e apreensivamente depois disso, caso haja uma reação. Isso não precisa acontecer, mas pode se dar se não estivermos cientes dessa possibilidade. Se apenas compreendêssemos que quan­do Deus se agrada em nos dar uma bênção incomum, deveríamos redobrar nossa vigilância, então poderemos evitar essa reação.

Passemos para a causa seguinte. Em certo sentido, em última análise, esta é a única causa da depressão espiritual — é o diabo, o inimigo de nossas almas. Ele pode usar nosso temperamento e nossa condição física. Ele nos manipula de tal forma que acabamos permitindo que nosso temperamento nos controle e governe nossas ações, em vez de nós mantermos o controle sobre ele. São incon­táveis os meios pelos quais o diabo causa a depressão espiritual. Temos que nos lembrar dele. O seu objetivo é deprimir o povo de Deus, de tal forma que ele possa ir ao homem de mundo, dizen­do: "Eis o povo de Deus; você quer ser assim?" A estratégia do adversário de nossas almas, o adversário de Deus, é de nos levar à depressão e ao estado de espírito do salmista quando estava atravessando este período de perturbação e infelicidade.

Na verdade, posso resumir a questão desta forma: a causa básica de toda depressão espiritual é incredulidade, pois se não fosse por ela nem o diabo poderia fazer coisa alguma. É porque prestamos atenção ao diabo em vez de ouvirmos a Deus, que caímos derrotados diante dos ataques do inimigo. Por isso é que o salmista continua dizendo a si mesmo "Espera em Deus, pois ainda o louvarei". Ele volta o seu pensamento para Deus. Por quê? Porque ele estava deprimido, e tinha se esquecido de Deus, de forma que sua fé em Deus e no Seu poder, e sua confiança no relacionamento que tinha com o Senhor, não eram o que deveriam ser. Podemos, portanto, resumir tudo isso, afirmando que a causa fundamental é pura e simples incredulidade.

Até aqui, então, temos examinado as causas. E quanto ao tratamento? Abreviadamente, por ora a primeira coisa que preci­samos aprender é o que o salmista aprendeu — precisamos assu­mir o controle de nós mesmos. Este homem não se contentou em ficar sentado, sentindo pena de si mesmo. Ele fez alguma coisa a respeito. Assumiu o controle de si mesmo. Mas ele fez uma coisa ainda mais importante. Falou consigo mesmo. Ele se voltou para si mesmo, dizendo: "Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim?" Fala consigo mesmo; argumenta consigo mesmo. No entanto, alguém indaga: "Mas não é exata­mente isso que devemos evitar, já que gastar tempo demais con­sigo mesmo é uma das causas do problema? Isso contradiz suas declarações anteriores! Fomos advertidos contra introspecção e morbidez, e agora nos diz que devemos falar conosco mesmos!"

Como podemos harmonizar as duas coisas? Desta maneira: eu estou dizendo que devemos falar com o nosso "eu" em vez de permitir que o nosso "eu" fale conosco! Entendem o que isso significa? Estou dizendo que o maior problema em toda essa questão de depressão espiritual, num sentido, é que permitimos que o nosso "eu " fale conosco, em vez de nós falarmos com o nosso "eu". Estou tentando ser deliberadamente paradoxal? De modo algum. Isso é a essência da sabedoria nesta questão. Já perceberam que uma grande parte da infelicidade e perturbação em suas vidas provém do fato, que estão escutando a si mesmos em vez de falar consigo mesmos? Por exemplo, considerem os pensamentos que lhes vêm à mente quando acordam de manhã. Vocês não os originaram mas esses pensamentos começam a "falar" com vocês, trazendo de volta os problemas de ontem, etc. Alguém está falando. Quem está lhes falando? O seu "eu" está falando com vocês. Ora, o que o salmista fez foi o seguinte: em vez de permitir que esse "eu" falasse com ele, ele começou a falar con­sigo mesmo. "Por que estás abatida, ó minha alma?" ele pergunta. Sua alma estava deprimida, esmagando-o. Por isso ele se dirige a ela, dizendo: "Ouça por um momento, eu quero falar contigo". Vocês entendem o que estou falando? Se não, é porque ainda não tiveram muita experiência com estas coisas.

A arte maior na questão da vida espiritual é saber como dominar-se. Um homem precisa ter controle sobre si mesmo, deve falar consigo mesmo, exortar e examinar a si mesmo. Deve pergun­tar à sua alma: "Por que estás abatida?" "Como pode se abater assim?" Você como ele, precisa se voltar para si mesmo — re­preendendo, censurando, condenando, exortando — e dizendo a si mesmo: "Espera em Deus", em vez de resmungar e murmurar dessa maneira infeliz e deprimida. E então deve prosseguir, lem­brando-se de Deus: quem Ele é, o que Ele é, o que Ele tem feito, e o que tem prometido fazer. Tendo feito isso, termine com esta nota de triunfo: desafie a si mesmo, desafie os outros, desafie o diabo e o mundo todo, dizendo com este homem, "Eu ainda o louvarei. Ele é a salvação da minha face, e o meu Deus".

Essa é a essência do tratamento, em resumo. Os demais capí­tulos serão apenas uma exposição mais elaborada do que foi apre­sentado aqui. A essência desta questão é entender que este nosso "eu" interior — esta outra pessoa dentro de nós — precisa ser controlado. Não lhe dê atenção — fale com ele, condenando, cen­surando, exortando, encorajando, relembrando-o daquilo que você sabe — em vez de ouvir placidamente o que ele tem a dizer, permitindo que ele o leve ao desânimo e à depressão. Certamente é isto que ele sempre fará, se você lhe entregar o controle. O diabo tenta controlar o nosso "eu" interior, usando-o para nos deprimir. Precisamos nos erguer, dizendo como este homem: "Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim?" Pare com isso! "Espera em Deus, pois o louvarei. Ele é a salvação da minha face, e o meu Deus".

 

 

2. O VERDADEIRO FUNDAMENTO

"Concluímos pois que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei."

Romanos 3:28

Quero examinar esta declaração à luz do texto básico do capítulo anterior.

Não há dúvida que o problema conhecido como depressão espiritual é bastante comum. De fato, quanto mais o estudamos e falamos sobre ele, mais descobrimos como ele é comum. Estamos estudando este problema, como eu já mencionei, por duas razões principais. Primeira, é desolador que alguém tenha que permane­cer em tal condição. Mas a segunda razão é ainda mais importante e séria; é que tais pessoas são péssimas representantes da fé cristã. Ao enfrentarmos o mundo moderno, com todas as suas perturba­ções e turbulências, com suas dificuldades e tristezas, nós, que nos dizemos cristãos e professamos o nome de Cristo, devemos representar nossa fé diante dos outros de tal maneira que eles digam: ' Aí está a solução. Aí está a resposta". Num mundo em que tudo perdeu o rumo, devemos nos sobressair como homens e mulheres caracterizados por uma alegria e segurança interior inabaláveis, apesar das circunstâncias e adversidades. Creio que concordarão comigo quando digo que este é um quadro que tanto o Velho como o Novo Testamento apresentam do povo de Deus. Esses homens de Deus se sobressaíram porque, quaisquer que fos­sem as circunstâncias e condições, eles pareciam possuir um segre­do que os capacitava a viver em triunfo, sendo mais que vence­dores. Portanto, é imprescindível que examinemos o problema da depressão espiritual muito de perto.

Já analisamos o problema em geral, bem como algumas de suas causas principais. Vimos que a essência do tratamento, de acordo com o salmista, é que devemos nos enfrentar a nós mesmos.

Em outras palavras, devemos falar com nosso "eu" interior, em vez de permitir que ele fale conosco. Devemos assumir o controle de nós mesmos, falando com a nossa alma, como o salmista fez, perguntando: "Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim?" "Você não tem o direito de se sentir assim. Por que está tão desanimada e abatida?" Ele se enfrenta e fala consigo mesmo, discute consigo mesmo e se coloca nova­mente numa posição de fé. Ele se exorta a ter fé em Deus, e então está em condições de orar a Deus.

Quero examinar este método defendido pelo salmista. O prin­cípio vital é que devemos nos enfrentar e examinar a nós mesmos, e se estamos entre aqueles que parecem nunca conhecer a alegria da salvação e o gozo do Senhor, precisamos descobrir a causa. As causas podem ser muitas, e em minha opinião, a essência da sabedoria nesta questão é tratar dessas causas, uma por uma, e examiná-las em detalhe. Não devemos tomar nada por certo. Na verdade, creio que poderia ser facilmente constatado que a maior causa de problemas nesta área, é a tendência fatal de tomar certas coisas como garantidas. Quanto mais eu falo com as pessoas sobre isso, mais vejo que é este o caso. Há tantas pessoas que parecem nunca chegar a uma posição firme sobre a fé cristã, porque não chegam a uma definição clara em sua mente quanto a certos pontos primários, certas coisas fundamentais que deviam ser trata­das no princípio.

Embora correndo o risco de ser mal compreendido, vou apre­sentar isto assim: o problema específico do qual estamos tratando tem a tendência de ser mais comum entre aqueles que foram criados e educados de maneira religiosa, do que entre os que não foram criados e educados dessa maneira. Parece afetar mais aqueles que foram criados em lares de famílias cristãs, e que sempre foram levados a lugares de adoração, do que aqueles que não foram. Há muitos que parecem atravessar a vida da forma que Shakespeare descreveu como "presos em superficialidade e miséria". Parece que nunca saem disso. Estão envolvidos na igreja, e muito interessados em assuntos cristãos; todavia, se os compararmos com a descrição que o Novo Testamento faz da "nova criatura em Cristo", veremos imediatamente uma grande diferença. De fato, eles mesmos vêem isso, e muitas vezes é a causa principal da sua depressão e infeli­cidade. Eles vêem outros cristãos se regozijando, e dizem: "Bem, não posso dizer que sou assim. Essa pessoa tem algo que eu não tenho" — e dariam tudo para obter o que a outra pessoa tem.

Eles lêem biografias de santos que enriqueceram a vida da Igreja Cristã, e admitem logo que não são assim. Sabem que nunca foram assim, e que essas pessoas obviamente usufruíam de algo que eles mesmos nunca tiveram.

Há um grande número de pessoas nessa situação infeliz. Para elas a vida cristã parece ser um constante problema, e estão sem­pre fazendo a mesma pergunta: "Por que não posso chegar a esse nível? Por que não posso ser assim?" Lêem livros que oferecem princípios da vida cristã, vão a reuniões e conferências, sempre em busca desse algo que não conseguem encontrar. E ficam desa­nimadas, sua alma fica abatida e inquieta dentro delas.

Ao tratar com tais pessoas, é de importância vital certificar-se que os princípios básicos e fundamentais da fé cristã estão claros em suas mentes. Vezes sem conta, eu descobri que o verda­deiro problema delas estava nisso. Não digo que não fossem cristãs, mas eu diria que são entre os que chamo de "cristãos miserá­veis" — simplesmente porque não entenderam o caminho da sal­vação, e por isso todos os seus esforços em geral resultaram em nada. Muitas vezes se concentram no assunto da santificação, mas isto não os ajuda, porque não entenderam a justificação. Supondo que estão no caminho certo, acham que tudo que precisam fazer é continuar nele.

É um ponto interessante para investigação teológica, se tais pessoas são cristãs ou não. Eu, pessoalmente, diria que são. John Wesley é um exemplo clássico. Eu hesitaria em afirmar que John Wesley não era cristão antes de 1738; mas tenho certeza que ele não havia entendido o caminho da salvação como sendo somente através da justificação pela fé, até 1738. Em certo sen­tido ,ele concordara com todos os ensinos da Bíblia, mas sem captá-los ou compreendê-los plenamente. Não tenho dúvida nenhu­ma que, se o tivesse interrogado, ele teria dado todas as respostas corretas, até mesmo sobre a morte do Senhor Jesus; no entanto, em sua experiência ele não tinha uma compreensão clara da justi­ficação pela fé. Foi somente depois de seu encontro com os irmãos morávios, e especialmente após uma conversa com um deles, cha­mado Peter Bohler, numa viagem de Londres a Oxford, que ele verdadeiramente compreendeu essa doutrina vital. Ali estava um homem que tinha tentado encontrar felicidade em sua vida cristã através do que fazia — pregando aos prisioneiros em Oxford, renunciando à cátedra que ocupava na universidade, e enfrentando os perigos de uma viagem através do Atlântico para pregar aos pagãos da América. Estava tentando alcançar a felicidade seguindo um certo padrão de vida. Contudo o seu problema todo residia no fato que John Wesley nunca tinha realmente compreendido a dou­trina da justificação pela fé. Ele não tinha entendido o versículo que estamos considerando: "Concluímos pois que o homem é justi­ficado pela fé sem as obras da lei". Parece quase impossível que um homem assim, criado num lar excepcionalmente piedoso, e que passara sua vida toda no trabalho cristão, pudesse ter uma com­preensão errada a respeito de um ponto tão básico e fundamental — mas assim foi!

E eu diria que esta é a situação de um grande número de pessoas ainda hoje. Elas supõem estarem certas a respeito das coisas básicas, mas nunca entenderam sua justificação, e é exata­mente aí que o diabo causa confusão. Agrada-lhe que tais pessoas estejam preocupadas com santificação e santidade e coisas assim, mas elas nunca encontrarão o caminho certo até que esclareçam este aspecto, e portanto é aqui que devemos começar. Não adianta tratar da estrutura, se o alicerce tem falhas. Então devemos come­çar por esta grande doutrina. Esta confusão é um problema antigo. Num certo sentido é a obra-prima de Satanás. Ele até nos enco­rajará a sermos justos, enquanto puder nos confundir neste ponto. E ele está conseguindo isso, a julgar pelo fato que as pessoas na Igreja hoje em dia parecem considerar como cristão aquele que faz boas obras, mesmo estando inteiramente errado sobre esta verdade básica. É um problema antigo, e era o problema essencial dos judeus. É o que o Senhor Jesus estava dizendo constantemente aos fariseus, e certamente era o maior argumento que o apóstolo Paulo tinha com os judeus. Eles estavam completamente errados quanto a toda a questão da lei, e o maior problema era mostrar-lhes o ponto de vista certo sobre isso. Os judeus criam que Deus dera a lei ao homem para que ele pudesse se salvar, observando-a. Diziam que tudo que alguém precisava fazer era observar a lei, e que poderia alcançar a justificação mediante isso; e se essa pessoa vivesse de acordo com a lei, Deus a aceitaria, e Ele Se agradaria dela. E pensavam que podiam fazer isso, porque nunca tinham entendido a lei. Interpretaram-na à sua própria maneira, tornando-a em algo que estava ao seu alcance — e assim pensaram que tudo estava bem. Este é o quadro que os Evangelhos e todo o Novo Testamento dão a respeito dos fariseus. Era o problema dos judeus e ainda é o problema de muita gente hoje. Precisamos entender que há  certas coisas  que devem estar bem  claras em nossa mente, antes de podermos realmente ter paz e usufruir as bênçãos da nossa vida cristã.

Este ponto preliminar pode ser esclarecido através de uma exposição geral do terceiro capítulo da carta aos Romanos. Na verdade, os primeiros quatro capítulos dessa grande epístola são dedicados a esse tema. A verdade principal que Paulo estava ansio­so por esclarecer era a mensagem da justiça de Deus, que é pela fé em Jesus Cristo. Ele já tinha declarado, em Romanos 1:16-17: "Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego. Porque nele se descobre a justiça de Deus de fé em fé, como está escrito: mas o justo viverá pela fé". Mas então surge a pergunta: Por que nem todos criam nisso? Por que essa mensagem não foi aceita automaticamente por todos que a ouviram, como a melhor notícia já anunciada ao mundo? A resposta é que eles não creram porque não viram a necessidade disso. Tinham um conceito errado de justiça. A justiça de que Paulo fala significa um relacionamento correio com Deus. Não existe felicidade, não existe paz nem regozijo à parte de um rela­cionamento correto com Deus. E com isso todos concordam — tanto o cristão miserável como o cristão seguro. Mas a diferença entre um e outro, é que o cristão miserável tem um conceito errado sobre como alcançar a justiça de Deus. Esse também foi o proble­ma dos judeus. Eles, como eu já disse, declaravam que a justiça é alcançada através de uma conformação e observância da lei, como eles a entendiam. Mas eles tinham um conceito completamente errado da lei. Eles a perverteram de tal forma que o próprio meio que Deus lhes deu para esclarecer o caminho da salvação tornou-se nas mãos deles o maior obstáculo a essa salvação.

Qual, então, é o ensino? Há certos princípios, bastante sim­ples, que precisamos entender antes que possamos realmente usu­fruir dessa salvação cristã. O primeiro é convicção de pecado. Precisamos ter uma visão clara da nossa pecaminosidade. Aqui, vou seguir o método do apóstolo Paulo, levantando uma objeção imaginária. Imagino alguém dizendo imediatamente: "Você vai pregar sobre pecado, vai pregar sobre convicção de pecado? Você diz que seu objetivo é nos levar à felicidade, mas se vai pregar sobre convicção de pecado, isso vai nos tornar ainda mais infe­lizes. Você está deliberadamente tentando nos levar à miséria e ao desespero?" A minha resposta é: Sim! Este é o ensino do grande apóstolo nestes capítulos. Pode parecer um paradoxo — o termo realmente não importa — mas acima e além de qualquer dúvida, esta é a regra, e não há exceções. Você precisa passar por miséria e desespero, antes que possa conhecer a verdadeira alegria cristã. Na verdade, o grande problema do cristão miserável é que ele nunca foi levado a se sentir verdadeiramente miserá­vel por causa de convicção de pecado. Ele ignorou a preliminar essencial à alegria, presumindo algo que não tem o direito de presumir.

Deixem-me colocar isso num contexto bíblico. Lembram-se do velho Simeão segurando o Senhor Jesus Cristo, ainda bebê, em seus braços? Ele fez uma declaração muito profunda, ao dizer: "Eis que este é posto para queda e elevação de muitos em Israel". Não existe elevação sem que tenha havido uma queda antecedente. Esta é uma regra absoluta, e no entanto é algo que está sendo completamente esquecido por muitos hoje em dia, e mal interpre­tado por muitos outros. As Escrituras, porém, têm uma ordem, e essa ordem deve ser observada, se vamos usufruir os benefícios da salvação. Em última análise, a única coisa que vai levar o homem a Cristo, e fazê-lo confiar somente nEle, é uma verdadeira convicção de pecado. Erramos porque não somos verdadeiramente convictos do nosso pecado. É por isso que digo que este é um problema que afeta particularmente todos aqueles que foram cria­dos num ambiente cristão ou religioso. O seu maior problema, muitas vezes, é uma idéia errada do pecado. Lembro-me de uma pessoa que expressou isso de forma dramática em certa ocasião. Era uma senhora que fora criada num lar muito religioso, assídua frequentadora da igreja, sempre envolvida nas suas atividades. Era membro de uma igreja onde várias pessoas tinham se convertido de repente dos seus caminhos mundanos e vida pecaminosa — bebida, e coisas assim. Lembro quando ela me disse: "Sabe, eu quase chego a desejar que não tivesse sido criada da maneira que fui criada, e que tivesse vivido o tipo de vida que essas pessoas viveram, para também ter essa experiência maravilhosa". O que ela queria dizer com isso? O que ela realmente estava dizendo era que nunca tinha se visto como uma pessoa pecadora. Por que não? Há muitas razões. Esse tipo de pessoa, quando pensa em pecado, pensa em termos de ações, de atos. Não só isso, mas em termos de certos atos em particular, apenas. Então, sua tendência é pensar que, uma vez que não é culpada desses pecados especí­ficos, então não é realmente pecadora. De fato, às vezes o expressa bem claramente, dizendo: "Eu nunca pensei em mim mesmo como um pecador; mas, naturalmente, isso não é de espantar, uma vez que minha vida foi muito protegida desde o começo. Nunca fui tentado a fazer essas coisas, então não é de espantar que nunca tenha sentido que sou um pecador". E aí vemos a essência desse engano. Essas pessoas pensam em termos de ações, certos atos em particular, e em termos de comparação com outras pessoas e suas experiências, e assim por diante. Por' essa razão nunca tiveram uma convicção real de pecado, e por isso nunca viram claramente sua absoluta necessidade do Senhor Jesus Cristo. Ouviram pregar que Cristo morreu por nossos pecados, e dizem crer nisso; mas nunca chegaram a realmente reconhecer a sua absoluta necessidade pessoal disso.

Como, então, podem tais pessoas chegar à convicção de peca­do? Esse é o assunto de Paulo neste capítulo três da Epístola aos Romanos. Ele realmente tratou disso através do segundo capítulo também. E esta é sua grande tese: "Não há um justo, nem um sequer; porque todos pecaram, e destituídos estão da glória de Deus". Quem são esses "todos"? Ele deixa claro: tanto judeus como gentios. Os judeus, é óbvio, concordariam que os gentios eram pecadores, fora da aliança, transgressores contra Deus. "Mas esperem um pouco", Paulo diz: "vocês também são pecadores!" A razão por que os judeus odiavam Cristo e O crucificaram, a explicação da "ofensa da cruz", a razão por que Paulo foi tratado daquela forma por seus conterrâneos que odiavam a fé cristã, era que a fé cristã declarava o judeu tão pecador como o gentio. Ela asseverava que o judeu — o qual pensava que sempre tinha vivido uma vida justa e religiosa — era tão pecador como o peca­dor mais ímpio entre os gentios. "Todos pecaram"; judeus e gen­tios estão igualmente sob condenação diante de Deus.

O mesmo é verdade hoje, e se vamos levar a sério a convicção de pecado, a primeira coisa que devemos fazer é parar de pensar em pecados específicos. Quão difícil é isso para todos nós, pois todos temos esses preconceitos. Restringimos o pecado apenas a certas coisas, e se não somos culpados dessas coisas, pensamos que não somos pecadores. Todavia, essa não é a forma de se chegar à convicção de pecado. Não foi assim que John Wesley chegou a entender que era pecador. Lembram-se o que o levou à convicção de pecado? Começou quando ele viu a forma como certos irmãos morávios agiram durante uma tempestade em pleno oceano Atlân­tico. John Wesley estava apavorado com a tempestade, e com medo de morrer; os morávios não. Pareciam tão felizes e tranquilos em meio à tempestade como se o sol estivesse brilhando. John Wesley percebeu que tinha medo de morrer; de algum modo ele não conhecia a Deus da forma como aquelas pessoas O conheciam. Em outras palavras, ele começou a sentir sua necessidade, e isso é sempre o começo da convicção de pecado.

O ponto essencial aqui é que você não chega à convicção de que é pecador comparando-se com outras pessoas, e sim chegando face a face com a lei de Deus. Bem, o que é a lei de Deus? "Não matarás, não furtarás"? "Nunca fiz essas coisas, então não sou um pecador". Meu amigo, isso é apenas parte da lei de Deus. Você gostaria de saber o que é a lei de Deus? Aqui está: "Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças: este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Marcos 12:30-31). Esqueça tudo sobre bêbados e outros assim, esqueça as pessoas sobre quem você lê na imprensa atualmente. Aqui está o teste para você e para mim: você está amando a Deus de todo o seu coração? Se não está, você é um pecador. Esse é o teste. "Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus". Deus nos criou, e nos criou para Si mesmo. Ele criou o homem para Sua própria glória, e com a intenção que o homem vivesse inteiramente para Ele. O homem devia ser representante de Deus e andar em comu­nhão com Ele. Devia ser o senhor do universo, e devia glorificar a Deus. Como está no Catecismo Menor: "O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre". E se você não está fazendo isso, você é um pecador da pior espécie, que reconheça e sinta isso ou não.

Ou deixem-me colocar de outra forma. Considero este um modo válido de apresentar o assunto. Deus sabe que estou pregando a minha própria experiência a vocês, pois tive uma formação muito religiosa. Também estou falando da minha experiência a vocês como alguém que frequentemente ajuda pessoas que foram criadas da mesma maneira. O homem foi criado para conhecer a Deus. Então a pergunta é: vocês conhecem a Deus? Não estou pergun­tando se vocês crêem em Deus, ou se crêem em certas coisas sobre Ele. Ser um cristão significa ter a vida eterna, e como o Senhor Jesus disse em João 17:3: "E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste". Então o teste que devemos aplicar a nós mesmos não é perguntar se fizemos isto ou aquilo. Meu teste é um teste positivo: "Eu conheço a Deus? Jesus Cristo é real para mim?" Não estou perguntando se vocês sabem coisas a respeito de Deus, mas se conhecem a Deus, se se alegram em Deus, se Deus é o centro de suas vidas, a alma do seu viver, a fonte da sua maior alegria? Ele deve ser. Ele criou o homem para isso — para que habitasse em comunhão com Deus, e se regozijasse nEle, e andasse com Deus. Nós fomos criados para isso, e se não estamos vivendo assim, isso é pecado. Isso é a essência do pecado. Não temos o direito de não ser assim. Isso é pecado, em sua forma pior e mais profunda. A essência do pecado, em outras palavras, é que não vivemos inteiramente para a glória de Deus. Naturalmente, ao cometer certos pecados, agravamos a nossa culpa diante de Deus, mas vocês podem ser inocentes de qualquer dos pecados mais vis, e ainda assim serem culpado desse terrível pecado — de estarem satisfeitos com suas próprias vidas, de terem orgulho das suas realizações, e de olharem para os outros com superioridade, sentindo que são melhores do que eles. Não há coisa pior do que isso, porque vocês estão dizendo a si mesmos que dê certa forma estão mais pertos de Deus do que os outros, quando na verdade não estão. Se esta é sua atitude, vocês são como o fariseu no templo, que agradeceu a Deus por não ser como aquele outro homem — "esse publicano". O fariseu nunca tinha visto sua necessidade de perdão, e não há pecado mais terrível do que esse. Não sei de nada pior do que um homem que diz: "Saiba que nunca realmente senti que sou um pecador". Esse é o cúmulo do pecado, pois significa que essa pessoa nunca compreendeu a verdade sobre Deus e sobre si mesma. Leiam o argumento do apóstolo Paulo, e perceberão que sua lógica não é apenas inevi­tável, mas também irrespondível. "Não há um justo, nem um sequer". "Sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus". Se nunca reconheceram a pró­pria culpa ou pecaminosidade diante de Deus, nunca vão ter ale­gria em Cristo. É impossível. Jesus não veio salvar justos, e sim pecadores. "Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes". Aí está o primeiro princípio — convicção de pecado. Meu amigo, se você não tem convicção de pecado, e se não reconhece que é indigno diante de Deus, que está condenado e que é um fracasso completo aos olhos de Deus, não preste atenção a mais nada até que tenha isto, até que chegue a essa compreensão, porque você nunca terá alegria, e nunca vai se livrar da sua depressão até que entenda isso. Convicção de pecado é um ponto preliminar essencial a uma verdadeira experiência de salvação.

Isso me traz ao segundo princípio. A segunda coisa que pre­cisamos entender é o caminho da salvação de Deus em Cristo. Esta é a grande boa nova. "Isto é o que eu estou pregando", Paulo diz aos romanos; "essa justiça de Deus que está em Jesus Cristo — Sua justiça". Do que ele está falando? Podemos colo­cá-lo em forma de pergunta. Como você vê Jesus Cristo? Por que Ele veio a este mundo? O que Deus fez em Cristo? Foi Ele apenas um exemplo, ou algo assim? Não vou perder tempo demonstrando a futilidade dessas suposições. Não. Isto é algo positivo, essa justiça de Deus em Jesus Cristo. A salvação está inteiramente em Cristo, e se você não está voltado exclusivamente para Cristo, tudo o mais tendo fracassado, você não é um cristão, e não é de admirar que não seja feliz. "A justiça de Deus em Jesus Cristo" significa que Deus O enviou ao mundo para que Ele honrasse a lei, e para que os homens pudessem ser perdoados. Aqui está Um que prestou obediência perfeita a Deus. Aqui está Um — Deus na carne — que tomou sobre Si mesmo a natureza humana e, como homem, rendeu a Deus perfeita adoração, perfeita lealdade e per­feita obediência. Ele observou a lei de Deus de maneira total e absoluta, sem uma falha. Mas não fez só isso. Paulo acrescenta algo mais nesta declaração clássica da doutrina da expiação: "Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes come­tidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daque­le que tem fé em Jesus". Isto significa que, antes que o homem possa ser reconciliado com Deus, antes que possa conhecer a Deus, esse pecado precisa ser removido. Deus disse que Ele iria punir o pecado, e o castigo do pecado é a morte, como também sepa­ração de Deus. Isso precisa ser resolvido. E o que aconteceu? "Bem", diz Paulo, "Deus o enviou como propiciação". Esse foi o meio que Deus empregou. Significa que Deus fez Cristo respon­sável por nossos pecados. Eles foram colocados sobre Cristo, e Deus tratou deles e os puniu ali, e uma vez que Ele puniu nossos pecado em Cristo, em Seu corpo sobre a cruz, Ele pode nos perdoar com justiça. Como vemos, esta é uma doutrina profunda. É uma declaração arriscada do apóstolo, mas isso precisa ser dito, e vou repetir. Deus, sendo justo, santo e eterno, não podia per­doar o pecado do homem sem castigá-lo. Ele disse que iria puni-lo, então Ele precisa puni-lo* — e, bendito seja o Seu nome, Ele o puniu! Ele é justo, portanto, e o justificador daquele que crê em Jesus. O pecado foi punido, por isso Deus, que é justo e santo, pode perdoar o pecado.

Como, então, isso funciona? Desta maneira: Deus aceita esta justiça de Cristo, esta justiça perfeita face a face com a lei que Ele honrou em todos os aspectos. Ele a guardou e obedeceu e levou seu castigo. A lei foi totalmente satisfeita. Este é o caminho de salvação de Deus, diz Paulo. Ele nos dá a justiça de Cristo. Se vemos a nossa necessidade, e vamos a Deus e a confessamos, Ele nos dá a justiça de Seu próprio Filho. Ele imputa a justiça de Cristo a nós que cremos nEle, e nos considera justos, e nos declara justos nEle. Esse é o caminho da salvação, o caminho cristão de salvação, o caminho de salvação através da justificação pela fé. E se resume nisto: que eu não vejo, nem creio nem olho para nada e ninguém a não ser o Senhor Jesus Cristo. Gosto da ma­neira como Paulo o expressa. Ele pergunta: "Onde está logo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé". "Oh, judeus tolos", diz Paulo. "Vocês se gabam do fato que são circuncidados, e que têm os oráculos de Deus, e que são o povo de Deus. Precisam parar com isso. Vocês não podem descansar no fato de que têm esta tradição e que são filhos de Israel. Não há jactância — precisam se basear exclusivamente no Senhor Jesus Cristo e Sua obra perfeita. O judeu não é superior ao gentio neste aspecto. "Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus". Olhamos para Cristo, e para Cristo somente, e não para nós mesmos, em nenhum aspecto que seja.

Para tornar isto bem prático, quero dizer que há um meio muito simples de alguém se testar a si mesmo, para saber se realmente crê nisso. Nós nos revelamos por nossas palavras. O Senhor mesmo disse que seríamos justificados por nossas palavras — e como é verdade! Eu já tive que abordar este ponto com muitas pessoas, explicando o caminho da justificação pela fé, mos­trando como é tudo em Cristo, e que Deus nos confere a justiça dEle. E depois de explicar tudo, eu digo: "Vocês entenderam isso? Vocês crêem nisso?" E a resposta é "sim". Então eu digo: "Então estão prontos para dizer que são cristãos?" E eles hesitam. E eu sei então que não entenderam, e pergunto: "O que houve? Por que estão hesitando?" E cada um responde: "Eu não sinto que sou bastante bom". E eu percebo que não entenderam nada. Ainda estão pensando em termos de si mesmos; sua idéia ainda é que precisam ser bons para serem cristãos, precisam ser bons para serem aceitos por Cristo. Eles têm que fazê-lo! "Não sou bastante bom". Parece muito humilde, mas é uma mentira do diabo, e uma negação da fé. Amigo, você acha que está sendo humilde. Mas nunca será suficientemente bom; ninguém jamais foi bastante bom,

A essência da salvação cristã é dizer que Ele é suficientemente

bom, e eu estou nEle!

Enquanto você continuar pensando em si mesmo, dizendo: "Ah, sim, eu gostaria mas não sou bom o suficiente; sou um pecador, um grande pecador", você está negando a Deus, e nunca vai ser feliz. Vai continuar se sentindo abatido e perturbado em sua alma. Você vai pensar em certas ocasiões que está melhorando, para logo descobrir que não é tão bom quanto pensava. Ao ler as biografias dos santos, você percebe que é um fracasso. Daí fica perguntando: "Que posso fazer? Continuo sentindo que não sou tão bom quanto devia ser". Esqueça-se, esqueça tudo a respeito de si mesmo! É claro que você não é bom o suficiente — e nunca o será! O caminho cristão de salvação lhe diz isto — que não importa o que você foi ou o que fez. Como posso explicar isto com clareza? Tento comunicá-lo do púlpito todo domingo, pois creio que é a coisa que está privando muitas pessoas do gozo do Senhor. Não importa que você tenha ido quase às profun­dezas do inferno, ou se é culpado de homicídio ou qualquer outro pecado vil, não importa quando se trata de justificação perante Deus. Você não é mais perdido do que a pessoa mais respeitável e correta do mundo. Você acredita nisso?

Há um outro meio de se testar a si mesmo. Você crê que com referência à salvação e justificação diante de Deus, todas as nossas habituais distinções são demolidas de uma vez, e que o que determina se somos pecadores ou não, não é o que fizemos, e sim nosso relacionamento com Deus? Eu digo, portanto, que este é o teste — que você reconheça prontamente e declare com firmeza que está olhando para Cristo, e Cristo somente, e a nada e ninguém mais, e que deixe de levar em consideração certos peca­dos e certas pessoas. Não olhe para nada nem para ninguém, a não ser Jesus Cristo, e diga:

Em  nada  ponho  a minha  fé

Senão no sangue de  Jesus.

No sacrifício remidor,

No sangue do meu Redentor.

A minha fé e o meu amor Estão firmados no Senhor.

E você precisa crer de tal forma que possa ir além, decla­rando com santa convicção:

Seu juramento é mui leal, Abriga-me no temporal; Ao vir cercar-me a tentação, É Cristo a minha salvação.

Você gostaria de se livrar dessa depressão espiritual? A pri­meira coisa que precisa fazer é dizer adeus de uma vez por todas ao seu passado. Compreenda que ele foi coberto e apagado em Cristo. Nunca mais olhe para trás para os seus pecados. Diga: "Está consumado! Eles foram cobertos pelo sangue de Cristo". Esse é o primeiro passo. Tome-o, e acabe com toda essa conversa sobre "ser bom", e olhe para o Senhor Jesus Cristo. Somente então é que verdadeira felicidade e alegria poderão ser suas! Você não precisa decidir viver uma vida melhor, ou começar a jejuar, se esforçar e orar. Não! Diga apenas:

Descanso a minha fé nAquele

Que morreu para expiar minhas transgressões.

Dê o primeiro passo, e descobrirá que imediatamente vai começar a experimentar uma alegria e uma liberdade que nunca conheceu antes em sua vida. "Concluímos pois que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei". Bendito seja o nome de Deus por uma salvação tão maravilhosa para pecadores de­sesperados.

 

3. VEJO OS HOMENS COMO ÁRVORES QUE ANDAM

"E chegou a Betsaida; e trouxeram-lhe um cego, e rogaram-lhe que lhe tocasse. E, tomando o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia; e, cuspindo-lhe nos olhos, e impondo-lhe as mãos, perguntou-lhe se via alguma coisa. E, levantando ele os olhos, disse: Vejo os homens; pois os vejo como árvores que andam. Depois tornou a pôr-lhe as mãos nos olhos, e ele, olhando firmemente, ficou restabelecido, e já via ao longe e distintamente a todos. E mandou-o para sua casa, dizendo: Não entres na aldeia".

Marcos 8:22-26

Quero chamar sua atenção para este incidente, como parte de nossas considerações sobre o tema que estamos examinando e que denominei "depressão espiritual".

Estamos considerando este assunto, não somente porque é um fato triste e trágico que um cristão possa se sentir deprimido e miserável, mas também por causa da situação geral da Igreja atualmente. Não hesito em afirmar, novamente, que uma das razões por que a Igreja Cristã exerce tão pouca influência no mundo moderno, é que tantos cristãos estão nesta condição. Se todos os cristãos começassem a agir e a viver conforme o Novo Testamento ensina, a Igreja não enfrentaria problemas para evangelizar. A questão se resolveria por si mesma. É porque estamos falhando como cristãos em nossa vida diária, comportamento e testemunho, que a Igreja exerce tão pouca influência e tão poucos são atraídos a Deus através do Senhor Jesus Cristo. Portanto, por esse motivo tão premente, é imprescindível que tratemos desta questão.

Já fizemos uma análise geral do problema, e no capítulo ante­rior consideramos um aspecto específico dele. Vimos que há alguns cristãos nesta condição porque nunca realmente entenderam com clareza a grande doutrina básica da justificação pela fé. Na ver­dade, essa foi a causa de todo o problema antes da Reforma protestante. A Reforma trouxe paz, felicidade e alegria à vida da Igreja, de uma forma que ela não tinha conhecido desde os pri­meiros séculos, e tudo aconteceu porque a doutrina básica da justificação pela fé foi redescoberta. Ela fez Martinho Lutero se regozijar e cantar, e ele por sua vez foi usado para levar outros a discernir esta grande verdade. Ela produziu essa grande alegria na Igreja; e, se por um lado hesitamos em declarar que aqueles que não entenderam esta questão com clareza não sejam cristãos, por outro lado, é um fato que no momento que a enten­dem, imediatamente deixam de ser cristãos miseráveis e se tornam cristãos radiantes.

Vamos passar agora para o passo seguinte, e quero conside­rá-lo à luz deste extraordinário incidente na vida e no ministério do nosso bendito Senhor, registrado em Marcos 8:22-26. Obser­varão imediatamente que estamos tratando de um caso completa­mente diferente; e este quadro ilustra isso de forma bastante clara. Em vários aspectos é o mais extraordinário de todos os milagres realizados por nosso Senhor e Salvador. Lembram-se dos detalhes do que Ele fez por esse homem cego? Ele o tomou pela mão, levou-o para fora da aldeia, cuspiu nos seus olhos, impôs as mãos sobre ele, e então perguntou ao homem se podia ver alguma coisa. O homem disse: "Sim, vejo. Vejo os homens como árvores andando". Então o Senhor pôs as mãos novamente sobre os olhos do homem e desta vez a sua vista foi restaurada, e ele "viu distintamente".

Isto, obviamente, é algo de significação muito profunda. O que aconteceu neste caso não foi acidental. Temos outros exemplos em que o Senhor curou pessoas cegas, e é evidente que Ele poderia ter curado este homem instantaneamente, dizendo apenas: "Recebe a vista". Nosso Senhor tinha esse poder; nada era impossível para Ele. Já tinha feito isso antes, e podia fazê-lo novamente. Então, o que Ele fez aqui foi feito deliberadamente e com um propósito. Nada que o Senhor Jesus fez foi feito a esmo ou acidentalmente. Todas as Suas ações eram deliberadas e quando Ele mudava Seu método, sempre tinha uma razão muito boa para fazer isso. Não havia nada particularmente difícil neste caso; a variação no trata­mento não era causada por isso. Era devida ao plano determinado pelo próprio Senhor, de operar o milagre desta forma a fim de ensinar uma lição e comunicar uma certa mensagem. Em outras palavras, todos os milagres do Senhor foram mais do que simples eventos — de certa forma, eles também foram parábolas. Isso não quer dizer que não cremos nos incidentes em si como sendo fatos reais na história. Estou simplesmente declarando que um milagre é também uma parábola, e se isso é verdade a respeito de todos os milagres, é especialmente verdade a respeito deste aqui. De fato, pois o Senhor obviamente mudou o método aqui a fim de ensinar uma lição vital e importante.

Eu concordo com aqueles que sugerem que talvez a lição principal aqui tivesse em vista particularmente os discípulos. Lem­bram-se do que aconteceu antes? Eles se esqueceram de levar pão no barco, e por isso tinham apenas um consigo. Começaram então a se preocupar com isso, e ficaram perturbados. Nosso Senhor ao falar com eles no barco, disse: "Guardai-vos do fermento dos fariseus e do fermento de Herodes"; e eles arrazoavam entre si, dizendo: É porque não temos pão". Visto que Ele mencionou a palavra "fermento", pensaram que ele estava falando de pão! Eram literalistas, faltava-lhes entendimento espiritual, e por isso a pala­vra "fermento" fez com que pensassem apenas em pão e no fato de terem se esquecido de levar um suprimento. Por essa razão estavam perturbados e apreensivos, e o Senhor lhes fez uma série de perguntas penetrantes, terminando com esta: "Não compreen­destes ainda?" É como se dissesse: "Aqui estou eu, pregando a vocês e lhes ensinando, e parece que ainda não entendem. Estão perturbados porque têm somente um pão, e no entanto testemu­nharam dois milagres, os quais provam que com apenas alguns pães e peixes eu posso alimentar milhares de pessoas; como é que ainda não entendem?" Eu creio que Ele tratou do homem cego daquela maneira a fim de lhes dar uma imagem deles mesmos. Ele adorou esta técnica registrada aqui, para que os discípulos pudessem se ver a si mesmos, como realmente eram.

Mas há um sentido mais profundo aqui; é uma lição perma­nente para o povo de Deus. É uma mensagem terrível. Estou ansioso para chamar sua atenção para isso porque há muitas pessoas que são como este homem, e há muitas pessoas que parecem ainda estar no primeiro estágio que este homem atravessou, no processo de ser curado. Nosso Senhor cuspiu nos seus olhos e perguntou: "Pode ver alguma coisa?" E ele respondeu: "Vejo os homens, como árvores andando". Entendem a sua situação? É difícil des­crever este homem. Não podemos mais dizer que ele é cego. Não podemos dizer que ainda é cego, porque pode ver; mas hesitamos em dizer que ele pode ver, porque vê os homens como árvores andando. Então — ele é cego, ou não é? Quase sentimos que a única coisa que se pode dizer, é que ele ao mesmo tempo é cego, e não é. Ele não é uma coisa nem outra.

Ora, essa é precisamente a condição que estou ansioso por abordar aqui. Eu me preocupo com aqueles cristãos que se sentem inquietos e infelizes e miseráveis por causa desta falta de clareza. É quase impossível defini-los. Vocês às vezes falam com uma pessoa assim, e pensam: "Este homem é um cristão". E então o encontram novamente, e ficam em dúvida, e pensam: "Certamente ele não pode ser cristão, se fala dessa maneira ou age dessa forma". Cada vez que se encontram com esse homem, a impressão que têm dele é diferente; e nunca têm certeza se ele realmente é um cristão ou não. Vocês não se satisfazem em dizer que ele vê, ou  que não vê. Além disso,  o problema é que não só os outros pensam isso a respeito de pessoas desse tipo, mas muitas vezes elas sentem isso a respeito de si mesmas. Eu digo isso a favor delas, pois se sentem infelizes porque não têm certeza a respeito da sua própria situação. Às vezes, depois de assistir a um culto, elas dizem: "Sim, eu sou um cristão; eu creio nisso". Então alguma coisa acontece, e passam a pensar: "Não posso ser um cristão. Se eu fosse cristão, não teria tais pensamentos, ou não sentiria o desejo de fazer as coisas que faço". Por isso sentem-se tão perplexas a respeito de si mesmas, como os outros cristãos que as observam. Ora sentem que são cristãos, ora sentem que não são. Parecem saber o suficiente a respeito do cristianismo para não sentirem prazer nas coisas do mundo; mas não sabem o bastante para se sentirem felizes consigo mesmos. Não são "nem quentes, nem frios". Eles vêem, e ao mesmo tempo não vêem. E acho que concordarão comigo que estou descrevendo a situação de um grande número de pessoas. É uma situação dolorosa, e minha mensagem, como podem imaginar, é que ninguém deve viver nessa situação, nem deve permanecer nela.

Vamos seguir o ensino do nosso Senhor. A melhor maneira de fazer isso é colocar o caso dessas pessoas numa forma diferente. Tenho falado até aqui de modo geral. Quero agora entrar em alguns aspectos específicos para ajudar essas pessoas a se verem a si mesmas, e também para ajudar a todos nós a discernir esta condição. O que é que essas pessoas podem ver? Elas vêem algu­ma coisa. Este homem disse: "Sim, eu vejo, vejo homens, mas alguma coisa está errada, porque os vejo como árvores andando".

O que essas pessoas vêem? Muitas vezes elas sabem que alguma coisa está errada. Sentem-se infelizes consigo mesmas. Alguma coisa aconteceu com elas que lhes deu um sentimento de insatisfação a respeito de si mesmas. Houve uma época em que se sentiam perfeitamente felizes com as coisas como eram. Levavam a sua vida como queriam, e pensavam que não havia nada de errado com isso. Mas não são mais assim. Alguma coisa lhes aconteceu, que lhes deu uma percepção completamente dife­rente do tipo de vida que estava vivendo. Não preciso entrar em detalhes; basta que pensem em pessoas que estão vivendo este tipo de vida, pessoas que devoram mexericos de jornal, e conside­ram maravilhosa e invejável a vida da alta sociedade, e sentem que "aquilo, sim, é que é vida". Mas estas pessoas não são mais assim. Começaram a perceber o vazio, a inutilidade, a completa falsidade  daquilo   tudo,  e  sentem-se  profundamente   insatisfeitas com esse tipo de vida. Percebem que, mesmo à parte de tudo o mais, não é uma escolha inteligente, que é um tipo de vida completamente vazia. Tornam-se infelizes com sua situação, dizen­do que não podem continuar assim. Há muitas pessoas nessa situa­ção, e muitas delas passam por esse estágio. É um estágio em que o homem vê que tudo o mais está errado, embora ainda não tenha visto que o cristianismo está certo. E isso muitas vezes o leva ao cinismo, e até mesmo ao desespero.

Tenho visto muitos exemplos dramáticos disso. Lembro muito bem o caso de um homem que era um cirurgião extraordinário em Londres, de muita proeminência. Subitamente, para assombro de lodos que o conheciam, ele anunciou que tinha desistido de tudo c se tornara um médico de navio. O que aconteceu com esse homem foi o seguinte: ele era muito famoso em sua profissão, e tinha ambições perfeitamente legítimas com respeito a certas honras cm sua profissão. Mas desapontamentos a esse respeito de repente lhe abriram os olhos para toda a situação, e ele concluiu que não havia satisfação duradoura na vida que estava levando. Ele perce­beu tudo isso, mas não se voltou para Cristo. Simplesmente tornou-se cínico, e deixou tudo. E tem havido outros exemplos notáveis de homens que abriram mão de tudo e foram para algum lugar isolado onde encontraram uma certa medida de paz e felicidade, sem se tornarem cristãos. Essa é uma possibilidade.

Mas eles podem até mesmo ir além, e perceber as qualidades superiores da vida cristã, como estão expressas no Sermão do Monte. Dizem: "Não há dúvida que a vida cristã é única vida real; se tão somente todos vivessem assim!" Talvez tenham lido as biografias dos santos e reconhecido que esses homens tinham algo maravilhoso em suas vidas. Houve um tempo em que não tinham qualquer interesse nisso, mas agora passaram a compreen­der que a vida descrita no Sermão do Monte é a única que vale a pena viver; e também, lendo I Coríntios, capítulo 13, dizem: "Se apenas todos vivêssemos assim, este mundo seria um paraíso". Eles passaram a perceber isso com muita clareza.

E podem até mesmo ter ido mais além, concordando que Jesus Cristo é a única esperança, que Ele é, de algum modo, o Salvador. Notem como expressei isto: que Jesus Cristo é, "de algum modo", o Salvador. Chegaram a ver que Ele poderia aju­dá-los, e que o cristianismo é a única esperança para o mundo, e de algum modo percebem e sabem que essa Pessoa — Jesus — pode ajudá-los. Houve um tempo em que não estavam interessados, quando O puseram de lado, sem qualquer consideração mais séria; mas isso mudou. Compreendendo o vazio deste mundo, e vendo o tipo de vida vivida por certos cristãos, e sabendo que Jesus Cristo é a razão dessa diferença, percebem que de algum modo Ele deve ser o Salvador. Por isso estão interessados nEle, e querem saber mais a Seu respeito. Até aí eles vêem claramente.

Podemos dizer ainda mais sobre eles, isto é, ao contrário das pessoas de que falamos no capítulo anterior, estes indivíduos perceberam que não podem salvar a si mesmos. O problema do homem que não tem uma compreensão clara da justificação pela fé é que ele ainda está tentando se justificar; mas estes indivíduos sabem que não podem fazer isso. Tentaram muitas vezes, e estão insatisfeitos; e, vendo a verdadeira natureza da qualidade de vida cristã, compreendem que o homem não pode alcançar esse ideal. Compreendem que não podem salvar a si mesmos.

"Certamente", alguém dirá, "você foi longe demais, você lhes dá crédito demais!" Não! Eu estou simplesmente descrevendo o que essas pessoas podem ver, da mesma forma que aquele homem cego, quando Jesus lhe perguntou: "Podes ver?" respondeu: "Sim". Ele certamente podia ver, podia ver homens. E essas pessoas che­garam a ver alguma coisa, talvez até mesmo chegaram a ver todas estas coisas que estou descrevendo aqui.

Todavia, preciso dizer também que ainda estão confusas, que ainda não podem ver com clareza. Podem apenas ver homens "como árvores andando". Em que aspecto isto é verdade sobre elas? O problema aqui é saber o que deixar de fora; mas eu vou tentar selecionar o que considero as três coisas mais impor­tantes.

A primeira coisa é que essas pessoas não têm uma compreen­são clara de certos princípios. É por isso que tomei o cuidado de dizer que compreenderam que Cristo é "de algum modo" o Salvador. Mas elas não compreendem de que forma Ele é o Sal­vador. Não têm uma compreensão clara, por exemplo, da morte de Cristo, e sua absoluta necessidade. Não têm certeza sobre a doutrina do novo nascimento. Se falarmos com elas a respeito destas coisas, vamos descobrir que estão cheias de confusão e perplexidade. Essas pessoas dizem que não vêem, e estão certas! Elas não vêem, elas não entendem por que Cristo teve que morrer, e não vêem a necessidade do novo nascimento. Já temos visto esse tipo de gente; pessoas que estão descontentes com sua vida, e louvam a vida cristã; estão sempre prontas a falar sobre Cristo como Salvador, mas ainda "não podem ver" certas verdades. O resultado é que se sentem perturbadas, infelizes e miseráveis.

A segunda coisa que não vêem claramente é que seu coração não é totalmente envolvido. Ainda que possam ver muitas coisas, sua felicidade realmente não está no cristianismo nem na posição cristã. Por alguma razão, não encontram alegria verdadeira na fé cristã. Precisam constantemente trazer isso à memória, e às vezes tentam forçar essa atitude em si mesmos. Não são felizes; sua alegria — se é que têm alguma — ainda parece provir de outras fontes. Seu coração não é completamente envolvido. E eu men­ciono estas coisas aqui porque espero poder tratar delas detalha­damente mais adiante. No momento estou dando uma visão resu­mida da condição geral.

A terceira coisa a respeito das pessoas que estamos discutindo, c que sua vontade está dividida. São rebeldes, e não conseguem entender por que é que um homem, só porque se declara cristão, (em que fazer certas coisas e deixar de fazer outras. Acham que isso é ser tacanho. Por outro lado, condenam sua vida passada e aceitam a vida cristã de forma geral. Reconhecem Cristo como Salvador; todavia, quando se trata de aplicar Seus ensinos, ficam confusas e não conseguem discernir a questão com clareza. Estão sempre argumentando, sempre perguntando se é certo fazer isto ou aquilo. Há uma ausência de tranquilidade na esfera da vontade. Não estou apresentando uma caricatura dessas pessoas. Estou ciando uma descrição muito literal, exata e detalhada delas. Muitos de nós passamos por este estágio, e sabemos disso por experiência própria; e, como o Senhor adotou este método no caso do homem cego, Ele parece fazer coisa similar na conversão. Há pessoas que vêem as coisas claramente de uma vez; mas há outras que passam por estágios. Estamos tratando aqui daquelas que atravessam este estágio específico, e é assim que eu descreveria sua condição.

Quero aqui passar para o ponto seguinte. Por que, quando o Senhor Jesus estava ensinando, Ele apresentou aquela série de perguntas aos discípulos, e então demonstrou tudo desta forma dramática, através deste incidente? Ou, para expressá-lo de uma forma diferente, quais são as causas desta condição? Por que deveria alguém passar por esta situação indefinida, cristão e não cristão, como se fosse "sim e não" ao mesmo tempo? Não há dúvida que às vezes a responsabilidade é inteiramente do evange­lista usado para despertá-los. Os evangelistas muitas vezes são a causa do problema. Na sua ansiedade de ver resultados, muitas vezes causam este problema.

Mas  nem sempre  é  culpa do  evangelista;   com frequência a culpa é da própria pessoa, e vou mencionar algumas das maio­res razões por que "acaba nesta situação. Primeiro, em geral essas pessoas protestam  contra  definições  muito precisas e limitadas. Elas não gostam de nada que seja muito claro e absoluto. Não precisamos entrar nas razões específicas disso. Eu acho que elas se opõem à clareza de pensamento e definição por causa de suas exigências. O tipo mais confortável de religião é sempre uma reli­gião vaga, nebulosa e incerta, cheia de fórmulas e rituais. Não me surpreende que o catolicismo romano atraia certas pessoas. Quanto mais vaga e indefinida a sua religião, mais confortável ela será. Não há coisa mais incômoda do que verdades bíblicas que exigem decisões. Por isso, essas pessoas dizem: "Você está sendo muito rígido, está sendo muito legalista. Não, não, eu não gosto disso. Eu creio no cristianismo,  mas você está  sendo muito rígido e tacanho em seus princípios. Vocês conhecem esse tipo de pessoa. Mas, se começarem com a teoria que o cristianismo não é definido, não se surpreendam se acabarem como este homem, vendo "homens, como  árvores  andando".  Se começarem  sua vida e experiência cristã dizendo que não querem  uma perspectiva exata ou uma definição precisa para sua fé, vocês provavelmente não a terão! A segunda causa, e muitas vezes o grande problema com essas pessoas, é que elas nunca aceitam completamente os ensinos e a autoridade das Escrituras. Suponho que, em última análise, esta é a grande causa do problema. Elas não se submetem totalmente à autoridade da  Bíblia.  Se  tão  somente  nos  aproximássemos  dela como crianças, com uma aceitação sem reservas, permitindo que a Bíblia fale conosco, este problema não existiria. Essas pessoas não fazem isso ;elas misturam suas próprias idéias com verdades espirituais. Naturalmente, elas afirmam que se baseiam nas Escri­turas, porém — e esta é a palavra fatal — imediatamente passam a modificá-las. Aceitam certas idéias bíblicas, mas há outras idéias e filosofias, remanescentes de seu velho estilo de vida, que dese­jam conservar consigo. Misturam idéias naturais com idéias espiri­tuais. Dizem gostar do Sermão do Monte e de I  Coríntios  13; declaram crer em Cristo como Salvador, mas argumentam que não devemos ser muito extremistas nestas questões, que devemos ser moderados. Então começam a modificar as Escrituras. Recusam-se a aceitar sua autoridade em todos os aspectos — na pregação e na vida, na doutrina e na sua visão do mundo. "As circunstâncias mudaram", dizem; "e a vida não é mais o que costumava ser. Estamos vivendo no século vinte!" E mudam a Bíblia aqui e ali, adaptando-a às suas próprias idéias, em vez de aceitarem a doutrina das Escrituras do começo ao fim, reconhecendo a irrelevância dessa conversa sobre o século vinte. A Bíblia é a Palavra de Deus, ela é eterna, e porque ela é a Palavra de Deus, devemos nos submeter a ela, e confiar que o Senhor use Seus próprios métodos à Sua própria maneira.

Uma outra causa deste problema é que quase invariavel­mente suas vítimas não estão interessadas em doutrina.. Vocês estão interessados em doutrina? Às vezes essas pessoas são tolas ao ponto de contrastar o que consideram "leitura espiritual das Escrituras" com doutrina. Dizem que não estão interessadas em doutrina, que gostam de exposição bíblica mas não de doutrina. Declaram crer nas doutrinas que estão expostas na Bíblia, e que provém da Bíblia, porém (é incrível, mas é verdade) elas estabelecem este contraste fatal entre exposição bíblica e dou­trina. No entanto, qual é o propósito da Bíblia, senão de apre­sentar doutrina? Qual é o valor da exposição bíblica, se ela não nos levar à verdade? Mas não é difícil entender sua posição. É a doutrina que fere, é a doutrina que define as coisas. É uma coisa apreciar as histórias e se interessar por palavras e nuanças de sentido. Isso não perturba, não focaliza a atenção no pe­cado, nem exige uma decisão. Podemos relaxar e apreciar isso; contudo a doutrina fala conosco e exige uma decisão. Doutrina é verdade, e ela nos examina e nos prova e nos força a uma auto-análise. Então, se começamos com objeções à doutrina como tal, não é de surpreender que não vejamos com clareza! O propósito de todos os credos elaborados pela Igreja Cristã, bem como todas as confissões de fé e doutrina, ou dogmas, foi de capacitar as pessoas a verem com clareza. Foi por isso que foram formulados. Nos primeiros séculos do cristianismo o evangelho foi pregado de geração a geração. Mas algumas pessoas começaram a ensinar coisas erradas. Por exemplo, alguns começaram a dizer que Cristo realmente não veio em forma humana, e sim que era uma aparição espiritual. Uma variedade de idéias começou a sur­gir, levando muitos à confusão e perplexidade. Por isso, a Igreja começou a formular suas doutrinas na forma do Credo dos Após­tolos e outros. Vocês acham que os país da Igreja fizeram essas coisas   simples   porque   gostava   de   fazê-las?   Não.   Eles   tinham em vista um propósito muito mais prático. A verdade deve ser definida e preservada, para que as pessoas não andem em erros. Então, se temos objeções à doutrina, não é da admirar que não vemos as coisas com clareza, ou que nos sentimos infelizes e miseráveis. Não há nada que ajude tanto um homem a ter clareza em sua visão espiritual, como uma compreensão das doutrinas da Bíblia.

A última explicação desta condição que eu mencionarei aqui é o fato que muitas pessoas não captam as doutrinas das Escrituras em sua ordem correta. Este é um ponto importante, e espero poder me aprofundar nele mais adiante. Mas sei disso por experiência pessoal. É importante que tomemos as doutrinas das Escrituras em sua ordem certa. Se tomarmos a doutrina da regeneração antes da doutrina da expiação, teremos problemas. Se estamos interessados no novo nascimento e em termos uma nova vida, antes que tenha­mos uma visão clara de nossa posição diante de Deus, cairemos em erro, e eventualmente nos sentiremos miseráveis. O mesmo se aplica se tomarmos santificação antes da justificação. As doutrinas devem ser tomadas na ordem certa. Em outras palavras, podemos resumir isso tudo, dizendo que a grande causa do problema que estamos considerando é uma recusa em persistir e examinar as coisas até o fim. É o perigo fatal de querer aproveitar algo antes de realmente captá-lo e tomar posse dele. Homens e mulheres que se recusam a. perscrutar as coisas, que não querem aprender nem querem ser ensinados, por várias razões — às vezes em auto-defesa — em geral são as pessoas que se tornam vítimas desta confusão espiritual, esta falta de clareza, este problema de ver e não ver ao mesmo tempo.

Isso nos traz à última pergunta. Qual é a cura deste problema? Por enquanto vou dar princípios, apenas. O primeiro é evidente: acima de tudo evitem declarar prematuramente que sua cegueira foi curada. O homem do nosso texto deve ter sido tentado a fazer isso. Ele tinha sido cego. O Senhor cuspiu em seus olhos e disse: "Podes ver?" O homem respondeu: "Posso". Como ele devia ter se sentido tentado a sair correndo e anunciando a todo mundo: "Posso ver!" De certa forma, ele podia ver, mas sua visão era incompleta e imperfeita, e era vital que não desse testemunho antes de ver claramente. É uma grande tentação, e eu posso entendê-la, mas fazer isso é fatal. Muitos estão fazendo tal coisa atualmente (e são incentivados e encorajados a fazer isso), proclamando que vêem, quando é tão claro para os outros que eles não vêem claramente, e realmente ainda estão muito confusos. E acabam preju­dicando muita gente. Descrevem homens a outros "como árvores andando", e acabam confundindo outras pessoas!

A segunda coisa é o oposto da primeira. A tentação do pri­meiro é correr e proclamar que pode ver, antes de poder enxergar claramente; mas a tentação do segundo é se sentir totalmente sem esperança, e dizer: "Não adianta continuar. Puseste cuspe nos meus olhos, e me tocaste. De certa forma eu vejo, mas vejo homens como se fossem árvores andando". Pessoas assim muitas vezes vêm falar comigo, dizendo que não conseguem ver a verdade com clareza. Em sua confusão ficam desesperadas e perguntam: "Por que não posso ver? Isso tudo não adianta". Param de ler suas Bíblias, param de orar. O diabo já desencorajou muitos com suas mentiras. Não dêem atenção a ele!

Qual, então, é a cura? Qual é o caminho certo? É ser sincero, e -responder a pergunta do Senhor com honestidade e franqueza. Este é o segredo da questão. Jesus Se voltou para o homem, di­zendo: "Podes ver?" E o homem disse, com absoluta franqueza: "Eu vejo, mas vejo homens como se fossem árvores andando". O que salvou este homem foi sua honestidade. A pergunta, então, é: qual é nossa posição? O propósito deste sermão é justamente tratar desta pergunta: qual é nossa posição? O que vemos, real­mente? Vemos as coisas com clareza? Somos felizes? Vemos real­mente? Ou vemos, ou não vemos — e precisamos saber exatamente qual é nossa posição. Conhecemos a Deus? Conhecemos Jesus Cristo? Não somente como nosso Salvador, mas será que O conhe­cemos realmente? Estamos nos regozijando com "alegria indizível e cheia de glória"? Esse é o cristão do Novo Testamento. Podemos ver? Vamos ser francos; vamos enfrentar a questão, e vamos fazê-lo com absoluta honestidade.

E depois? Bem, o último passo é submeter-se a Ele, submeter-se a Ele tão completamente como este homem fez. Ele não fez objeções ao tratamento suplementar, mas regozijou-se com o mesmo, e creio que se o Senhor não tivesse dado aquele passo adicional, o homem teria Lhe pedido que o fizesse. E você, meu amigo, pode fazer o mesmo. Venha à Palavra de Deus. Pare de fazer perguntas. Comece com as promessas, em sua ordem certa. Diga: "Quero a verdade, não importa o preço". Ligue-se a ela, submeta-se a ela, submeta-se totalmente como uma criança e implore que Ele lhe dê visão clara, visão perfeita, e que o faça, uma pessoa completa. E ao fazer isso, é meu privilégio lembrar você que Ele pode fazê-lo.

Sim, e mais, eu lhe prometo, em Seu bendito nome, que Ele vai fazê-lo. Ele nunca deixa nada incompleto. Esse é o ensino. Ouça-o. Este homem foi curado e restaurado, e passou a ver tudo distinta­mente. A posição cristã é uma posição clara. Não fomos destinados a permanecer numa situação de dúvida e apreensão, de incerteza e infelicidade. Você acha que o Filho de Deus veio do céu, viveu entre nós e fez tudo que a Bíblia registra, morreu numa cruz e foi sepultado e ressuscitou; que Ele subiu aos céus e enviou o Espírito Santo, para nos deixar num estado de confusão? É impossível! Ele veio para que pudéssemos ver com clareza, para que pudés­semos conhecer a Deus. Ele veio para nos dar vida eterna, "e a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus ver­dadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste". Se você se sente infeliz a respeito de si mesmo, como resultado deste exame, busque ao Senhor, busque a Sua Palavra, espere nEle, suplique a Ele, apoie-se nEle, ore a Ele com as palavras do hino:

Santo Espírito, luz divina,

Ilumina a minha alma;

Palavra de Deus, luz interior,

Desperta meu espírito, abre meus olhos.

Ele Se comprometeu a fazê-lo, e Ele o fará, e você não mais será um cristão incerto, vendo e não vendo; mas será capaz de dizer: "Eu vejo; vejo nEle tudo que necessito, e mais, e sei que pertenço a Ele".

 

4. MENTE, CORAÇÃO E VONTADE

"Mas graças a Deus que, tendo sido servos do pecado, obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes chamados".

Romanos 6:17

Esta é a versão deste versículo conforme se encontra na Edição Revista e Corrigida da tradução da Bíblia em Português. Na Versão Revisada da língua inglesa, encontramos a expressão "padrão de ensinamento" em vez de "forma de doutrina". Obviamente, as duas frases têm o mesmo significado, e chamo atenção para este versículo porque quero continuar nossa reflexão sobre a causa e a cura da "depressão espiritual" através dele.

Ao fazer isto, notaremos que as formas que este problema pode tomar parecem ser quase infinitas. Ele se apresenta de tantas formas e aspectos diferentes, que muitos tropeçam neste fato. Admiram-se que esta única doença, esta condição espiritual, possa apresentar tantos sintomas e manifestações diferentes, e é claro que a sua ignorância do problema pode levá-los à própria condição que estamos considerando. O tipo de pessoa que pensa que desde o momento que aceitamos o Senhor Jesus Cristo todos os nossos problemas ficam para trás, e "viveremos felizes para sempre" cer-tamente sofrerá de depressão espiritual algum dia. Somos levados a esta vida maravilhosa, a esta condição, pela graça de Deus. Mas não devemos esquecer que contra e acima de nós existe outro poder. Pertencemos ao reino de Deus, mas a Bíblia nos previne que somos confrontados por outro reino, que também é um reino espiritual, e que nos ataca e sitia a toda hora. Enfrentamos uma "luta da fé", e "não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais" (Efésios 6:12). Por isso, temos que estar preparados para a ocorrência desta condição que estamos considerando, e sua manifestação em todos os tipos de pessoas e cm muitas formas diferentes.

O que melhor caracteriza as atividades de Satanás é a sua astúcia. Ele não só é capaz e poderoso, ele é astuto; de fato, o apóstolo Paulo nos diz que, se for necessário, ele pode transformar-se num anjo de luz. O que ele mais deseja é arruinar e destruir a obra de Deus. E não há outra obra que ele mais deseja destruir do que a obra da graça de nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, desde o momento em que nos tornamos cristãos, passamos a ser objetos da atenção de Satanás. Por essa razão Tiago diz: "Meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações". Devemos nos regozijar, pois isto é uma prova da nossa fé. A partir do momento que nos tornamos cristãos o diabo tenta nos desanimar, e a melhor maneira para ele conseguir isso é fazer com que fiquemos abatidos, ou, segundo Charles Lamb, fazer com que soframos de "caxumba e sarampo" da alma. Cristãos desse tipo são como crianças doentias, que não crescem nem manifestam saúde e vigor; e qualquer cristão nessa condição é, de certa ma­neira, uma negação da sua fé, e isso agrada a Satanás. Por isso, ele está preocupado em produzir essa condição em nós e não há limites para as maneiras em que ela pode nos afetar, e como ela pode se manifestar em nós. Devemos ter em mente que as mani­festações dessa condição são as mais variadas possíveis.

Chamo sua atenção agora para outra causa geral da depressão espiritual, a qual foi mencionada no versículo que estamos consi­derando. Este versículo é uma descrição positiva do cristão, mas podemos usá-lo de forma negativa. A ausência de conformidade com a descrição apresentada neste versículo é uma das causas mais comuns da depressão espiritual. Este versículo oferece uma descri­ção absoluta do cristão. Paulo diz: "Vocês eram servos de Satanás, estavam sob o seu domínio. Estiveram nessa situação, mas não estão mais". Ele agradece a Deus por poder afirmar que, apesar de terem estado nessa situação, agora não estão mais. Por que não? Por esta razão: "Obedecestes de coração à forma de doutrina que vos foi entregue" ou "a que fostes entregues". Ora essa é a des­crição que o apóstolo faz de um cristão.

Notem que o apóstolo Paulo quer enfatizar a totalidade da vida cristã, o equilíbrio da vida cristã. É uma vida na qual há obediência — aí está a vontade, "de coração" — a emoção, a sensibilidade; "à forma de doutrina" — que veio à mente e ao entendimento. Assim, ao descrever o cristão, ele enfatiza que existe uma inteireza na sua vida. O homem está integralmente envolvido: sua mente, seu coração e sua vontade. Uma das causas mais co­muns da depressão espiritual é a falha em reconhecer que a vida cristã é uma vida integral, uma vida equilibrada. A falta de equilí­brio é uma das principais causas de problemas, discórdias e inquie­tações na vida de um cristão.

Mais uma vez devo indicar que a causa desta falta de equilí­brio, receio que muito frequentemente, cai sobre o pregador ou evangelista. Em geral, cristãos desequilibrados são produtos de pregadores ou evangelistas cuja doutrina não possui suficiente equi­líbrio, vigor ou integridade. Através dos nossos estudos, vemos cada vez mais como são importantes as circunstâncias do nasci­mento de um cristão. Às vezes penso que alguém deveria pesquisar e investigar o relacionamento entre a vida posterior do cristão e os meios ou métodos empregados na sua conversão. Tenho certeza que seria muito significativo e interessante. As crianças em geral herdam características dos pais, e recém-convertidos tendem a apre­sentar características parecidas com as pessoas que foram usadas por Deus na sua conversão. Além disso, o tipo de reunião na qual se deu a conversão tende a influenciar a vida posterior do cristão. Isto acontece com mais frequência do que imaginamos. Já mencio­namos isto num dos capítulos anteriores, e é muito importante em relação ao assunto que agora estamos considerando. É isto que explica a existência de diferentes tipos de cristãos que apresentam certas características. Todos os membros de um grupo em geral são muito parecidos, e existe um certo caráter comum entre eles, enquanto que outros são diferentes. Ora, até onde isto é uma reali­dade para nós, até que ponto possuímos estas características pe­culiares associadas a algum tipo particular de ministério, esta é a extensão da probabilidade de sermos vítimas desta falta de equilí­brio que, em última análise, vai se manifestar em infelicidade e miséria.

O apóstolo Paulo levanta este assunto, ao escrever aos cristãos de Roma, pois o mesmo sempre causa problemas de ordem prática. Não podemos saber ao certo se ele imaginou esta situação para poder rebatê-la, ou se ela realmente existia em Roma. Pode ser que realmente havia pessoas que diziam: "Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante?" Pode ser também que o apóstolo Paulo, após estabelecer sua doutrina da justificação pela fé, tenha pensado: "Há um perigo em deixar o assunto assim. Algumas pessoas poderão dizer: "Pois bem, deveremos então per­manecer no pecado, para que a graça seja mais abundante?" Ele diz que, onde o pecado abundou antes, a graça foi muito mais abundante. Havia pessoas na Igreja Primitiva que argumentavam assim, e ainda hoje existem pessoas que tendem a fazer a mesma coisa. Elas tomam a seguinte atitude: "Bem, conforme esta dou­trina, não importa o que o homem faça. Quanto mais ele peca, tanto mais Deus será glorificado ao perdoá-lo. Não importa o que cu faço, pois sendo cristão, estou coberto pela graça". Mas, o que o apóstolo Paulo nos diz sobre isso? Ele responde que só pode pensar assim quem não entende o ensinamento. A pessoa que com­preendeu o ensinamento nunca faria deduções deste tipo; seria impossível. Paulo responde imediatamente: "De modo nenhum; vocês que estão mortos para o pecado (é isto que venho' pregando), não podem mais viver nele". O cristão está agora "em Cristo", portanto ele não só morreu com Ele, mas também ressuscitou com Ele. Só pode fazer uma pergunta terrível como esta — "devemos permanecer no pecado para que a graças seja mais abundante?" — o homem que realmente não compreendeu o ensinamento. O objetivo do apóstolo neste capítulo é mostrar a importância de compreender o equilíbrio da verdade, a importância de tomar para si o evangelho como um todo e de ver que, se realmente o compreen­demos, ele nos levara inevitavelmente a certas consequências.

Gostaria de dividir o assunto resumidamente. Há certos prin­cípios enunciados aqui. O primeiro é que a depressão espiritual, ou infelicidade na vida cristã, é muitas vezes devida à falha em perceber a grandeza do evangelho. O apóstolo fala sobre "a forma de doutrina a que fostes entregues" e se refere ao "padrão de ensinamento". As pessoas muitas vezes são infelizes na vida cristã porque encaram o cristianismo e toda a mensagem do evangelho em termos inadequados. Algumas pessoas pensam que o cristia­nismo é meramente uma mensagem de perdão. Se lhes perguntarem o que é o cristianismo, responderão: "Se você crê no Senhor Jesus Cristo, os seus pecados são perdoados". E param por aí. Não vão além disso. Essas pessoas são infelizes devido certas coisas em seu passado, e ouvem dizer que Deus quer perdoá-las através de Cristo. Elas recebem o perdão e param ali mesmo — esse é todo o seu cristianismo. Outros concebem o cristianismo apenas como morali­dade. Estes acham que não têm necessidade de perdão, mas buscam um estilo de vida exaltado. Querem praticar o bem neste mundo, e para eles o cristianismo é um bom sistema moral e ético. Tais indivíduos estão destinados à infelicidade. Certos problemas, que não são resolvidos pela moralidade, inevitavelmente surgirão em suas vidas — a morte de um ente querido, problemas em algum relacionamento pessoal. A moralidade e a ética não podem ajudá-los nestes casos, e aquilo que eles consideram o evangelho é inútil nestas situações. Eles se tornam infelizes quando recebem algum golpe porque nunca tiveram uma visão adequada do evangelho. Tiveram somente uma visão parcial; viram somente um aspecto dele. Outros se interessam pelo cristianismo por acharem que é algo bom e bonito. Ele exerce um apelo estético sobre tais pessoas. É nesses termos que eles descrevem o evangelho, e toda a sua mensagem é para eles algo muito lindo e bom, e se sentem melhor ao escutá-lo.

Estou colocando todos estes pontos de vista parciais e incom­pletas em contraste com aquilo que o apóstolo menciona como "forma de doutrina", "padrão de ensinamento", a grande verdade que ele elabora nesta epístola aos Romanos com seus poderosos argumentos e proposições e. seus vôos de imaginação espiritual. Isso é o evangelho — todas as "infinidades e imensidades" (para citar uma frase de Thomas Carlyle) desta epístola, e das epístolas nos Efésios e aos Colossenses — esse é o evangelho. Devemos ter vima compreensão precisa destas coisas. Mas alguém pode dizer: "Quando falam sobre a epístola aos Efésios ou a epístola aos Co­lossenses, certamente você não estão falando sobre a mensagem do evangelho. Pela mensagem do evangelho, falamos às pessoas a res­peito do perdão dos pecados." Em certo sentido, isto está correto, mas em outro sentido, está errado. Eu recebi uma carta de um homem que assistiu aqui a uma reunião de domingo à noite e ele disse que fez uma descoberta; descobriu que num culto evange­lístico também havia algo para os convertidos. Ele disse: "Eu nunca linha compreendido que isso poderia acontecer. Não sabia que num mesmo culto, uma mensagem evangelística podia ser pregada nos não-crentes, e que ao mesmo tempo haveria uma mensagem para os convertidos, a qual poderia perturbá-los". Ora aquele ho­mem estava fazendo uma grande confissão. Ele estava me reve­lando qual era o seu ponto de vista do evangelho até aquele ponto. Tinha uma compreensão parcial, incompleta, selecionando apenas uma ou duas coisas. Não, a maneira certa de evangelizar é trans­mitir "todo o conselho de Deus". Mas as pessoas dizem que estão muito ocupadas, ou que não podem seguir tudo aquilo. Eu gostaria de lembrar-lhes que o apóstolo Paulo pregava esse tipo de coisa a escravos. "Não foram chamados muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento". Isto foi o que ele lhes deu — esta tremenda apresentação da verdade. O evangelho não é algo parcial ou frag­mentado; ele envolve a vida inteira, toda a história, o mundo inteiro. Ele nos fala sobre a criação e sobre o julgamento final, e tudo que está entre os dois. É uma visão completa da vida, e muitos são infelizes na vida cristã porque nunca compreenderam que esta maneira de viver trata da totalidade da vida do homem, e cobre cada aspecto de sua experiência.. Não há um aspecto da vida sobre o qual o evangelho não tem algo a dizer. A totalidade da vida deve estar debaixo da influência do evangelho porque ele mgloba tudo; o evangelho deveria controlar e governar tudo em nossa vida. Se não compreendemos isso, mais cedo ou mais tarde nos encontraremos numa situação infeliz. Muitos estão destinados a ler problemas porque se entregam a estas dicotomias não-bíblicas e prejudiciais, e só aplicam seu cristianismo a certos aspectos de suas vidas. Tais problemas são inevitáveis. Essa é a primeira coisa que vemos aqui. Devemos compreender a grandeza do evangelho, a sua vasta e eterna dimensão. Precisamos enfatizar muito mais as riquezas destes grandes absolutos da doutrina, e desfrutarmos delas.

Não devemos permanecer apenas nos quatro Evangelhos; é onde começamos, mas temos de ir em frente; e quando virmos isto em operação, e colocado dentro do seu grande contexto, compreende­remos o verdadeiro poder do evangelho, e como a nossa vida toda deve ser governada por ele.

, Isso nos traz ao segundo ponto, o qual é que como falhamos muitas vezes em compreender a grandeza e a amplitude da men­sagem, também falhamos em compreender que o homem deve estar envolvido nela, e por, ela, de forma total — "viestes a obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entregues". O homem é uma criatura maravilhosa; ele é mente, coração e vontade. Estes são os três principais elementos que constituem o homem. Deus lhe deu mente, coração e vontade pela qual ele pode agir. Ora, uma das maiores glórias do evangelho é esta: que ele envolve o homem todo. De fato eu vou ao ponto de afirmar que não existe outra coisa que faça o mesmo; somente este evangelho, esta visão completa da vida, da morte e da eternidade, é suficientemente grande para envolver o homem por completo. É devido não com­preendermos isso que surgem muitos dos nossos problemas. Nós é que somos parciais na nossa resposta a este grande evangelho.

Deixem-me sugerir alguns detalhes para confirmar e fortalecer o meu ponto de vista. Há pessoas que parecem colocar em uso somente a cabeça — o intelecto, o entendimento. Elas nos dizem que estão tremendamente interessadas no evangelho como um ponto de vista, como uma filosofia cristã. Elas estão sempre falando sobre a perspectivas cristã, ou, usando a gíria atual, as "percepções cristã". É algo puramente filosófico, coisa inteiramente intelectual. Eu acho que concordariam que há muitas pessoas tomando esta posição hoje em dia. Para elas o cristianismo é um assunto de tremendo interesse, e acreditam e proclamam que se este ponto de vista cristão fosse aplicado na política, na indústria e em todos os outros círculos, todos os nossos problemas seriam resolvidos. Este é o ponto de vista e atitude inteiramente intelectual.

Há outros, talvez não tantos quanto no passado, cujo único interesse no evangelho é a teologia, a doutrina, a metafísica, os grandes problemas, argumentos e discussões. Eu falo de dias pas­sados, dias que se foram. Eu não quero defendê-los, mas eles eram infinitamente preferíveis àqueles que assumem a posição do pre­sente acima mencionada. Havia pessoas então cujo único interesse no evangelho era relativo a problemas teológicos, e argumentavam e discutiam sobre eles. Suas mentes estavam muito envolvidas; este era o seu interesse e seu passatempo intelectual. Contudo, a tragédia é que tudo se limitava a esse interesse, e seus corações nunca tinham sido tocados. Não havia somente a ausência da graça do Senhor Jesus Cristo nas suas vidas, mas havia também frequentemente a ausência dos princípios elementares da bondade humana, Aqueles homens discutiam e quase brigavam por causa cie certas doutrinas, mas eram difíceis de serem abordados. Nunca leríamos ido a eles com algum problema, pois teríamos sentido que eles não iriam entender nem se compadecer. Pior ainda, a verdade pela qual tanto se interessavam não era aplicada às suas vidas; era algo confinado aos seus gabinetes pastorais. A verdade não modificava a sua conduta ou comportamento em nada, pois estava confinada à mente apenas. Obviamente, mais cedo ou mais tarde, seu destino era cair em dificuldades e em confusão. Já tive­ram a oportunidade de ver um homem desse tipo enfrentando o final da sua vida? fá o viram quando ele não pode mais ler, ou quando está à beira da morte? Eu já vi um ou dois, e não quero ver outro. É terrível quando o homem chega ao ponto em que sabe que vai morrer, e o evangelho sobre o qual tanto discutiu, argu­mentou e até "defendeu", parece não ajudá-lo, porque na verdade nunca se tornou parte da sua vida. Era apenas um passatempo intelectual.

No entanto há outros casos em que o evangelho parece afetar somente o coração. Estes são mais comuns hoje em dia. São pessoas que tiveram uma libertação emocional; passaram por uma crise emocional. Não quero menosprezar isto, mas há um perigo muito real em ter uma experiência unicamente emocional. Estas são pessoas que talvez tenham algum problema em suas vidas; talvez lenham cometido algum pecado específico. Tentaram esquecê-lo, mas não conseguiram libertar-se. Enfim ouvem uma mensagem que parece libertá-las desse pecado, e aceitam e tudo fica bem. Mas param nesse ponto. Queriam uma libertação desse problema em particular, e a conseguiram. Ela pode ser obtida mediante uma apresentação incompleta do evangelho, e leva a uma experiência parcial e incompleta. Tais pessoas tiveram uma experiência emo­cional e nada mais, porque foi isso mesmo que desejaram.

Ou pode ser que essas pessoas tinham um interesse natural pelo misticismo e por fenômenos místicos. Algumas pessoas já nascem místicas; parece que há algo diferente nelas, algo. "do outro mundo", e elas se interessam pelo misticismo. Há um grande interesse por esses assuntos hoje em dia; nos fenômenos psíquicos, em experiências extra-sensoriais. Sempre houve gente interessada nesse tipo de coisa. São místicos naturais, e sentem-se atraídos por algo que parece estar oferecendo alguma experiência espiritual ou mística. Aproximam-se das Escrituras porque sentem que nelas encontrarão satisfação para este desejo por tal tipo de experiência. Procuram isso, e o encontram. E não conseguem mais nada.

Ou pode ser que certas pessoas estão nesta posição, simples­mente porque são comovidas esteticamente pela apresentação do evangelho, pela atmosfera da igreja, pelos vitrais coloridos, pelos monumentos, pelo ritual, pelos hinos cantados, pela música, pelo sermão — por qualquer uma ou por todas estas coisas. A vida tem sido dura e cruel, e elas se tornaram amargas devido às circuns­tâncias. Mas vão a um certo culto, e de alguma forma sentem-se confortadas e aliviadas, e se satisfazem e se contentam com isso. É tudo que elas queriam. Obviamente o que estavam procurando, e não querem mais nada. Sentem-se felizes e vão embora. Entre­tanto, tão certamente quanto fazem isso, um dia irão se encontrar em apuros ou numa situação em que aquilo que obtiveram não as ajudara em nada. Algum dia terão de enfrentar uma crise e encará-la até o fim; mas nunca aprenderam a pensar em soluções. Elas se contentavam em viver de acordo com seus sentimentos e emoções.

Outros estão nesta posição, posição que vê um lado somente, porque responderam a um apelo numa reunião. Eu me recordo de um grupo de pastores que me contaram como trabalharam na sala de aconselhamento de um evangelista famoso, em visita a este país, o qual agora é um homem idoso e aposentado do ministério. Esses pastores perguntavam às pessoas que vinham à sala de aconselha­mento por que haviam vindo. Muitas vezes a pessoa respondia que não sabia. E os pastores então perguntavam: "Mas você veio à sala de aconselhamento; por que fez isso?" E a resposta era: "Eu vim porque o pregador disse que devíamos fazer isso". Esse pregador tinha o maravilhoso e excepcional dom de contar histó­rias. Sabia dramatizar, e frequentemente terminava a sua mensa­gem com uma história comovente. Então fazia um apelo para que as pessoas viessem à frente, e como numa espécie de transe, elas andavam pelos corredores até a sala de aconselhamento, sem saber o que estavam fazendo. Estavam comovidas e fascinadas, mas pa­recia não haver nenhuma concepção da verdade, não havia qual­quer relacionamento com a "forma de doutrina a que fostes entre­gues". Movidos pela emoção, e por nada mais, estes indivíduos entravam na sala  de aconselhamento. Ora, é inevitável que tais pessoas, mais cedo ou mais tarde, venham a enfrentar problemas. Serão infelizes e miseráveis, e entrarão em depressão. São as pes­soas que têm algo no coração, mas suas mentes não estão nem um pouco envolvidas, e infelizmente muitas vezes nem mesmo a vontade foi envolvida. Elas se contentam em se alegrar emocio­nalmente e em experimentar sentimentos, e não estão nem um pouco preocupadas em aplicar a verdade em suas mentes e sua vontade.

Então, finalmente, acontece a mesma coisa com as pessoas que deixam que somente a sua vontade seja envolvida. É possível, e infelizmente já aconteceu, que certas pessoas são persuadidas a adotar o cristianismo. Elas afirmam que acreditam que esta é uma boa maneira de viver, e solenemente decidem seguí-la. Acho que devemos abolir este vocábulo "decisão". Não gosto dele. Para mim, falar sobre a decisão por Cristo parece ser uma negação do texto que estamos considerando, como vou mostrar-lhes. O fato de alguém "tomar uma decisão" frequentemente acontece como resul­tado de um apelo. Se a vontade dos homens é fartamente bombar­deada, certas vontades certamente responderão. Tomarão uma de­cisão porque foram chamados para isso, porque foram pressionados a tomar uma decisão. A vontade foi pressionada. Foi dito a eles que devem decidir, e eles decidem, porém muitas vezes não sabem por que o fazem. E mais tarde começarão a fazer perguntas; o diabo cuidará para que surjam perguntas em suas mentes. E des­cobrirão que não têm respostas para elas.

Quero resumir este ponto desta maneira: estas são as pessoas que decidem adotar o cristianismo, em vez de serem dominadas por ele. Elas nunca conheceram este constrangimento, este senti­mento que diz: "Eu nada posso fazer, por isso, ajuda-me, Senhor", c que tudo mais deve ser excluído, que a verdade falou de tal maneira que elas têm de aceitá-la. É isto que Paulo está dizendo neste capítulo. "De maneira nenhuma", ele diz. "Do que é que vocês estão falando? Não sabem o que é verdade? Como podem dizer: permaneceremos no pecado, para que a graça seja mais abundante? Isto significa que vocês não sabem o que é a graça". Somente. pessoas que entenderam a verdade desejam obedecê-la. A tragédia das outras é que nunca a entenderam realmente.

Isso, então, é a causa do problema. Quero contudo enfatizar uma coisa. Às vezes, como já mostrei, encontramos pessoas que têm somente uma parte da sua personalidade envolvida — somente a cabeça, o coração, ou unicamente a vontade. Concordaremos que elas devem estar erradas. Sim, mas sejamos claros sobre isto; também é errado envolver apenas duas partes da personalidade. É igualmente errado envolver a mente e o coração sem a vontade; ou a mente e a vontade sem o coração, assim como o coração e a vontade sem a mente. Creio que é isso que o apóstolo está enfati­zando. A posição cristã é tripla; são os três juntos, os três ao mesmo tempo, e os três sempre. Um grande evangelho como este envolve o homem por completo, e se o homem inteiro não está envolvido, ele deve refletir novamente sobre a sua posição real. "Obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entre­gues". Que evangelho! Que mensagem gloriosa! Pode satisfazer completamente o intelecto do homem, pode comover o coração inteiramente, e pode levar a uma obediência total de coração no domínio da vontade. Esse é o evangelho. Cristo morreu para que pudéssemos ser homens completos, não apenas para que partes de nós pudessem ser salvas; não para que fôssemos cristãos parciais, mas para que houvesse um equilíbrio em nós.

Todavia, não é só isso; se nos falta esta proporção, enfrenta­remos problemas mais tarde, porque o homem foi criado por Deus dessa maneira equilibrada. Já pensou nisso alguma vez? É inte­ressante do ponto de vista psicológico notar como Deus colocou estes três poderes dentro de nós — a mente, o coração e a vontade. E que poderes tremendos são eles! Talvez pensaríamos que seria impossível co-existirem estas três forças na mesma pessoa, mas Deus fez o homem perfeito e completo. Podemos ver isso de forma perfeita no Senhor Jesus Cristo; e o objetivo da salvação é trazer-nos a essa perfeição, conformando-nos à Sua imagem a tal ponto que os efeitos e os traços do pecado são removidos e destruídos.

Quero dizer uma palavra final sobre este equilíbrio. Estas coisas devem vir sempre na ordem correta. Há uma ordem definida neste versículo, e a ordem obviamente é esta: estas pessoas eram escravas, presas pelo pecado, e deixaram de o ser. Por quê? O apóstolo diz que a "forma de doutrina" veio a elas — "obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues". Elas viviam em escravidão. O que as libertou? A verdade foi apresentada a elas! Não foram simplesmente comovidas emocionalmente na área do coração; não foi meramente um apelo à vontade. Não, a verdade foi apresentada. Devemos colocar estas coisas sempre na ordem certa, e a verdade é a primeira. Primeiro a doutrina, primeiro o padrão de ensinamento, primeiro a mensagem do evangelho. Não estamos preocupados somente em atrair as pessoas emocionalmente ou na área da vontade; estamos preocupados em "pregar a Palavra". Os apóstolos não foram enviados simplesmente para produzir re­sultados e mudar as pessoas. Eles foram enviados para "pregar o evangelho", para "pregar a verdade", para pregar e proclamar "Jesus e a ressurreição" — esta mensagem, esta forma de doutrina, este depósito! Estes são os termos usados no Novo Testamento, e a Igreja certamente produzirá monstruosidades espirituais se não colocar isto em primeiro lugar.

O cristão deve saber por que ele é cristão. O cristão não é alguém que simplesmente diz que algo de maravilhoso lhe acon­teceu. De maneira nenhuma; ele está apto e pronto para "dar uma razão sobre a esperança que está nele". Se não pode fazer isso, deve certificar-se melhor da sua posição. O cristão sabe por que ele é o que é, e em que pé está. A doutrina foi apresentada a ele, ele recebeu a verdade. Ela veio à sua mente e deve sempre começar em sua mente. A verdade chega à mente e ao entendimento ilumi­nado pelo Espírito Santo. E depois que o cristão compreende a verdade, ele a ama. Ela comove o seu coração. Ele vê o que ele era, vê a vida que vinha levando, e a odeia. Se alguém enxerga a verdade quanto à sua escravidão pelo pecado, odiará a si mesmo. Depois, ao enxergar a gloriosa verdade sobre o amor de Cristo, ele vai querê-la, vai desejá-la. Assim o coração é envolvido. Enxer­gar a verdade realmente significa que somos comovidos por ela, que nós a amamos. Não pode ser de outra forma. Se enxergamos a verdade com clareza, vamos senti-la. E isto leva ao passo seguinte — o nosso maior desejo será praticar e viver a verdade.

Este é todo o argumento de Paulo. Ele diz: "A sua conversa sobre permanecer no pecado é inadmissível. Se vocês compreen­dessem a sua união com Cristo, que foram plantados com Ele na semelhança da Sua morte, e portanto ressuscitados com Ele, então jamais pensariam em falar assim. Vocês não podem ser unidos' com Cristo e ser "um" com Ele, e ao mesmo tempo perguntar: "Permaneceremos no pecado?" Será que esta grande verdade me dá licença para continuar fazendo aquelas coisas que antes eram atraentes para mim? Claro que não! É inconcebível. O homem que sabe e acredita que ele "ressuscitou com Cristo", inevitavelmente desejará caminhar nesta nova vida com Ele.

É assim que Paulo coloca o seu grande argumento e demons­tração, e disso eu tiro a minha conclusão final: que ao lidar com esta área, devemos compreender que quando falamos aos outros, não devemos abordar diretamente o coração. Vou mais adiante; a vontade também não deve ser abordada diretamente. Este é um princípio muito importante que devemos "ter em mente, tanto no tratamento pessoal, como na pregação. O coração deve ser influen­ciado sempre mediante o entendimento — primeiro a mente, depois o coração, e em terceiro lugar a vontade. Não temos o direito de atacar diretamente o coração dos outros, e nem mesmo o nosso. Eu conheci homens de vida perversa que encontravam falso con­forto (para a sua própria condenação) no fato de que ainda con­seguiam chorar e comover-se emocionalmente numa reunião reli­giosa. Eles argumentavam: "Eu não posso ser totalmente mau, ou então eu não reagiria desta maneira". Mas esta é uma dedução falsa — a sua reação emotiva era produzida por eles mesmos. Se fosse uma resposta à verdade, as suas vidas teriam sido mudadas. Não devemos abordar nunca o coração ou a vontade do homem diretamente. A verdade é recebida através da maior dádiva de Deus ao homem, isto é, a mente e o entendimento. Deus criou o homem segundo a Sua própria imagem, e não há dúvida de que a parte principal desta imagem é a mente com sua capacidade de compreender a verdade. Deus nos deu este dom, e é através dele que Ele nos envia a verdade.

No entanto, que ninguém pense, de modo algum, que tudo termina no intelecto. Começa ali, mas depois continua. Ele então toca o coração e finalmente o homem entrega a sua vontade. Ele obedece sem lamentações e sem falta de vontade, e sim, de todo o coração. A vida cristã é uma vida perfeita e gloriosa, que envolve e cativa a personalidade inteira. Oh, que Deus nos faça cristãos equilibrados, homens e mulheres de quem possa ser dito que estão obedecendo totalmente, de coração, à forma de doutrina que nos foi entregue.

 

5. AQUELE PECADO

"Mas por isso alcancei misericórdia, para que em mim, que sou o principal, Jesus Cristo mostrasse toda a sua longanimidade, para exemplo dos que haviam de crer nele para a vida eterna".

I Timóteo 1:16

 

No capítulo anterior, consideramos as pessoas que são infe­lizes e nunca realmente se regozijam em sua vida cristã, porque fracassam em manter um equilíbrio entre a mente, o coração e a vontade. Paulo fala a esse respeito na Primeira Epístola a Timóteo, dizendo que devemos "conservar a fé e a boa consciência, rejei­tando a qual alguns fizeram naufrágio na fé. E entre esses foram Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a Satanás, para que aprendam a não blasfemar" (I Timóteo 1:19-20). Essa falta de equilíbrio é uma das grandes causas, não só de infelicidade, mas de tropeços e fracassos na vida cristã.

Há pessoas que se espantam com isso. Elas têm uma visão volúvel e superficial da vida cristã, achando que, se alguém preen­cheu um cartão de decisão, ele é um cristão, e deve, portanto, ser perfeitamente feliz. Mas, como a experiência e a história da Igreja Cristã claramente demonstram, esse não é o caso, e se adotamos essa perspectiva superficial, não vai demorar para que tenhamos problemas. O fato é que sempre há cristãos enfrentando algum tipo de problema, por várias razões, e não podemos ler as epís­tolas do Novo Testamento sem constatar a verdade do que estou dizendo. Se crer e aceitar a salvação fosse tudo que é preciso, então as epístolas não teriam sido necessárias — na verdade, de certa forma nem haveria necessidade da Igreja. As pessoas seriam salvas e viveriam felizes para o resto das suas vidas como cristãs. Toda­via, temos abundante evidência de que este não é o caso. Essas pessoas no Novo Testamento tinham crido, e se tornaram cristãs, e no entanto foi necessário que os apóstolos Paulo, Pedro, João e outros lhes escrevessem cartas, porque elas estavam enfrentando problemas de um tipo ou outro. Estavam infelizes por várias razões, e não estavam se regozijando na vida cristã. Alguns destes cristãos estavam sendo tentados a olhar para trás, para a vida da qual tinham sido salvos; outros enfrentavam tentações mais sérias, e ainda outros sofriam cruéis perseguições. Assim, a própria exis­tência das epístolas do Novo Testamento nos mostra que abati­mento e infelicidade são condições que afetam o cristão. Existe nisso, portanto, um estranho tipo de consolo, ainda que muito real. Se alguém que está lendo minhas palavras está enfrentando algum problema, deixe-me dizer isto: o fato de que você se sente infeliz ou perturbado não significa que não seja um cristão. Na verdade, digo mais: se você nunca teve problemas em sua vida cristã, eu duvido seriamente que realmente seja um cristão! Existe o que se poderia chamar de falsa paz, assim como há também crença no engano. Todo o Novo Testamento, bem como a história da Igreja através dos séculos, dão testemunho eloquente de fato de que esta é uma "batalha de fé", e não ter qualquer perturbação em sua alma está, portanto, longe de ser um bom sinal. Na verdade, é um sério sinal de que algo está radicalmente errado, e tenho uma boa razão para dizer isso, pois desde o momento em que nos tornamos cristãos, também nos tornamos os objetos especiais da atenção do diabo. Assim como ele assediou e atacou o Senhor, assim ele asse­dia e ataca todo o povo de Deus. "Tende grande gozo", diz Tiago, "quando cairdes em várias tentações" ou provações. É assim que sua fé é provada, pois isso não só é um teste da sua fé, mas de certa forma é também uma evidência de que você tem fé. É porque pertencemos a Deus que o diabo fará tudo que puder para nos perturbar e abater. Ele não pode roubar-nos a nossa salvação, graças a Deus, mas ele pode nos tornar miseráveis. Ele pode — se formos tolos a ponto de lhe dar ouvidos — limitar seriamente nossa alegria da salvação. E é isso que ele tenta fazer constantemente — e esta, por sua vez, é a razão porque temos este ensino nas epístolas do Novo Testamento.

Neste capítulo vamos considerar uma forma muito comum que o diabo usa para nos atacar nesta área. É aquela sugerida não só por este versículo em particular, mas por todo o capítulo neste trecho biográfico — o trecho onde o apóstolo Paulo se refere a si mesmo como um ministro do evangelho do Senhor Jesus Cristo. O problema, aqui, é o caso daqueles que são cristãos miseráveis, ou que estão sofrendo de depressão espiritual por causa do seu passado — ou. devido a algum pecado particular em seu passado, ou devido à forma específica que o pecado assumiu em seu caso. Eu diria, baseado em minha experiência no ministério, que se estende já por muitos anos, que não há dificuldade mais comum. Ela ocorre constantemente, e acho que tive de ajudar mais pessoas com este problema em particular, do que com qualquer outra coisa.

À primeira vista, alguns talvez duvidem se tais pessoas são realmente cristãs; mas estão bastante errados. Elas são cristãs. Peça que lhes dêem uma declaração de fé, e o farão perfeitamente. Pa­recem ter uma compreensão bem clara a respeito da justificação pela fé. Quer dizer que entendem claramente que não podem se justificar. Não estão dependendo de suas próprias vidas, ou ativi­dades, ou qualquer coisa que possam fazer. Estão perfeitamente conscientes de sua total incapacidade e total dependência da graça de Deus em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Entendem isso claramente e dão testemunho disso, e creram no Senhor Jesus Cristo. "Mas então", você pergunta, "qual é seu problema?" O problema é que, ainda que tenham uma compreensão clara dessa doutrina básica, e embora falem como cristãos, mesmo assim são infelizes, e são infelizes devido a alguma coisa em sua vida no passado. Eles vêm a você parecendo muito infelizes, miseráveis até, e sempre falam sobre isso — invariavelmente trazem o assunto à tona. Via de regra, é alguma ação, algum ato — que pode ou não ter envol­vido outras pessoas; algum erro cometido por eles mesmos. Geral­mente é uma coisa específica — algo grande. E é a coisa à qual estão constantemente voltando, sempre repisando aquilo, e não podem largá-lo. Estão constantemente analisando-o e escrutinando e se condenando por causa daquilo. E como resultado, sentem-se infelizes. Às vezes é algo que disseram, uma palavra que falaram em certa ocasião.

Vou citar o que considero uma das ilustrações mais gráficas que já encontrei disso em rainha própria experiência. Vou citá-la para ilustrar o ponto que estou enfatizando. Lembro-me de um homem que se converteu e se tornou cristão com a idade de 77 anos — uma das conversões mais notáveis que eu já vi. Esse ho­mem tinha vivido de forma muito perversa; havia poucas coisas que ele não tinha feito na vida. Mas ele ouviu a mensagem do evangelho e se converteu na velhice. O grande dia chegou quando ele foi recebido como membro da igreja, e quando ele participou da ceia do Senhor pela primeira vez, no domingo à noite, para ele foi o maior evento de toda a sua vida. Sua alegria era indes­critível, e todos estávamos felizes por ele. Mas houve uma sequela, e foi esta. Na manhã seguinte, antes mesmo de me levantar, aquele pobre homem estava à minha porta, a expressão da miséria e do abatimento, chorando incontrolavelmente. Fiquei assombrado e aturdido, especialmente à luz do que se dera na noite anterior, a maior de sua vida, o clímax de tudo o que já lhe acontecera. Finalmente consegui que ele se controlasse, e então perguntei o que havia acontecido. Seu problema era este: voltando para casa, depois daquele culto da ceia do Senhor, ele de repente se lembrou de algo que acontecera trinta anos antes. Ele estava num bar com um grupo de homens, bebendo e discutindo sobre religião. Naquela ocasião, ele dissera, com desprezo e escárnio, que "Jesus Cristo era um bastardo". E isso voltou à sua memória de repente, e ele sentia que para tal coisa não podia haver perdão. Aquele pecado! Ah, sim, ele não tinha problemas para esquecer a bebedeira, a jogatina, e a imoralidade. Aquilo estava resolvido, estava tudo perdoado. Ele entendia isso claramente. Mas as palavras que havia dito sobre o Filho de Deus, o Salvador do mundo — aquilo! Ele não conseguia encontrar consolo nem conforto. Aquele pecado o jogara nas profundezas do desespero. (Dou graças a Deus que, através das Escrituras, pude restaurar sua alegria). Mas é a esse tipo de coisa que estou me referindos algo que a pessoa disse, ou fez, que a persegue e que volta à sua lembrança, e a torna mise­rável e infeliz, ainda que ela subscreva a fé cristã. Essa condição, que parece contraditória, é uma realidade, e precisamos reconhe­cê-la como tal. Em outros casos pode ser a escravidão a uma pro­messa ou compromisso feito, mas não cumprido, que é a causa do problema. Já testemunhei muitos casos assim, de pessoas que du­rante uma doença fizeram uma certa promessa a Deus, ou assu­miram um compromisso que, se se recuperassem, fariam isso e aquilo. Mas não cumpriram seu voto; na verdade, talvez tenham feito algo que tornou impossível o cumprimento da promessa ou do voto. E essas pessoas se encontram nessa situação infeliz, escra­vizadas por aquilo.

Esse, então, é o problema para o qual estou chamando sua atenção. São pessoas que entendem claramente a doutrina da salva­ção, exceto que no seu caso, sentem que há algo — aquele pecado específico, ou a forma que ele assumiu no caso delas — que de certa maneira as coloca numa categoria diferente. Dizem: "Sim, eu sei — mas. . .". E isso as segura; são cristãos miseráveis, so­frendo de depressão espiritual.

Qual é o problema real aqui? Bem, existem duas explicações principais dessa condição. A primeira e principal delas, é claro, é que tudo isso é obra do diabo, pois embora Satanás não possa roubar-nos a nossa salvação, ele definitivamente pode roubar-nos a nossa alegria. Sua grande preocupação é impedir que as pessoas se tornem cristãs; mas quando isso falha, o seu objetivo então passa a ser o de torná-las cristãs miseráveis, para que então possa apresentá-las a alguém que está sob convicção de pecado, dizendo: "Isso é o cristianismo; olhe para essas pessoas! Aí está um quadro do que é cristianismo! Olhe para essas criaturas miseráveis! Você quer ser assim?" Sem dúvida, a causa essencial da maioria desses problemas é o próprio diabo.

Mas há também uma causa secundária, e isso é o que quero enfatizar aqui. Reitero que esse problema é quase inteiramente devido à ignorância de doutrina — uma falha em entender claramente a doutrina da salvação conforme é apresentada no Novo Testamento; e isto é a essência do tratamento desse problema. Quero expressar isso de forma clara e brusca, para enfatizá-lo, mesmo correndo o risco de ser mal interpretado. Num certo sen­tido, as pessoas que estão nessa situação não devem orar para serem libertas dela! É o que sempre fazem; e é o que invariavel­mente estavam fazendo quando vêm em busca de ajuda — de fato, é o que geralmente lhes dizem que devem fazer. Ora, o cristão deve orar sempre, o cristão deve "orar sem cessar", mas este é um ponto em que o cristão deve parar de orar por um momento, e começar a pensar! Sim, porque há certos problemas na vida cristã, meu amigo, a respeito dos quais eu digo que, se você não fizer outra coisa além de orar sobre eles, jamais os resolverá. Há ocasiões em que você deve parar de orar, porque sua oração talvez não esteja fazendo mais do que relembrá-lo do seu problema, e mantendo sua mente fixa nele. Então, você precisa parar de orar e começar a pensar, e esclarecer sua doutrina.

E sobre o que deve pensar? A primeira coisa que eu sugeriria, é que pense no caso do apóstolo Paulo, e no que ele diz aqui: "E dou graças ao que me tem confortado, a Cristo Jesus Senhor nosso, porque me teve por fiel, pondo-me no ministério; a mim que dantes fui blasfemo, e perseguidor, e opressor; mas alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade. E a graça de nosso Senhor superabundou com a fé e amor que há em Cristo Jesus. Esta é uma palavra fiel, e digna de toda aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores; dos quais eu sou o principal. Mas por isso alcancei misericórdia, para que em mim, que sou o principal, Jesus Cristo mostrasse toda a sua longanimidade, para exemplo dos que haviam de crer nele para a vida eterna". Isto é maravilhoso! Note o que o apóstolo diz: o que ele declara aqui, é que, de certa forma, o Senhor Jesus Cristo o salvou para o apresentar como exemplo. Um exemplo em que sentido? Um exemplo para aquelas pessoas que sentem que o seu pecado, de um modo ou de outro, ultrapassa os limites da graça e da misericórdia de Deus. O argumento do apóstolo é que o seu próprio caso é prova suficiente, de uma vez por todas, que nunca devemos arrazoar dessa forma. Em outras palavras, essas pessoas crêem que existe uma escala de pecados, e fazem distinção entre certos pecados. Elas os classificam, dizendo que alguns são per­doáveis, enquanto que outros, aparentemente, não são. A esses o apóstolo diz que seu próprio caso é mais que suficiente para refutar esse argumento. "O que quer que vocês possam pensar", ele diz, "o que quer que tenham feito, pensem em mim,  pensem no que eu era — blasfemo, perseguidor, opressor". Pode pensar em coisa pior? Ele odiava até o nome de Jesus Cristo de Nazaré, fez tudo que pôde para exterminar Seus seguidores, foi até Damasco, "res­pirando ameaças e morte" contra eles. Esta era sua condição — perseguidor e blasfemo. E ele diz: "Eu sou uma prova ; o que quer que pensem a respeito de si mesmos, comparem isso comigo, e vejam onde estão". Esse é o primeiro argumento. Você pensa no caso dele e diz a si mesmo: "Se ele obteve misericórdia, se ele foi perdoado, eu preciso reconsiderar esse pecado na minha vida". É aí que você começa.

Todavia, o apóstolo não pára aí, porque num sentido não devemos diferenciar um pecado do outro. À primeira vista, o após­tolo parece estar fazendo isso. Ele diz: "Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal", como se estivesse dizendo que há grandes pecadores, médios pecadores e pequenos pecadores. Mas ele não estava dizendo isso. Esta não podia ser a sua intenção, pois estaria contradizendo sua doutrina essencial. O que ele realmente está dizendo é que, quanto mais o homem se aproxima de Deus, tanto maior ele vê o seu pecado. Quando um homem vê a escuridão de sua própria alma, ele diz: "Sou o principal dos pecadores". E somente um cristão pode dizer isso. O homem do mundo nunca fará tal declaração; está sempre querendo provar como ele é bom. Mas Paulo parece estar dizendo mais do que isso, como eu já afirmei. Ele parece sugerir que esses pecados contra a pessoa de Cristo, de certa forma, são o pecado dos pecados. Mas ele então esclarece o que quer dizer com outras palavras: "Porque o fiz ignorantemente, na incredulidade". Colo­cando-o dessa forma, ele derruba essa escala de pecados. Se o exa­minarmos de um certo ângulo, seu pecado foi o pior imaginável, mas de outro ângulo, é a soma de todos os pecados, porque em última análise há somente um pecado, que é o pecado da incre­dulidade.

Essa é a grande doutrina do Novo Testamento sobre esta questão; é o que estas pessoas precisam captar acima de tudo o mais, que não devemos pensar em termos de pecados específicos, e sim sempre em termos de nosso relacionamento com Deus. Todos tendemos a errar nesse ponto. É por isso que temos a tendência de pensar que algumas conversões são mais extraordinárias do que outras. Mas não são. A mesma graça de Deus é necessária para salvar a pessoa mais respeitável do mundo assim como o pecador mais desprezível. Nada além da graça de Deus pode salvar alguém, e a mesma graça é necessária para salvar a todos. Entretanto não pensamos assim. Pensamos que certas conversões são mais notáveis do que outras. Fazemos distinção entre pecado e pecado, e pensa­mos que alguns pecados são piores do que outros, porque nossa doutrina está errada. Tudo volta ao nosso relacionamento com Deus; é tudo uma questão de fé ou incredulidade.

Há muitos exemplo notáveis disso nas Escrituras. A situação em que um homem como José demonstrou seu discernimento e sua compreensão espiritual foi esta. Quando tentado pela mulher de Potifar, ele disse: "Como pois faria eu este tamanho mal, e pecaria contra Deus?" O que perturbava José não era a possibili­dade de pecar contra a mulher, e sim contra o próprio Deus. Ora isso é verdadeira reflexão espiritual. Não devemos pensar tanto no pecado em si. É o que em geral fazemos. Mas o que se constituía em pecado para José era o fato de que envolvia seu relacionamento com Deus — "se eu fizer isso, estarei pecando contra Deus". Davi percebeu a mesma coisa. Assassino e adúltero que era, isto é o que o perturbava: "Contra ti, contra ti somente pequei, e fiz o que a teus olhos parece mal". Ele não estava fazendo pouco do mal que cometera contra outros; ele compreendia isso, mas isso não era o pior. Era Deus — seu relacionamento com Deus. No mo­mento em que passamos a pensar nisso, esquecemos de pecados específicos, e esquecemos que um é pior do que outro. "Minha incredulidade", diz Paulo, "isto era o problema" — não certos atos em particular. É o nosso relacionamento com Deus e Suas leis que importa.

O Novo Testamento tem alguns ensinamentos notáveis sobre isto. Acaso já observaram a lista das obras da carne que Paulo nos dá no quinto capítulo da Epístola aos Gálatas? "Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: prostituição, impureza, lascívia". Não temos dúvidas quanto a estes — horríveis! "Idola­tria" — certamente! "Feitiçarias" — é óbvio! Ah, mas de repente — "inimizades". Inimizades? Mas, eu pergunto, o pecado não só se aplica a certas pessoas que são adúlteras e impuras? Não é assim! "... porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias". Observem como ele as misturas — "invejas, homicídios" — sim, não somente o ato, mas no coração. "Bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a estas". Que lista! E o Senhor disse a mesma coisa quando nos lembrou que "do coração. . . procedem os maus pensamentos, mortes", etc. Ele os ajunta todos, não somente certos grandes pecados, mas todos os pecados, cada pecado, qualquer coisa que sugere um relacionamento errado com Deus — qualquer violação da lei. Tiago esclareceu este ponto de uma vez por todas no segundo capítulo de sua epístola, versículo 10: "Porque qual­quer que guardar toda a lei, e tropeçar em um só ponto, tornou-se culpado de todos". Portanto, estamos todos no mesmo nível; e se o maligno tentar levá-los a pensar que seu pecado é diferente, res­pondam que não importa qual aspecto particular da lei um homem quebra — se ele quebrou a lei em um só ponto, ele é culpado de todos. Não é aquele ponto em particular que realmente importa; é a lei que importa. Essa é a maneira que Deus vê o pecado. Então, não permitam que o diabo os desviem. É a lei, não um pecado em particular, mas nosso relacionamento com a lei de Deus, e nosso relacionamento com o próprio Deus, que importa.

Isso nos traz ao terceiro ponto. O problema com esse tipo de cristão infeliz, é que ele realmente não crê nas Escrituras. Você já pensou nisso? Já disse: "Meu problema é esse terrível pecado que eu cometi"? Deixe-me dizer-lhe em nome de Deus que esse não é o seu problema. Seu problema é incredulidade. Você não crê na Palavra de Deus. Estou me referindo à Primeira Epístola de João, no primeiro capítulo, onde lemos: "Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados, e nos purificar de toda a injustiça". Essa é uma declaração categó­rica feita por Deus Espírito Santo através de Seu servo. Não há limites aqui; não há distinção entre pecado e pecado. Não vejo nenhuma classificação. Qualquer que seja o seu pecado — este é o alcance desta declaração — não importa o que é, não importa o que foi, "se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda a injustiça". Se você não crê nessa palavra, se continua pensando em seu pecado, digo que não está aceitando a Palavra de Deus, não está confiando em Sua Palavra, não acredita no que Ele diz, e isso é o seu  verdadeiro pecado.  Você se lembra do que  aconteceu  a Pedro certa vez? (Leia Atos, capítulo 10). Pedro havia subido ao terraço da casa para orar, quando de repente teve uma visão em que um grande lençol descia do céu, com todo tipo de animal dentro, e ele ouviu uma voz dizendo: "Levanta-te, Pedro; mata e come". Mas Pedro disse: "De modo nenhum, Senhor, porque nunca comi coisa alguma comum ou imunda". Você se lembra do que aconteceu? A voz de Deus veio a ele do céu de novo, dizendo:

"Não faças tu comum ao que Deus purificou". "Você percebe o que está fazendo?" era o que Deus estava dizendo; "você está Insistindo em chamar de comum e imundo algo que Eu mandei que matasse e comesse. Não faças tu comum ao que Deus puri-ficou". É precisamente isso que eu diria a qualquer pessoa a quem o diabo escravizou em depressão espiritual por anos, devido a algum pecado em particular, algum evento infeliz de sua vida pas­sada. Não importa o que tenha sido. O que lhe digo, em nome de Deus, é isto: "O que Deus purificou — pelo sangue do Seu unigênito Filho — não o considere comum ou imundo". "O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo o pecado" — e de toda a injustiça. Creia na Palavra de Deus, meu amigo. Não continue a orar freneticamente para ser perdoado daquele pecado. Creia na Palavra de Deus. Não Lhe peça uma mensagem de perdão. Ele já o lhe deu. A sua oração pode muito bem ser uma expressão do incredulidade neste ponto. Creia nEle e em Sua Palavra.

Outro problema com essas pessoas, é que elas parecem não ler uma compreensão plena do que o Senhor fez na cruz do Calvário. Crêem em sua morte expiatória, mas não entendem as suas implicações. Não captaram a doutrina de forma completa. Sabem o suficiente para serem salvos — estou falando de cristãos mas estão num estado de depressão porque não entendem ple­namente o que isso significa. Elas esquecem de que o anjo anunciou a José no princípio que Ele "salvaria seu povo dos seus pecados" (Mateus 1:21). O anjo não disse que Ele salvaria de todos os pe­cados exceto daquele pecado que você cometeu. Não! "Ele salvará seu povo dos seus pecados". E ouçam Pedro dizendo a mesma coisa: "Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, para que, mortos para os pecados, pudéssemos viver para a justiça; e pelas suas feridas fostes sarados" (I Pedro 2:24). Não há distinção aí, não há limite. Ou então, ouçam as palavras do apóstolo Paulo quando diz: "Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós" (II Coríntios 5:21). Todos foram colocados aí, cada um deles, sem limites, nada foi deixado de fora. Todos os pecados do Seu povo estão aí, cada um deles. Realmente, Ele mesmo o disse na cruz, não é mesmo? Ele disse: "Está consumado" — consumado de forma total. Em que sentido? Está consumado no sentido que não só todos os pecados cometidos no passado foram julgados na cruz, mas todos os pecados que ainda viriam a ser cometidos também foram julgados ali. Foi num único sacrifício, de uma vez para sempre. Ele nunca mais voltaria à cruz outra vez.

Todos os pecados foram julgados ali, de forma final e completa — todos. Nada ficou por fazer — "Está consumado!" O que lem­bramos um ao outro, ao tomar o pão e o vinho, e o que procla­mamos, é essa obra consumada. Nada foi deixado sem fazer, não existe qualquer distinção no que se refere a certos pecados em particular. Todos os pecados daqueles que crêem nEle — cada um deles — foram julgados na cruz, e Deus os desfez como a névoa. Todos os pecados que possam vir a cometer já foram julgados ali, portanto, quando vão a Ele, é o "sangue de Jesus Cristo seu Filho" que vai purificá-los.

O próximo passo, portanto, é que precisamos compreender claramente a justificação. Já tratei disso num capítulo anterior, mas quero mencioná-lo de novo. Devemos lembrar que nossa justi­ficação significa não somente que nossos pecados foram perdoados e que fomos declarados justos pelo próprio Deus, no momento em que cremos, mas que fomos declarados permanentemente justos. Porque justificação também significa isso, que Deus nos dá a justiça inegável de Seu próprio Filho, o Senhor Jesus Cristo. É isso que significa justificação. Não somente significa que seus pecados foram perdoados, mas muito mais. Significa também que Ele nos veste com a justiça de Jesus Cristo. Com efeito, Ele diz: "Você é justo; não vejo um pecador, mas um filho justo; Eu vejo você em Cristo, coberto por Sua santidade e justiça". E quando Deus faz isso em nós, Ele o faz de uma vez para sempre. Vocês estão escon­didos, vocês, suas personalidades e suas vidas todas estão cobertas pela justiça de Cristo diante de Deus. Eu digo, portanto, com reverência e com a autoridade da Palavra de Deus, que Deus não mais vê os seus pecados; Ele vê a justiça de Cristo sobre vocês. Tomem posse disso!

Em última análise, tudo se resume nisto, que a causa real do problema é que falhamos em compreender a nossa união com Cristo. Muitos parecem pensar que o cristianismo significa apenas que somos libertos, no sentido de que nossos pecados são per­doados. Mas isso é só o começo, apenas um aspecto. Essencial­mente, salvação significa união com Cristo, ser um com Ele. Assim como éramos um com Adão, agora somos um com Cristo. Fomos crucificados com Cristo — "Estou crucificado com Cristo", diz Paulo. "Tudo o que aconteceu com Ele, aconteceu comigo. Estou unido com Ele". Leiam os capítulos 5 e 6 da epístola de Paulo aos Romanos. O ensino é que morremos com Cristo, fomos sepul­tados com Ele, ressuscitamos com Ele, e estamos assentados nos lugares celestiais em Cristo e com Cristo. Esse é o ensino das Escrituras. "Porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus" (Colossenses 3:3). O velho homem foi cru­cificado, com tudo que pertencia a ele. Todos os seus pacados Coram julgados. Vocês foram sepultados com Cristo, e ressusci­tarão com Cristo. "Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor" (Romanos 6:11).

Portanto, quero resumir a questão desta forma. Você e eu — e para mim esta é uma das grandes descobertas da vida cristã: eu nunca esquecerei a libertação que a compreensão deste fato me trouxe — você e eu nunca devemos olhar para a nossa vida pas­sada; nunca devemos olhar para nenhum pecado da nossa vida passada de qualquer forma, a não ser aquela que nos leve a louvar a Deus e exaltar a Sua graça em Cristo Jesus. Eu o desafio a fazer isso. Se você olha para o seu passado e isso o deprime, e se como resultado disso você se sente miserável como cristão, pre­cisa fazer o que Paulo fez. "Fui um blasfemador", ele disse, mas não parou aí. O que é que ele diz em seguida? "Sou portanto indigno de ser um pregador do evangelho"? Na verdade, ele diz exatamente o oposto: "Dou graças a Cristo Jesus Senhor nosso, porque me teve por fiel, pondo-me no ministério". Quando Paulo olha para o passado e vê o seu pecado, ele não se encolhe num canto, dizendo: "Não mereço ser um cristão, eu fiz coisas tão terríveis". Ele não faz isso. O efeito do seu passado sobre ele leva-o a dar glória a Deus. Ele se gloria na Sua graça e diz: "E a graça de nosso Senhor superabundou com a fé e amor que há em Jesus Cristo".

É assim que devemos olhar para o nosso passado. Então, se você olha para o seu passado e se sente deprimido, significa que está dando ouvidos ao diabo. Mas se você olha para o seu passado e diz: "Infelizmente é verdade que o deus deste mundo me cegou, mas louvado seja Deus a Sua graça foi mais abundante; Ele foi mais que suficiente e Seu amor e misericórdia vieram sobre mim de tal forma que tudo foi perdoado; sou uma nova criatura" — então tudo está bem. É assim que devemos olhar para o passado, c se não fazemos isso, quase me sinto tentado a dizer que mere­cemos ser miseráveis. Por que crer no diabo em vez de crer em Deus? Levante-se e compreenda a verdade a respeito de si mesmo, que o passado se foi, que você é um com Cristo, e todos os seus pecados foram apagados de uma vez para sempre. Oh, lembremo-nos que é pecado duvidar da Palavra de Deus, é pecado permitir que o passado, que já foi resolvido por Deus, nos roube da nossa alegria e nossa utilidade no presente e no futuro. Ouça de novo as palavras ditas do céu ao duvidoso, hesitante apóstolo Pedro: "Não faças tu comum ao que Deus purificou". Regozije-se na maravilhosa graça e misericórdia que apagou os seus pecados e o fez um filho de Deus. "Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos".

 

6. REMORSOS INÚTEIS

"E por derradeiro de todos me apareceu também a mim, como a um abortivo. Porque eu sou o menor dos apóstolos, que não sou digno de ser chamado apóstolo, pois que persegui a igreja de Deus. Mas pela graça de Deus sou o que sou; e a sua graça para comigo não foi vã, antes trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de Deus, que está comigo". I Coríntios 15:8-10

Nestes dias, homens e mulheres estão prontos a se interessar por qualquer coisa que seja atraente. Estamos vivendo numa era de propaganda, e as pessoas estão prontas a crer em qualquer coisa que lhes seja dita. Elas crêem na propaganda, crêem no que ela lhes apregoa, e portanto, se elas vissem algo nos cristãos que lhes desse a impressão que tais pessoas estão vivendo uma vida de alegria, felicidade e triunfo, elas se ajuntariam em volta deles, ansiosas por descobrir o segredo de uma vida tão bem sucedida. Não é uma conclusão incorreta, portanto, deduzir que a razão de tanta gente estar fora, é a condição daqueles que estão dentro. Tantas vezes damos a impressão que estamos abatidos e deprimi­dos; de fato, alguns quase dão a impressão que tornar-se cristão significa que você vai enfrentar muitos problemas que nunca o preocuparam  antes.  Então,  olhando para  a  situação  superficial­mente, o homem do mundo chega à conclusão de que se pode encontrar mais gente feliz fora da Igreja do que dentro dela. Ele está errado, é claro, mas precisamos reconhecer que alguns de nós, pelo menos, somos bastante culpados disso — que muitas vezes, porque sofremos de depressão espiritual e somos cristãos mais ou Mimos miseráveis, deturpamos o evangelho da graça redentora séria r dolorosamente.

Ora, tudo isso, é claro, se deve ao fato que enfrentamos um adversário muito poderoso. O fato é que no momento em que nos tornamos cristãos, passamos a ser objetos dos mais sutis e pode­rosos ataques daquele que a Bíblia descreve como "o príncipe da potestade do ar", "o espírito que agora opera nos filhos da deso­bediência", "o deus deste mundo", "Satanás", "o diabo". E à medida que continuamos com o nosso estudo e consideramos a maneira como o diabo nos assedia e nos ataca, e a maneira sutil em que ele nos engana e nos desvia do caminho, sem que sequer percebamos isso, começamos a entender por que tantos falham. E, é óbvio, ele nunca é mais sutil e mais perigoso do que quando chega como um "anjo de luz" e como um pretenso amigo da Igreja, alguém que está interessado no evangelho e na sua propa­gação. De acordo com as Escrituras, ele faz isso (II Coríntios, capítulo 11), e é nesse ponto que ele usa de maior sutileza. Ele não é apenas poderoso, mas também é sutil, e à medida que con­tinuamos a considerar essas várias formas e manifestações de de­pressão, isso vai se tornar mais e mais claro.

Em vista disso, precisamos nos preparar para ele e para tais a laques; e a maneira de fazer isso é estudar as Escrituras. É so­mente nelas que encontramos o discernimento necessário para compreender seus métodos. "Não ignoramos os seus ardis", disse o apóstolo Paulo aos coríntios (II Coríntios 2:11), mas a tragédia é que tantos ignoram os seus ardis ou nem crêem na existência dele, e mesmo aqueles que crêem falham em se lembrar que ele está sempre presente, e que pode se manifestar de muitas formas sutís. Ao examinar objetivamente o que ele faz conosco, não podemos deixar de ficar admirados da nossa indescritível insensatez. Ao considerar certos casos de depressão espiritual, você se pergunta: "Como é que alguém pode ter caído numa coisa dessa?" Tudo parece tão perfeitamente claro e patente, no entanto todos estamos constantemente caindo na mesma armadilha. Isso acontece devido à sutileza dos métodos do diabo. Ele nos apresenta coisas de uma forma tão atraente que acabamos caindo antes mesmo de perceber o que está acontecendo. Há somente uma forma de tratar disso: é estudar seus métodos, e estudar o que as Escrituras ensinam com respeito a este problema de depressão espiritual. É isto que estamos tentando fazer através destes estudos.

Vamos agora considerar o caso de outras pessoas que estão incapacitadas no presente como resultado de olhar para o passado, desta vez não para algum pecado em particular, e sim para o fato de que passaram tanto tempo fora do reino de Deus, e demoraram tanto para entrar nele. Esta, novamente, é uma causa muito comum de depressão espiritual. Estas pessoas sentem-se deprimidas pelo fato que perderam tanto tempo, desperdiçaram tantos anos, e tar­daram tanto para se tornarem cristãs. Estão sempre lamentando o fato de terem perdido tantas oportunidades — oportunidades de fazer o bem e ajudar outros, oportunidades de servir. Dizem: "Se eu tão somente tivesse entendido tudo isso quando era jovem, eu teria me apresentado para o ministério, mas vi a luz somente agora, e é tarde demais para isso". Oportunidades perdidas! Ou então o expressam em termos do que poderiam ter realizado até agora. "Se eu tão somente. . ." "Se apenas. . ." — este é o seu clamor. Mas eles não creram;  e olhando atrás, para os anos gastos  no mundo, não entendendo estas coisas, eles estão cheios de remorsos vãos por causa do que poderiam ter sido, como podiam ter cres­cido na graça, e o ponto em que poderiam estar agora. Eles olham atrás para o seu passado dessa maneira, e o lamentam e deploram; olham para a alegria que poderiam ter tido, os anos de jubilosas experiências que poderiam ter vivido. Mas é tarde demais, as opor­tunidades se foram. Por que foram tão tolos? Como podiam ter sido tão cegos? Por que foram tão lentos? Ouviram o evangelho; leram bons livros; até mesmo sentiram alguma coisa num certo ponto, mas não resultou em nada, e a oportunidade se desvaneceu. Agora, finalmente eles entenderam, e estão obsecados pelo pensa­mento — "Se tão somente. . ."

Esta é uma condição muito comum, e é responsável pelo estado de depressão espiritual em muitas pessoas. Como devemos tratar disso? Que pode ser dito a respeito? Antes de tudo, quero dizer que, se por um lado é perfeitamente normal que tais pessoas la­mentem o fato de que demoraram tanto para crer, por outro lado é errado cair em depressão por causa disso. Você não pode olhar para trás, para o seu passado, sem ver coisas a lamentar. Isto é normal; mas é exatamente aí que a sutileza dessa condição apa­rece e nós cruzamos a linha de separação entre arrependimento legítimo, e uma atitude errada de miséria e abatimento. A vida cristã é uma vida de um equilíbrio muito sensível. É uma de suas características mais notáveis. Já foi comparada a um homem an­dando sobre a lâmina de uma faca, com a possibilidade de cair facilmente para um lado ou outro. Ao longo do caminho precisa­mos depender de distinções muito sutis, e aqui está uma delas, a distinção entre um remorso legítimo, e uma atitude errada de mi­séria e abatimento.

Como, então, podemos evitar nos sentirmos abatidos a esse respeito? Vamos considerar isso em termos do que o apóstolo Paulo disse a respeito de si mesmo. Isso sempre me pareceu uma ilustração perfeita do que o Senhor ensinou na parábola registrada em Mateus 20:1-16, sobre os trabalhadores na vinha, que foram contratados em diferentes horas do dia, alguns apenas na undé­cima hora. Vamos examiná-la à luz do ponto de vista das pessoas que foram contratadas "perto da hora undécima" — que foram as últimas a entrar no reino.

Todavia, antes de entrarmos na questão em termos da Bíblia, vamos considerá-la de uma forma mais geral. Há certos princípios de bom senso e sabedoria comum que precisam ser aplicados a esta condição. Há pessoas que parecem pensar que é errado para um cristão usar o bom senso. Parecem pensar que precisam sempre lazer tudo de uma forma exclusivamente espiritual. Ora, isso me parece ser muito anti-bíblico. O cristão não é, em nenhum aspecto, inferior ao incrédulo; ele é sempre superior. O cristão não só pode fazer tudo que o incrédulo faz, ele pode fazer muito mais. Essa é a forma de olhar para o cristão. Ele é um homem que deve aplicar o bom senso às circunstâncias, e é certo e legítimo que ele faça isso. Se você puder conquistar o diabo nesse nível, conquiste-o nesse nível. Não importa em que nível você derrota o diabo, desde que o derrote. Se você puder derrotá-lo e se livrar dele usando o bom senso e sabedoria comum, faça isso. É perfeitamente cor­reio para o cristão fazer isso. Estou dizendo tudo isso porque muitas vezes vejo pessoas que estão com problemas nesta questão, e passam o tempo todo orando sobre isso, em vez de fazer algo que é perfeitamente óbvio do ponto de vista do bom senso.

Vou explicar o que quero dizer. Sugiro que a primeira coisa que alguém que está nesta condição deve dizer a si mesmo (e o mesmo se aplica a alguém que precisa ajudar outra pessoa nessa situação), é que ser miserável no presente por causa de algum fracasso no passado é uma completa perda de tempo e energia. Isso é óbvio. Isso é bom senso. O passado não pode ser trazido de volta e você não pode fazer nada a respeito. Pode ficar sentado sentindo-se miserável, ou pode ficar rodando em círculos de re­morso o resto da sua vida, mas nada disso fará qualquer diferença quanto ao que você fez. Isso é bom senso, e não exige qualquer revelação cristã especial para ser demonstrado. O mundo, em sua sabedoria, nos diz que "não adianta chorar o leite derramado". Pois jogue isso na cara do diabo! Por que deveria o cristão ser mais tolo do que qualquer outra pessoa? Por que não aplicar bom senso e sabedoria humana a uma situação? Mas é isso que muitas pessoas não fazem. O resultado é que estão desperdiçando seu tempo e energia em remorsos inúteis sobre coisas que não podem ser mudadas ou desfeitas, uma atitude tola e irracional, mesmo do ponto de vista mundano do bom senso. Vamos então estabelecer isto como um princípio. Nunca devemos nos preocupar, por um segundo sequer, a respeito de coisas que não podem ser mudadas ou desfeitas por nós. É um desperdício de energia. Se você não pode fazer nada a respeito de uma situação, pare de pensar sobre ela; nunca mais olhe atrás para ela, nunca mais pense nela. Se o fizer, o diabo estará derrotando você. Remorsos vagos e inúteis devem ser postos de lado, como sendo irracionais. Meu amigo, pare de se remoer por causa deles! Mesmo à parte do cristianismo, é uma atitude muito tola, uma completa perda de tempo e energia. Mas vamos mais adiante, considerando o fato de que remoer o passado simplesmente causa fracasso no presente. Enquanto você fica lamentando o passado e deplorando tudo o que você não fez, está incapacitando a si mesmo, e impedindo a si mesmo de um desempenho eficaz no presente. Isso é cristianismo? É claro que não! Cristianismo é bom senso, e muito mais — porém inclui o bom senso. "Ah", você diz, "mas eu ouço isso do mundo!" Bem, se ouve, então aja de acordo! O próprio Senhor Jesus disse que os filhos deste mundo são mais sábios em sua geração do que os filhos da luz. Ele elogiou o servo injusto, e eu estou simplesmente fazendo a mesma coisa. O mundo, do seu ponto de vista de sabe­doria comum, está perfeitamente certo nesta questão.  Sempre é errado hipotecar o presente ao passado, é sempre errado permitir que o passado atue como um freio sobre o presente. Deixe que o passado morto sepulte os seus mortos. Não há nada mais repreensí­vel, a julgar pelos critérios comuns de pensamento, do que permitir que algo que pertence ao passado seja causa de fracasso no pre­sente. E uma preocupação mórbida com o passado faz exatamente isso. As pessoas que estou descrevendo estão fracassando no pre­sente. Em vez de viver no presente e prosseguir na vida cristã, elas ficam lamentando o passado. Sentem-se tão mortificadas pelo passado que nada fazem no presente. E isso é muito errado!

Meu .terceiro argumento, do ponto de vista do bom senso e sabedoria humana, é este: se você realmente crê no que diz a respeito do passado, e se realmente lamenta o fato de ter desper­diçado tanto tempo no passado, então devia compensar isso no presente. Não é uma questão de bom senso? Aqui está um homem que vem a você no mais completo abatimento, dizendo: "Se eu não tivesse desperdiçado tanto tempo!" O que eu lhe digo é isto: "Você está compensando esse tempo perdido? Por que está des­perdiçando suas energias me contando sobre o passado que não pode ser desfeito? Por que não concentra suas energias no pre­sente?" E falo com veemência porque esta condição deve ser tra­tada com severidade, e a última coisa que se deve dar a essa pessoa é simpatia. Se você está sofrendo dessa condição, examine-se a si mesmo sob o ponto de vista de simples bom senso. Você está agindo como um tolo, de forma irracional, está desperdiçando seu tempo e suas energias. Você realmente não crê no que está dizendo. Se lamenta um passado desperdiçado, compense-o no presente, dedique-se inteiramente a viver no presente. Foi o que Paulo fez. Ele diz: "Por último foi visto também por mim, como um fora do tempo". Ele na verdade estava dizendo: "Eu perdi muito tempo, outros se adiantaram a mim". Mas ele pôde conti­nuar e dizer: "Trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de Deus, que está comigo".

Aí esta, então,- o argumento — aí está a maneira de tratar disso do ponto de vista do bom senso e da sabedoria humana comum. Isso é suficiente, ou devia ser suficiente, mas mesmo assim vamos prosseguir. O cristão, eu afirmo, nunca é menos do que o incrédulo, ele sempre é mais. Ele devia ter todo o bom senso e a sabedoria do incrédulo, mas ele tem mais uma coisa além disso. E aqui então chegamos à declaração do grande apóstolo, e ao ensinamento do Senhor na parábola dos trabalhadores na vinha, em Mateus, capítulo 20.

Vamos ver o que o apóstolo tem a nos dizer. Já vimos o que ele tinha a dizer sobre o grande pecado da sua vida, e vamos descobrir a mesma coisa em relação a este problema. O apóstolo estava dando um relatório das aparições do Senhor depois da ressurreição. Sua preocupação imediata é a respeito dessa grande doutrina, mas é assim que ele se expressa: "E por derradeiro de todos me apareceu também a mim". O apóstolo sem dúvida lamen­tava o fato de ter ingressado na vida cristã tão tarde. Vamos deixar bem claro o que ele quer dizer com "derradeiro de todos".

Ele quer dizer que foi o último dos apóstolos a ver o Senhor ressurreto. Todos os outros O tinham visto juntos em diversas ocasiões. Paulo não estava com eles nessas ocasiões; era um blas­femo  e  perseguidor  nessa  época.  Então  "derradeiro  de  todos" significa o último dos apóstolos. Mas não somente foi ele o últimos dos apóstolos, ele foi literalmente a última pessoa a ver o Senhor ressurreto. Ninguém mais viu o Senhor ressurreto com olhos hu­manos desde que o apóstolo Paulo O viu na estrada de Damasco. Ele "foi visto uma vez por mais de quinhentos irmãos". Nós nem sequer sabemos seus nomes, mas Ele Se revelou a eles e às demais testemunhas registradas aqui. Mas a última pessoa a vê-lO foi Saulo de Tarso. O que aconteceu na estrada de Damasco não foi que Paulo teve uma visão — muitos tiveram visões desde então — porém ele literalmente viu o Senhor da glória. E isto é o que ele diz aqui: "E por derradeiro de todos me apareceu também a mim". Isso é o que fez dele um apóstolo, o fato de que ele foi testemunha da ressurreição. Contudo o que está enfatizando é que ele foi o último de todos. E como se não bastasse, ele acrescenta: "E por derradeiro de todos me apareceu também a mim, como a um abortivo". Havia algo anormal, extemporâneo a respeito do seu nascimento espiritual. Ele não era como os outros. Os outros tinham ouvido os ensinamentos do Senhor, haviam estado com Ele  o  tempo  todo,  estiveram  presentes  na  crucificação,  viram quando foi sepultado, estiveram como Ele por quarenta dias após a ressurreição, e estiveram com Ele na ascensão. Estiveram com Ele desde o começo até o fim. Entretanto, Paulo ao contrário, tivera um nascimento espiritual de certa forma anormal, extemporâneo; ele viera de uma forma estranha, singular, e "por derradeiro de todos". Isso é o que ele diz a respeito de si mesmo. E naturalmente ele só podia pensar nisso com pesar. Ele devia ter estado ali entre eles desde o princípio, tivera a possibilidade, tivera a oportunidade; mas ele havia odiado o evangelho. Ele "tinha imaginado que contra o nome de Jesus nazareno devia ele praticar muitos atos". Tinha considerado Jesus um blasfemador, e tentou exterminar Seus se­guidores bem como a Igreja. Ali estava ele, do lado de fora, e todos os outros estavam dentro. Todavia, "por derradeiro de todos", e desta forma estranha, ele entrou. Como teria sido fácil para ele gastar o resto da sua vida em remorsos inúteis sobre o seu passado! Ele diz aqui: "E por derradeiro de todos me apareceu também a mim, como a um abortivo. Porque eu sou o menor dos apóstolos, que não sou digno de ser chamado apóstolo, pois que persegui a igreja de Deus". Era tudo verdade, e ele o lamentava profunda­mente; mas isso não paralisou Paulo. Ele não passou o resto da sua vida sentado num canto, dizendo: "Eu fui o último a entrar. Por que fiz isso? Como podia tê-lO rejeitado?" É isso que fazem as pessoas que estão sofrendo de depressão espiritual. No entanto Paulo não fez isso. O que o assombrava era a graça maravilhosa que o capacitara a entrar. E assim ele entrou na nova vida com um zelo tremendo, e ainda que "por derradeiro de todos", num certo, sentido ele se tornou o primeiro.

Qual então é o ensino bíblico? Vamos examinar o que o apóstolo ensina, à luz da parábola do capítulo 20 de Mateus, pois ambos os textos dizem a mesma coisa. O que importa acima de tudo, caso você seja um cristão, não é o que foi outrora, mas o que é hoje. Isso parece ridículo? É tão óbvio que a coisa importante não é o que você foi, mas o que é. Sim, é muito óbvio quando colocado desta forma, mas como é difícil ver isso quando o diabo está nos atacando! O apóstolo disse que ele não era digno de ser chamado apóstolo, porque tinha perseguido a Igreja de Deus; mas ele continua dizendo: "Mas pela graça de Deus sou o que sou". Que importa o que eu fui? "Sou o que sou." Coloque nisso a sua ênfase. Não fique pensando o resto da vida sobre o que você foi. A essência da posição cristã é que você deve lembrar o que é. Certamente o passado permanece com todos os seus pecados. Mas diga a si mesmo:

Resgatado, curado, restaurado, perdoado,

Quem mais pode cantar Seus louvores como eu?

"Sou o que sou" — não importa o que tenha sido o meu passado. E o que sou? Perdoado, reconciliado com Deus pelo sangue de Seu Filho derramado na cruz. Sou um filho de Deus. Fui adotado na família de Deus, e sou herdeiro com Cristo, co-herdeiro com Ele. Estou a caminho da glória. É isso que importa — não o que eu era, não o que eu fiz. Então, se o inimigo está atacando você nesta área, faça o que o apóstolo fez. Volte-se para ele e diga: "O que está dizendo é verdade. Eu fui tudo o que você está dizendo. Mas não estou interessado no que eu era, mas no que sou, e eu sou o que sou pela graça de Deus!"

A segunda dedução é esta — e todas elas são simples e óbvias — não é a época da sua entrada no reino que importa, mas o fato de que você entrou no reino. É isso que importa!  Como é tolo lamentar o fato de que não entramos mais cedo, e permitir que isso nos roube as coisas que poderíamos estar gozando agora. É como um homem indo a uma grande exposição, e descobrindo que há uma longa fila para entrar. Ele chegou um pouco tarde. Chegou ao local da exposição, mas tem que esperar muito tempo, e é quase o último a entrar. O que pensariam desse homem se, depois de entrar, ele ficasse parado na porta dizendo: "Que pena que não fui o primeiro a entrar, que lástima que não cheguei aqui mais cedo"? Vocês achariam graça, e com razão, mas eu gostaria de ressaltar que provavelmente estariam rindo de si mesmos, por­que é exatamente o que estão fazendo, num sentido espiritual. "Oh, por que tardei tanto!" Meu amigo, comece a apreciar as pinturas, examine as esculturas, admire os tesouros. Que importa a hora da sua entrada? O importante é que você entrou, e a expo­sição está aí, diante de seus olhos. Não é a hora da sua entrada que importa. Volte outra vez para o capítulo 20 de Mateus. Aque­les homens foram os últimos a entrar na vinha, era a hora undé­cima, mas eles entraram. Isso era o importante. Eles tinham sido chamados, tinham sido contratados, e foram levados para dentro. É estar dentro que importa, não quando você entrou, ou como você entrou. Eu podia enfatizar isso por muito tempo. É algo que precisa ser repetido constantemente. Não é a forma ou maneira da conversão que importa, o que importa é o fato de que você é salvo. Mas muitas pessoas ficam se preocupando com a maneira como entraram, a época, a forma, o método. Isso não tem importância; o que importa é que você entrou. E se entrou, regozije-se nisso, e esqueça que já esteve fora.

Entretanto, precisamos ir ainda mais adiante. Gostaria de su­gerir que esta manifestação particular de depressão espiritual é devida ao fato que esta pessoa ainda está, mórbida e pecaminosa­mente, preocupada consigo mesma. Eu disse há pouco que preci­samos ser severos com esta condição. E é necessário esclarecer que o problema real com estas pessoas ainda é o "eu". O que estão fazendo? Ainda estão julgando a si mesmas, em vez de deixar o julgamento com Deus. Elas se flagelam, e se criticam porque tardaram tanto e foram tão relutantes, e estão constantemente se condenando a si me; nas. Parecem muito humildes e contritas, mas é uma humildade falsa, é preocupação consigo mesmas. Escutem Paulo falar sobre isso no capítulo quatro de sua primeira epístola aos Coríntios: "Que os homens nos considerem como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus. Além disso, requer-se nos despenseiros que cada um se ache fiel. Todavia, a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por algum juízo hu­mano; nem eu (e esta é uma das maiores declarações que Paulo fez!) nem eu tão pouco a mim mesmo me julgo. Porque em nada me sinto culpado; mas nem por isso me considero justificado; pois quem me julga é o Senhor" (versículos 1-4). Como cristãos, devemos deixar nosso julgamento com Deus. Ele é o Juiz, e vocês não têm o direito de desperdiçar o tempo dEle ou o seu, e suas energias, condenando-se a si mesmos. Esqueçam de si mesmos, deixem o julgamento com Ele; prossigam em seu trabalho. Este problema todo é devido a essa preocupação mórbida com o "eu" na questão do julgamento. Não só isso, é também uma indicação da tendência de ainda pensar em termos do que nós podemos fazer. Esse tipo de pessoa vem a nós com uma aparente humildade, di­zendo: "Se eu tivesse vindo antes, quanto trabalho poderia ter feito!" De certa forma isso é verdade, mas por outro lado é errado, e completamente falso. A parábola do Senhor Jesus sobre os tra­balhadores na vinha teve o propósito de demolir esse argumento.

Quero colocar isso de forma positiva, para terminar. Eu afir­mei que parte do problema dessas pessoas é que elas ainda estão morbidamente preocupadas consigo mesmas, e até agora não apren­deram, como cristãs, que devem negar a si mesmas, tomar a cruz e seguí-lo, e deixar tudo — passado, presente e futuro — em Suas mãos. Ah, sim, mas por que estão morbidamente preocupadas consigo mesmas? A resposta é que não estão ocupadas o suficiente com Ele! O problema real é nossa falha em conhecê-lo e os Seus caminhos como devíamos. Se tão somente gastássemos mais tempo olhando para Ele, logo nos esqueceríamos de nós mesmos. Eu disse há pouco que, depois de entrar na exposição, você não deveria ficar parado na porta lamentando o fato de ter chegado tarde — deveria passar a examinar os tesouros. Quero transferir isso para a esfera espiritual. Você entrou na vida espiritual. Pois bem, pare de olhar para si mesmo e comece a se deleitar nEle! Qual é a diferença entre um cristão e um não-cristão? Paulo, na segunda epístola aos Coríntios, capítulo 3, diz que a diferença é esta: que um não-cristão é alguém que olha para Cristo e para Deus com um véu sobre seus olhos, e portanto não pode ver. O que é um cristão? Esta é sua descrição (versículo 18): "Mas todos nós" — cada um de nós, como cristãos — "todos nós, com cara descoberta (o véu se foi), refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor". Isso é um cristão. Ele passa o tempo olhando para Cristo, contemplando-O. Esta ião" arrebatado pela visão do Senhor que se esqueceu de si mesmo. Se você estivesse mais interessado em Cristo, não teria tanto interesse em si mesmo. Comece a olhar para Ele, contemple-o com seu rosto descoberto, sem véu. E então prossiga, aprendendo que no Seu reino o que importa não é a extensão do seu serviço, mas sua atitude para com Ele, seu desejo de agradá-lo. Volte outra vez para a parábola. Ele não encara o serviço como outras pessoas o fazem. Ele está interessado no coração. Nós estamos interessados em tempo, todos olhamos para o relógio e avaliamos o tempo gasto e o trabalho que realizamos. Como os primeiros homens na parábola, declara­mos ter feito tudo, e nos gabamos do tempo que gastamos no trabalho. E se não estamos entre aqueles que entraram no prin­cípio, então nos preocupamos porque não fizemos isso e aquilo, e porque perdemos tanto tempo. Mas nosso Senhor não está inte­ressado em nosso trabalho desta forma. Ele está interessado na oferta da viúva. Não é a quantia de dinheiro, mas o coração da mulher. E é o mesmo nessa parábola do capítulo 20 de Mateus. Pela mesma razão Ele deu às pessoas que tinham estado na vinha por apenas uma hora o mesmo que Ele deu àqueles que estiveram lá o dia todo. Esse é também o caso que Paulo apresenta aqui. "E por derradeiro de todos me apareceu também a mim". Mas graças a Deus isso não faz a mínima diferença. A Sua graça vai adiante de nós — "pela graça de Deus sou o que sou". Ele não está interessado em tempo, Ele está interessado num relacionamento. Isso me traz ao último princípio. Nada importa no reino senão a graça de Deus. Essa é a mensagem da parábola. Deus tem uma forma diferente de olhar para as coisas. Ele não vê como os ho­mens vêem; Ele não avalia como os homens fazem;  tudo é pela graça do começo ao fim. As últimas pessoas receberam exatamente o mesmo que as primeiras;  receberam o mesmo salário que as primeiras. Na verdade, Ele enfatiza essa verdade ao dizer: "Muitos primeiros serão os derradeiros, e muitos derradeiros serão os pri­meiros". Precisamos parar de pensar dessa maneira carnal, hu­mana. No reino de Deus e de Cristo, tudo é do ponto de vista da graça, e da graça somente; e isso se sobrepõe a qualquer outro regulamento. É Sua graça que importa — "pela graça de Deus sou o que sou". Então cesse de olhar para o que você não fez e para os anos que perdeu, e compreenda que no Seu reino é a Sua graça somente que conta. Você que entrou por último talvez um dia venha a se achar em primeiro lugar, para seu próprio assom­bro, e como as pessoas na parábola no fim do capítulo 25 de Mateus, você perguntará: "Quando foi que fiz isto, quando foi que fiz aquilo?" Ele sabe, Ele vê, Sua graça é suficiente.

Quero terminar com uma exortação do Velho Testamento. "Pela manhã", portanto, "semeia a tua semente, e à tarde não retires a tua mão, porque tu não sabes qual prosperará: se esta, se aquela, ou se ambas igualmente serão boas". Eu me pergunto se estou falando a alguém que passou quase a vida toda longe de Cristo, em pecado e no mundo, alguém que ingressou no reino numa idade avançada, e que tem sido tentado da maneira que descrevi. Se é este o caso, minha palavra para você é esta: "Ao entardecer, ao entardecer da sua vida, não retenha a sua mão neste maravilhoso reino da graça. Ele é sobrenatural. Você talvez venha a descobrir no dia do julgamento que sua recompensa é muito maior do que a daqueles que foram salvos na juventude". Que evangelho glorioso, juventude é a grande palavra hoje em dia — juventude. A questão da idade é irrelevante no reino de Deus, e não é bíblico enfatizá-la da forma como o fazemos, "Pela manhã semeia a tua semente"; sim, mas com o mesmo vigor eu digo: "e à tarde não retires a tua mão".

E então, lembre-se de algo que é talvez uma das coisas mais confortadoras e maravilhosas que podemos encontrar nas Escri­turas. Isto foi dito ao profeta Joel quando ele recebeu aquela grande visão e discernimento quanto à vinda de Cristo, o Cristo que haveria de vir. Esta foi a palavra que ele recebeu para pro­clamar: "E restituir-vos-ei os anos que foram consumidos pelo gafanhoto" (Joel 2:25). Ele prometeu fazê-lo; e Ele pode fazê-lo. Os anos desperdiçados, os anos estéreis, os anos que o gafanhoto, e a locusta e o pulgão e a aruga e todas essas outras coisas devoraram, até que aparentemente nada restou, deles Ele diz: "Restituir-vos-ei os anos que foram consumidos pelo gafanhoto". Se você pensar nisso em termos do que pode fazer com sua própria força e poder, então o tempo será a essência do contrato. Mas estamos numa esfera em que isso não tem importância. Ele vem, e pode nos dar uma colheita em um ano, que vai compensar pela colheita de dez — "restituir-vos-ei os anos que foram consumidos pelo gafanhoto". Esse é o caráter do nosso Mestre, esse é nosso Salvador, esse é o nosso Deus. Digo, portanto, em vista disso: nunca mais olhe para trás; não desperdice seu tempo no presente; não desperdice suas energias: esqueça o passado e regozije-se no fato de que você é o que é pela graça de Deus, e que na divina alquimia da Sua mara­vilhosa graça você talvez venha a ter a maior surpresa da sua vida e da sua existência, ao descobrir que até mesmo no seu caso acon­teceu que os últimos passaram a ser os primeiros. Louve a Deus pelo fato de que você é o que é, e que está no Seu reino.

 

7. MEDO DO FUTURO

"Porque Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza, e de amor, e de moderação".

II Timóteo 1:7

Com estas palavras, somos dirigidos a uma outra causa da condição que descrevemos, em termos gerais, como depressão espi­ritual. Quase não há fim para os meios em que esta condição, esta doença da alma, pode nos atacar. Demonstramos como o nosso adversário, o diabo, é sutil, e pode até mesmo transformar-se num anjo de luz, e isso é verdade; mas é igualmente verdadeiro afirmar que ele é implacável. Com isso quero dizer que ele não desiste. Ele não se importa com que métodos emprega, desde que possa nos abater e desacreditar a obra de Deus; e ele não está preocupado em ser consistente. Ele não hesita em variar o seu sistema, os seus processos, ele não hesita em contradizer o que nos disse anterior­mente; ele tem somente uma preocupação e um objetivo, e é o de trazer descrédito ao nome e à obra de Deus, e especialmente, é claro, à grande obra de Deus em nossa redenção por meio de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

Quando Deus no princípio criou este mundo, é nos dito que "viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom". Ele estava satisfeito com tudo; tudo era perfeito. E foi por causa disso que o diabo, em sua inveja e malícia, determinou estragar e arrui­nar essa obra e concentrar seus esforços especialmente na obra suprema de Deus — a criação do homem. Se ele tão somente pu­desse derrubar o homem, então a obra-prima da criação seria arruinada. Então ele se concentrou, como bem lembramos, na mulher, e a enganou, e ela por sua vez enganou seu marido; e assim o homem caiu. Todavia a história da humanidade não termina neste ponto. Deus propôs e planejou um grande meio de redenção. Esta é, sem dúvida nenhuma, a extraordinária glória de Deus. A redenção é uma obra maior até do que a criação, especial­mente quando consideramos a maneira como Deus a realizou, a saber, enviou Seu Filho unigênito a este mundo, na maravilha e no milagre da encarnação; mas acima de tudo, entregou-0 à morte na cruz. Esta é a coisa suprema — que o homem pecaminoso e caído possa ser redimido e restaurado, e finalmente toda a criação tambem. Obviamente, então, a preocupação suprema do adversá­rio, o diabo, nosso oponente, é tentar de uma forma ou de outra trazer descrédito e desonra a esta obra de Deus. E para isso, ele tem como objeto especial de ataque os herdeiros da salvação, os cristãos, e não há nada que sirva aos seus propósitos tanto quanto nos deprimir e abater, e dar a impressão que essa exaltada salvação c apenas um fruto da imaginação, e que nós que cremos nela temos crido em "fábulas astutamente inventadas". E que melhor modo de fazer isso do que nos levar a uma condição em que damos a impressão de estar sempre deprimidos, abatidos e miseráveis?

Vimos como o diabo procura nos deprimir, fazendo com que concentremos nossa atenção no passado, de modo que, remoendo o passado, fiquemos abatidos. Entretanto, se isso falha, podemos estar certos de que ele mudará completamente a sua estratégia, fazendo com que passemos a olhar para o futuro. Isto é exata­mente o que ele faz, e é do que trata este versículo que estamos considerando agora. Vamos examinar o caso daqueles que estão sofrendo de depressão espiritual porque têm medo do futuro — eles temem o futuro.

Esta, novamente, é uma condição muito comum, e é realmente extraordinário notar a maneira em que o inimigo muitas vezes consegue causar a mesma condição fundamental nas mesmas pes­soas, através desses métodos diametralmente opostos. Quando a gente consegue corrigir a atitude dessas pessoas a respeito do passado, elas imediatamente começam a falar sobre o futuro, e como resultado estão sempre deprimidas no presente. Eles recebe­ram satisfação a respeito do perdão dos pecados — sim, até mesmo daquele pecado particular, que era tão excepcional. Foram cienti­ficados que, embora tenham desperdiçado anos, Ele pode "resti­tuir os anos consumidos pelo gafanhoto". E então dizem: "Ah, sim, mas. . .", e começam a falar sobre seu temor a respeito do futuro e do que está por acontecer.

As Escrituras estão cheias de ensinamentos a respeito disso, mas creio que estou certo ao dizer que o supremo exemplo desta condição é, sem dúvida, o jovem Timóteo, a quem Paulo escreveu esta epístola, bem como a anterior. Foi indubitavelmente seu pro­blema peculiar, e com certeza o apóstolo escreveu ambas estas cartas por causa disso. Ele dependia muito de Paulo devido seus temores a respeito das dificuldades e perigos por vir, e o objetivo das duas epístolas foi corrigir a atitude de Timóteo quanto a esse problema de enfrentar o futuro. Ora, não devemos gastar todo nosso tempo com Timóteo — eu o cito apenas como um exemplo de alguém que estava espiritualmente deprimido por causa do seu medo do futuro.

Quais são as causas dessa condição? Por que é que as pessoas temem o futuro? Quais são as razões que dão para esse temor? Quais são os aspectos particulares dessa dificuldade, e quais são os problemas que tende a produzir, e sobre os quais suas vítimas estão sempre falando? Bem, não há qualquer dúvida de que, antes de tudo o mais, devemos mencionar o temperamento — a formação da pessoa. Todos nascemos diferentes. Não há duas pessoas exata­mente iguais. Temos nossas características particulares, nossas vir­tudes, nossos defeitos, nossas fraquezas e nossas imperfeições. A pessoa humana tem um equilíbrio muito sutil e delicado. Funda­mentalmente todos temos as mesmas características gerais, mas as proporções relativas variam tremendamente de caso para caso, assim como nossos temperamentos variam e diferem. É muito im­portante que mantenhamos isso em mente. "Mas, ah", alguém dirá, "somos cristãos agora, e quando uma pessoa se torna cristã, todas essas diferenças são apagadas". Ora, essa é a falácia essencial a respeito de toda esta questão. Não há mudança mais profunda no universo do que a mudança descrita como regeneração; porém regeneração — a obra de Deus na alma, em que Ele planta a vida divina e espiritual dentro de nós — não muda o temperamento de um homem. Seu temperamento ainda permanece o mesmo. O fato de você ter se tornado cristão não significa que deixou de viver consigo mesmo. Você terá que viver consigo mesmo enquanto estiver vivo, e sempre será você mesmo, e não outra pessoa. Paulo era essencialmente o mesmo homem depois de ser salvo e convertido que era antes. Ele não se tornou outra pessoa. Pedro ainda era Pedro, João ainda era João, em temperamento e em suas características essenciais. É nisso que vemos a glória da vida cristã. É como a variedade na natureza e na criação. Olhem para as flores. Não há duas idênticas. É na variedade dentro da unidade fundamental que Deus demonstra as maravilhas dos Seus caminhos. E é exatamente o mesmo na Igreja Cristã. Todos somos diferentes, nossos temperamentos são diferentes, todos somos nós mesmos. Essa é uma das grandes glórias da Igreja. Deus distribui Seus dons através do Espírito Santo de diversas maneiras, ainda que nossa personalidade essencial continue exatamente a mesma que era antes de nossa conversão. Por personalidade quero dizer nosso temperamento, a forma peculiar em que fazemos as coisas. Fazemos as mesmas coisas, mas de forma diferente. Como cristãos lodos devemos fazer as mesmas coisas essenciais, mas a forma como as fazemos é diferente. Pensem na diferença com que dife­rentes pregadores pregam o mesmo evangelho e a mesma vida cristã; sua maneira de apresentação é diferente, e deve ser dife­rente. E Deus usa essas diferenças para espalhar o evangelho. Ele pode usar um homem para fazer com que a mensagem apele a um certo tipo de pessoa, enquanto que outro pregador não pode­ria ser usado daquela maneira. Apresentações diferentes apelam para tipos diferentes de pessoas, e está certo, e Deus usa a todos.

Então, antes de tudo colocamos o temperamento; e há pes­soas que, por temperamento, são nervosas, apreensivas, temerosas. Paulo mesmo era, eu creio, um exemplo disso. Ele era um homem nervoso, sem auto-confiança, no sentido natural. Ele foi a Corin­to "em fraqueza e temor e grande tremor". Era por natureza um homem timorato — "por fora combates, temores por dentro". Assim era ele por natureza. E isso também era verdade a respeito de Timóteo, e há pessoas que nascem assim. Existem outras pessoas que são auto-confiantes e seguras. Não têm medo de nada; enfrentam qualquer coisa; levantam-se em qualquer lugar. Nem conhecem o significado de "nervos". Esses dois tipos de pessoas são cristãos, e contudo quanto a isso são diferentes, vital e fundamentalmente diferentes. Há alguns cristãos que somente com grande dificuldade podem ser persuadidos a falar em públi­co, e há outros que são exatamente o oposto. Essa questão do temperamento é, portanto, muito importante em nossa conside­ração sobre as causas dessa forma particular de ansiedade e depressão.

Há também outras coisas que emergem quando consideramos o caso de pessoas que temem o futuro. Vocês podem perceber que elas estão sempre preocupadas com a natureza da tarefa que desa­fia  o  cristão.  Têm   um  conceito  muito  alto  da causa  cristã   (a julgar pelas coisas que dizem), e têm uma idéia exaltada da vida cristã. Essas pessoas entendem que não é fácil ser um cristão, que não é apenas uma questão de se converter e então nadar num mar de rosas o resto da vida. Não, elas o vêem como uma alta missão, uma batalha de fé; estão conscientes do caráter superior dessa vida; sabem que significa seguir a Cristo. Elas lêem o Novo Testamento,  e  sendo  invariavelmente pessoas   inteligentes,  estão conscientes da grandeza da tarefa e da chamada. Mas isso, por sua vez, tende a deprimi-las, porque também têm perfeita cons­ciência de sua pequenez. Em outras palavras, têm medo de falhar. Elas temem fracassar para com a causa. Dizem: "Gosto do evan­gelho. Creio que meus pecados foram perdoados. Quero ser um cristão, mas tenho tanto medo de falhar. Tudo está bem enquanto estou em reuniões ou na companhia de pessoas cristãs, mas tenho que viver, e conheço minhas fraquezas; estou consciente da gran­deza da tarefa, e conheço as dificuldades".  Elas têm medo do fracasso; não querem desapontar a Deus e ao Senhor Jesus Cristo e Sua Igreja na Terra. Quem são eles, para viver a vida cristã? A grandeza da tarefa e sua profunda consciência de suas próprias deficiências e necessidades as oprimem. Ou pode ser que simples­mente sofram de um tipo geral de medo do futuro, sem que nada possam definir em particular. Se lhes perguntam se elas têm medo de alguma coisa em especial, elas não sabem, mas têm esse medo indefinido, essa apreensão com respeito ao futuro, de coisas que podem  acontecer, de coisas que elas  talvez  tenham que  sofrer. Tive que tratar com pessoas assim muitas vezes.  Lembro-me de uma senhora que me disse: "Bem, sim, eu creio, mas não sei se posso me chamar de cristã". Quando eu disse: "Por que não?" sua resposta foi alguma coisa assim:   "Tenho lido sobre pessoas no passado, e pessoas no presente que têm sido perseguidas por amor a Cristo, e tenho tentado imaginar a mim mesma enfrentando tal oposição". Ela era mãe de um menino de três anos naquela época, e  disse:  "Sabe, se chegasse num ponto em que eu tivesse  que escolher entre negar minha fé ou abrir mão deste menino, eu não sei o que faria, não sei se seria forte o suficiente;   duvido que tivesse a coragem de colocar Cristo em primeiro lugar a qualquer preço, ou talvez sofrer e morrer se necessário". E por isso ela achava que não tinha o direito de se considerar cristã. Ora, ela nunca   tinha   enfrentado,   e   talvez  nunca   tivesse   que  enfrentar um teste assim, mas estava consciente da possibilidade, e isso a deprimia. Tal depressão espiritual é causada por medo do futuro — muitas vezes temores imaginários.

Não devemos nos deter muito nestas descrições ,ainda que pudéssemos multiplicar os casos. O que é extraordinário, é que isso pode se apossar de nós de tal forma que nos paralize completa­mente no presente; tais pessoas muitas vezes correm o risco de ficarem tão absorvida se envolvidas, nesses temores que se tornam totalmente incapacitadas no presente. Não há dúvida de que esse era o problema de Timóteo. Paulo estava na prisão, e Timóteo começava a se perguntar o que iria acontecer com ele. E se Paulo fosse executado? Como poderia ele, Timóteo, enfrentar sozinho as dificuldades que estavam surgindo na Igreja, e a perseguição que estava começando a se manifestar, na qual o próprio Timóteo talvez acabasse envolvido? Paulo teve que ser bastante firme com ele; dizendo que Timóteo não devia se envergonhar dele ou dos seus sofrimentos — "Portanto não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor, nem de mim, que sou prisioneiro seu; antes participa das aflições do evangelho, segundo o poder de Deus". Medo do futuro era, indubitavelmente, a essência do problema de Timóteo.

A pergunta que se nos apresenta é: como devemos enfrentar esse problema? Como deve ser tratado? Mais uma vez não posso pensar num método melhor do que adotar o processo empregado com o problema anterior. Há certas considerações gerais prelimi­nares a serem feitas, antes de abordarmos os ensinamentos especí­ficos das Escrituras. Por isso, gostaria de apresentar certas propo­sições. A primeira coisa, novamente, é descobrir e saber exata­mente onde está a linha divisória entre prudência legítima quanto ao futuro, e antecipação paralisante. Devemos pensar sobre o futuro, e é muito tola a pessoa que não pensa nele. Mas o que as Escrituras nos exortam constantemente é que não devemos nos preocupar sobre o futuro. "Não vos inquieteis pelo dia de amanhã" significa "não sejam culpados de ansiedade quanto ao amanhã". Não significa que não devemos tomar providências quanto ao futuro; se fosse assim, o fazendeiro não sairia a arar e preparar a terra e semear. Ele está olhando para o futuro, mas ele não passa o tempo todo se preocupando com os resultados do seu trabalho. Não, ele pensa nisso dentro dos limites da razão, e depois descansa. Aqui, novamente, a questão é onde estabelecer o limite. Pensar está certo até um determinado ponto, mas se passarmos desse ponto, isso se transforma em ansiedade e preocupação, que paralisa e incapacita. Em outras palavras, ainda que esteja certo pensarmos sobre o futuro, está errado ser controlado por ele. O problema com as pessoas que são prisioneiras desses temores é que elas são controladas pelo futuro, são  dominadas por pensamentos a respeito dele, constantemente torcendo as mãos em  desespero,  sem  fazer nada,  deprimidas  pelos  seus  temores. Na  verdade,   são  completamente  governadas   e  controladas  pelo futuro desconhecido, e  isso sempre é errado.  Pensar a respeito está certo, mas ser controlado pelo futuro está errado. Ora, essa é uma proposição fundamental, e o mundo já descobriu isso. O mundo nos diz que não devemos cruzar a ponte antes de chegar a ela. Transfiram isso para seu ensino cristão, pois o mundo está certo nisso, e o cristão deve aceitar essa sabedoria. Não cruzem a ponte antes de chegar a ela. De fato, muitas declarações bíblicas em torno desse assunto se tornaram proverbiais — "não vos inquie­teis com o dia de amanhã", "basta a cada dia o seu mal". Certa­mente o Novo Testamento aborda esse conceito e o coloca em termos espirituais. Mas é verdadeiro até o último nível — "basta a cada dia o seu mal". Isso nada mais é que bom senso. Como vimos   antes,   é   uma   perda   de  tempo   preocuparmo-nos   com   o passado que não pode mais ser mudado; mas é igualmente erra­do preocuparmo-nos com o futuro, que no momento é obscuro. "Um passo de cada vez". Vivamos o presente ao máximo, e não permitamos que o futuro hipoteque o nosso presente, nem permi­tamos que o passado o faça.

Passemos agora ao que o apóstolo diz. Ele eleva a argumen­tação a um nível  mais alto, dando-nos ensinamentos específicos de caráter duplo. Primeiramente é uma reprimenda, e em segundo lugar é um lembrete. E ambos são absolutamente vitais e essen­ciais. A primeira coisa que ele faz é repreender Timóteo. Dirige-se a ele dizendo: "Porque Deus não nos deu o espírito de temor". Isso é uma reprimenda. Timóteo era culpado de um espírito de temor,   estava   escravizado   a   ele;   por   isso   Paulo  o   repreende: "Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza, e de amor, e de moderação". O princípio, a doutrina aqui, é que nosso problema   básico,   se   sofremos   desta   manifestação   particular   da depressão espiritual, é nossa falha em compreender o que Deus nos deu, e está dando, ao nos conceder o dom do Espírito Santo. Esse realmente era o problema de Timóteo, e é o problema de todos os cristãos tais como ele. É a falha em compreender o que Deus fez por nós, e o que Ele ainda está fazendo por nós.  De fato, podemos empregar palavras que o Senhor usou certa vez numa circunstância um pouco diferente. Ao responder a Tiago e João, que queriam chamar fogo do céu para consumir certos samari­tanos, Ele disse: "Vós não sabeis de que espírito sois". E isso é o que Paulo está dizendo a Timóteo. Jesus o usou de forma negativa, aqui está de forma positiva. O apóstolo está exortando Timóteo a avivar o dom de Deus.

Nossos temores decorrem da falha de não nos avivarmos — falhamos em pensar, e em assumir controle de nós mesmos. Co­meçamos a olhar para o futuro, e então a imaginar coisas e  a dizer: "O que será que vai acontecer?" E daí nossa imaginação se descontrola. Acabamos dominados por isso, e não paramos a fim de nos lembrar de quem somos e o que somos, nossos temores nos controlam, e ficamos abatidos.  Agora a primeira coisa que precisamos fazer é assumir controle de nós mesmos, erguer-nos, avivar-nos,  dominar-nos,  e  falar conosco  mesmos.  Como  diz  o apóstolo, precisamos nos lembrar de certas coisas. E eu creio que a coisa principal que Paulo está dizendo a Timóteo é: "Timóteo, você parece estar pensando a respeito de si mesmo e a respeito da vida e de tudo que você precisa fazer, como se ainda fosse uma pessoa comum. Contudo, Timóteo, você não é uma pessoa comum! Você é um cristão, você nasceu de novo, o Espírito de Deus está em você. Mas você está enfrentando todas essas coisas como se ainda fosse o que era antes — uma pessoa comum". E não é este o problema com todos nós em relação a isso? Ainda que verdadeiramente sejamos cristãos, que creiamos na verdade, que   tenhamos   nascido   de   novo,   que   sejamos   filhos   de   Deus, caímos nessa situação em que começamos a pensar como se ne­nhuma dessas coisas tivesse nos acontecido. Como o homem do mundo, o homem que nunca foi  regenerado, permitimos  que  o futuro  nos  assalte  e  nos  domine,  e  comparamos  nossa  própria fraqueza e falta de poder com a grandeza da missão e a tremenda tarefa diante de nós. E ficamos abatidos, como se ainda vivêssemos na esfera do homem  natural.  Mas a coisa a fazer,  Paulo diz a Timóteo, é lembrar-se que, como cristãos, temos recebido o dom do Espírito Santo de  Deus, e por causa disso, precisamos  com­preender que toda a nossa perspectiva de vida e do futuro deve ser essencialmente diferente. Precisamos pensar no sofrimento de forma diferente, e encarar todas as coisas de um modo novo. E a forma  que   devemos   enfrentar  isso   tudo,  é   lembrar-nos   que   o Espírito Santo está em nós. O futuro está aí, a missão está diante de nós, a perseguição está aí, a oposição está aí, o inimigo está aí. Vejo tudo isso. Devo também admitir que sou fraco, que me falta o poder necessário, que me falta a tendência. Mas em vez de  parar  aí,  devo  prosseguir dizendo:   "Sim,  eu  sei tudo  isso, mas. . ." E no momento que eu uso essa palavra "mas", estou fazendo o que o apóstolo quer que eu faça. Digo: "Mas — mas o Espírito de Deus está; em mim; Deus me deu o Seu Espírito Santo". No momento em que eu digo isso, a perspectiva muda completamente. Em outras palavras, precisamos aprender a dizer que o que importa em  qualquer uma dessas  questões, não é o que é verdade a meu respeito, mas o que é verdade a respeito dEle. Timóteo era fraco por natureza, o inimigo era poderoso, e a tarefa era grande. Está certo, mas ele não devia pensar apenas em si mesmo, ou na situação em termos de si mesmo — "Porque Deus não nos deu o espírito de temor. Ele nos deu o Espírito de poder".   Então,  não  pensem  em   sua  própria  fraqueza;   pensem no poder do Espírito de Deus. É quando começamos a fazer isso que equilibramos nossa  doutrina  e vemos  a  situação toda cla­ramente.

Já me esforcei muito para enfatizar que nossos temperamen­tos são diferentes, e quero enfatizá-lo de novo. No entanto, neste ponto eu diria que, embora nossos temperamentos sejam diferen­tes, eles não deviam fazer qualquer diferença face a face com a tarefa. Aqui está o milagre da redenção.  Deus nos  deu nossos temperamentos. Mais uma vez, todos temos temperamentos dife­rentes, e isso também é de Deus. Sim, mas nunca deveria acon­tecer conosco, como cristãos, o sermos controlados por nossos tem­peramentos. Devemos ser controlados pelo Espírito Santo. A coisa deve ser colocada nessa ordem. Aqui estão forças e capacidades, e aqui estão nossos temperamentos específicos que as usam, mas o ponto vital é que, como cristãos, devemos  ser controlados pelo Espírito Santo. É uma tragédia quando o cristão permite que o seu temperamento o controle. O homem natural sempre é contro­lado por seu temperamento, ele não pode evitar isso; mas a dife­rença que a regeneração faz, é que agora há um controle superior até ao temperamento. No momento em que o Espírito Santo entra numa pessoa, Ele controla tudo, inclusive o temperamento, capa­citando-a então a operar através do seu temperamento. Esse é o milagre da redenção. O temperamento permanece, porém não está mais no controle. O Espírito Santo está no controle.

Vamos agora examinar isso em detalhe. "Deus não nos deu o espírito de temor". Que espírito, então, Ele nos deu? Notem: "Deus não nos deu o espírito de temor, mas de poder. . ." Isso é o que Ele coloca em primeiro lugar, e com razão. Temos uma tarefa, e conhecemos nossa própria fraqueza. Sim, mas há um poder até para os fracos, e significa poder no sentido mais amplo que se possa imaginar. Vocês estão com medo de não serem capa­zes de viver a vida cristã? A resposta é: "Operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar". O temor e o tremor permanecem. Isso faz parte dos seus temperamentos, mas vocês são capacitados a trabalhar através do poder "que opera em vós tanto o querer como o efetuar". Então, não se tornam pessoas que não sentem medo ou não são mais sujeitas ao temor. Ainda têm que operar a sua salvação com temor e tremor, mas há poder apesar disso. É o poder de Deus operando em vocês "tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade". Mas isso se refere não só à questão de viver a vida cristã, e batalhar contra tentações e pecados; também significa poder para resistir, poder para prosseguir, não importa as condições ou circunstâncias, poder para perseverar e ficar firme. E digo mais: significa que a pessoa mais tímida pode receber poder para todas as coisas — até para enfrentar a morte. Isso foi evidente nos apóstolos; pode ser visto num homem como Pedro, que tinha medo da morte, tinha medo de morrer. Ele até negou o Senhor por causa desse medo, dizendo: "Não O co­nheço, nada tenho a ver com Ele". Negou com pragas e jura­mentos o seu bendito Senhor, seu maior benfeitor, para salvar sua vida. Mas olhem para ele depois, no livro de Atos dos Apósto­los. O Espírito de poder tinha entrado nele, e agora ele está pronto a morrer, pronto a enfrentar as autoridades, pronto a enfrentar qualquer pessoa. Essa é uma das coisas mais gloriosas nos longos anais da história da Igreja, e ainda está acontecendo. Nunca me canso de dizer a cristãos que leiam as histórias dos mártires, dos pais da Igreja, dos reformadores, dos puritanos e outros. Leiam essas histórias e não encontrarão apenas homens fortes e corajosos, mas também mulheres e jovens fracos, e até mesmo crianças morrendo gloriosamente por amor a Cristo. Não podiam fazê-lo por si mesmos, mas receberam o espírito de poder. Ora, isso é o que Paulo quer dizer aqui. Ele diz a Timóteo: "Não fale assim. Você está falando como um homem natural. Está falan­do  como  se  você  mesmo,  com  seu próprio  poder,  tivesse  que enfrentar isso tudo. Mas Deus lhe deu o espírito de poder. Vá em frente. Ele vai estar com você. Você nem vai mais se conhecer; vai ficar assombrado consigo mesmo. E ainda que possa significar ter que enfrentar a morte, irá regozijar-se por ter sido considerado digno de sofrer vergonha e até mesmo à morte por amor do Seu glorioso nome". Poder! Ele foi dado. E o que você e eu devemos fazer, quando somos tentados a ficar deprimidos por causa das coisas que estão contra nós, é dizer: "Eu tenho o Espírito Santo, e Ele é o Espírito de poder".

A próxima coisa que ele menciona é "amor". E eu considero isto muito interessante, fascinante mesmo. Eu me pergunto quan­tos teriam colocado amor neste ponto da lista? Por que vocês acham que ele o colocou aqui? O que ele está querendo dizer? "Deus não nos deu o espírito de temor, mas de poder. ..". Sim, eu entendo que preciso de força. Mas amor — por que amor? Certamente não é amor que esta pessoa tímida precisa! Por que ele coloca isso em segundo lugar — o espírito de amor? Aqui temos uma soberba migalha de psicologia, pois, no fim das contas, qual é a causa principal do espírito de temor? A resposta é "o eu". Auto-preocupação, auto-proteção, egoísmo. Vocês já perceberam que a essência deste problema é que estas pessoas medrosas real­mente estão absorvidas demais em si mesmas — "Como posso fazer isso? E se eu falhar?" "Eu" — estão constantemente volta­das para si mesmas, olhando para si mesmas e preocupadas con­sigo mesmas. E é aqui que o espírito de amor entra, porque só há um modo de alguém se libertar de si mesmo. Há somente uma cura para isso. Ninguém pode tratar com seu próprio "eu". Esse foi o erro fatal daqueles pobres homens que se tornaram monges e eremitas. Eles conseguiram se afastar do mundo e das outras pessoas, mas não conseguiam se afastar de si mesmos. O nosso "eu" está dentro de nós e não podemos nos livrar dele; quanto mais nos mortificarmos a nós mesmos, mais a nossa natureza vai atormentar-nos.

Há somente uma maneira de nos libertar — é nos absor­vermos tanto em outra coisa ou outra pessoa, que não tenhamos tempo de pensar em nós mesmos. Graças a Deus, o Espírito Santo torna isso possível. Ele não é apenas o "Espírito de poder", mas também é o "Espírito de amor". Que significa isso? Significa amor a Deus, amor ao grande Deus que nos criou, amor ao grande Deus que planejou um caminho de redenção para nós, miseráveis criaturas — que nada merecemos senão o inferno. Ele nos amou com um amor eterno. Pense nisso, diz Paulo a Timóteo, e quando você se absorver no amor de Deus, vai se esquecer de si mesmo. "O Espírito de amor!" Esse Espírito de amor libertará vocês do auto-interesse, da auto-preocupação, da depressão por causa de si mesmos, porque depressão é resultado do "eu" e da auto-preo­cupação. Ele liberta do "eu" em todas as áreas. Então, falem consigo mesmos a respeito deste eterno, grandioso amor de Deus — o Deus que olhou para nós, apesar do nosso pecado, que planejou o caminho da redenção, e não poupou Seu próprio Filho, mas O entregou por todos nós.

E então? Continuem pensando no amor do Filho, em sua extensão, comprimento, profundidade, altura; conheçam o amol­de Cristo, que excede todo o entendimento. Pensem nEle que desceu das cortes do céu e pôs de lado as insígnias da Sua eterna glória, que nasceu como um bebê, trabalhou como um carpinteiro, e suportou tais contradições dos pecadores contra Si mesmo. Pensem nEle, em cujo santo rosto homens cuspiram, colocaram uma coroa de espinhos em Sua cabeça, e vararam Suas mãos e pés com pregos. Ali está Ele, na cruz. Que está fazendo ali? AH Ele morreu por nós, para que pudéssemos ser perdoados e recon­ciliados com Deus. Pensem no Seu amor, e à medida que come­çarem a entender algo a respeito, vão se esquecer de si mesmos.

E daí, amor aos irmãos. Pensem em outras pessoas, suas necessidades, suas preocupações. Devo prosseguir? Timóteo parece que estava conjecturando: "Eu posso ser morto". Paulo diz: "Pense em outras pessoas; olhe para essas pessoas perecendo em seus pecados. Esqueça de si mesmo". Cultivem amor pelos perdidos, amor pelos irmãos da mesma forma, e amor pela causa maior e mais nobre do mundo, esta bendita, gloriosa causa do evangelho. Ponham isso em prática. Isto é o que o apóstolo quer dizer com "espírito de poder e de amor". Se forem consumidos por este espí­rito de amor, vão se esquecer de si mesmos. Vão dizer que nada importa exceto o Cristo que Se deu a Si mesmo por vocês, e nada é demais para darem a Ele. Como o conde Zinzendorf, vocês terão somente uma paixão, que será: "Ele, e Ele somente!" Q espírito de amor!

E finalmente, "moderação" — "Deus não nos deu o espírito de temor, mas de poder, e de amor, e de moderação". Que signi­fica isso? É o antítodo certo para o espírito de temor — auto-con­trole, disciplina, uma mente equilibrada. Ainda que sejamos tími­dos  e nervosos, o  Espírito que  Deus  nos  deu  é  o   Espírito  de controle, o Espírito de disciplina, o Espírito de Julgamento. Nosso Senhor já disse tudo isso antes mesmo de Paulo pensar nisso. Paulo está apenas repetindo e expondo algo que o Senhor já havia ensinado. Lembrem-se do que Ele disse aos discípulos quando os enviou a pregar. Ele os advertiu que seriam odiados, e persegui­dos, e que talvez chegasse o dia em que tivessem de entregar suas vidas, ou certamente serem levados diante de juízes para defender suas cidas. Contudo, prosseguiu e disse: "Quando vos entregarem, não vos dê cuidado como, ou o que haveis de falar, porque na­quela mesma hora vos será ministrado o que haveis de dizer". Estarão nos tribunais sendo interrogados, e eles farão todo o possí­vel para pegá-los em alguma palavra, mas não se preocupem, diz o Senhor, porque naquela hora lhes será dado o que devem dizer. Não precisam temer, não perderão a calma; não ficarão tão alar­mados ou assustados que não saibam o que dizer; porque "naquela mesma hora vos será ministrado o que haveis de dizer". O espírito de sabedoria e de moderação!

Posso resumir este ponto de forma breve numa só ilustração. É a história de uma jovem nos dias dos "Covenanters", os parti­dários da Reforma na Escócia. Ela ia participar de um culto da Ceia do Senhor realizado pelo grupo num domingo à tarde, e, naturalmente, tais cultos eram absolutamente proibidos. Os solda­dos do rei da Inglaterra estavam à procura, em toda parte, das pessoas que iam se reunir para participar daquele culto da Ceia do Senhor, e quando essa jovem virou uma esquina, defrontou-se face a face com um grupo de soldados, e soube que estava encurra­lada. Por um momento ela imaginou o que deveria dizer, mas imediatamente ao ser interrogada, surpreendeu-se a si mesma, res­pondendo: "Meu Irmão mais velho morreu, e vão ler Seu testa­mento esta tarde, e Ele deixou algo para mim, e quero ouvir a leitura do testamento". E permitiram que ela prosseguisse. "Deus não nos deu o espírito de temor, mas de poder, e de amor, e de moderação" — sabedoria, prudência, entendimento. Ele os fará sábios como as serpentes; serão capazes de fazer declarações abso­lutamente verdadeiras aos seus inimigos, e eles não vão entender, e os deixarão ir. Ah, sim, seu Irmão mais velho tinha morrido. Cristo tinha morrido por ela, e naquele culto Seu testamento seria lido novamente, e ela relembraria mais uma vez o que Ele deixara para ela e o que tinha feito por ela. Como vêem, o mais ignorante e o mais tímido no reino de Cristo vai receber um espírito de moderação e de sabedoria. Não se preocupem, Cristo diz; receberão naquela hora o que devem dizer. Ele lhes mostrará o que fazer, revelará o que devem dizer, e se necessário, Ele lhes impedirá de qualquer reação. Não vivemos por nós mesmos. Não devemos pensar em nós mesmos como pessoas comuns. Não somos pessoas naturais; nós nascemos de novo. Deus nos deu o Seu Espí­rito Santo, e Ele é o Espírito "de poder, e de amor, e de mode­ração". Portanto, àqueles que são particularmente propensos à depressão espiritual devido ao temor do futuro, eu digo em nome de Deus e com as palavras do apóstolo: "Despertem o dom", falem consigo mesmos, relembrando o que é verdade a seu respeito. Em vez de permitirem que o futuro e preocupações a seu respeito os escravizem, falem consigo mesmos, relembrando quem são e o que são, e que o Espírito está em vocês: e, havendo-se lembrado do caráter do Espírito que está em vocês, então serão capazes de prosseguir com firmeza, sem temer coisa alguma, vivendo no pre­sente, prontos para o futuro, com somente um desejo — o de glori­ficar Aquele que deu tudo por vocês.

 

8. EMOÇÕES

"Por cujo motivo te lembro que despertes o dom de Deus que existe em ti pela imposição das minhas mãos".

II Timóteo 1:6

Esta é uma grande declaração, mas nosso interesse primário nela está na exortação que o apóstolo dirige a Timóteo, dizendo que ele devia "espertar" o dom que havia nele. E chamo sua atenção a isso como parte de nossa consideração geral do assunto que descrevemos como "depressão espiritual". Estamos tentando diagnosticar e tratar o caso do chamado cristão miserável. Temos nos esforçado para indicar que o próprio termo, em si mesmo, dirige nossa atenção para o que está essencialmente errado nessa condi­ção. Essas palavras são realmente incompatíveis, e no entanto precisamos colocá-las juntas porque elas são uma descrição muito correra de certas pessoas — cristãos miseráveis. Devia ser impos­sível, mas é na verdade um fato. Não devia existir tal coisa, mas existe, e é nosso dever, de acordo com os ensinamentos das Escrituras, tanto do Velho como do Novo  Testamento, tratar desse problema.

Existem pessoas, eu sei, que nem sequer reconhecem a exis­tência do problema, e afastam a idéia com impaciência, dizendo que um cristão é alguém que canta o dia todo, e que, desde que se converteu, esta tem sido sua história — sem qualquer onda na superfície de sua alma, e tudo correndo bem. Uma vez que não reconhecem a existência do problema, têm sérias dúvidas a respei­to daqueles que são propensos à depressão, e até mesmo duvidam que tais pessoas possam ser cristãos. Mostramos repetidamente que as Escrituras são muito mais compassivas com tais pessoas, e apresentam claramente em seus ensinos que é possível que um cristão fique deprimido. Não justificam isso, mas reconhecem o fato, e é o dever de qualquer pessoa que está procupada com o cuidado e bem-estar da alma, entender tais casos e aplicar a eles o remédio que Deus proveu tão livremente nas palavras das Escrituras.

Já consideramos muitas causas dessa condição, e vamos pros­seguir. Elas são quase intermináveis, pois somos confrontados, como eu já mencionei, por um adversário muito sutil e poderoso, o qual nos conhece muito bem, melhor do que nós mesmos nos conhecemos, e seu grande objetivo e empenho é depreciar a glória de Deus e a glória do Senhor Jesus Cristo. Ora, não há modo mais eficiente de fazer isso, do que tornar o povo cristão miserável e deprimido, porque o fato é que o mundo ainda julga Deus e o Senhor Jesus Cristo pelo que vê em nós, e não podemos culpá-los por isso. Fazemos certas declarações; a própria designação de cris­tãos, que aplicamos a nós mesmos, é uma alegação e um desafio, e as pessoas do mundo têm o direito de olhar para nós. "Vocês fazem estas grandes alegações" — dizem elas, e então, olhando para nós, perguntam: "Isso é cristianismo? É para isso que vocês estão nos convidando?" Não há nenhuma dúvida, e vamos deixar isto bem claro, que a razão, acima de todas as outras, responsável pelo fato de tantas pessoas estarem fora da Igreja Cristã hoje, é a condição daqueles que. estão dentro dela. Leiam a história de qualquer avivamento que já houve, e descobrirão que o começo sempre foi o mesmo. Um homem, ou às vezes um grupo de pessoas, subitamente foi despertado para a verdadeira vida cristã, e outros começam a prestar atenção. Reavivamente sempre começa na Igreja, e quando o mundo vê isso, começa a prestar atenção. É por isso que nossa condição como crentes é tão importante.

Já consideramos a maneira como o diabo consegue que nos concentremos no passado — em certo pecado que cometemos, ou o tempo que desperdiçamos — e como lamentamos aquilo e fica­mos deprimidos no presente porque nos preocupamos com o pas­sado. E vimos como ele muda de tática quando isso não funciona, tentando nos levar à depressão no presente ao nos encher de temo­res e pressentimentos sobre o futuro.

Vamos agora passar para outro assunto muito ligado a este, e intimamente associado com esses temores e apreensões com respeito ao futuro. Este assunto é indicado neste sexto versículo (de II Timóteo, capítulo I) e se relaciona com o problema das emoções — emoções na vida cristã. Talvez não haja causa mais frequente de depressão espiritual e infelicidade na vida cristã, do que este problema das emoções. Onde é que elas entram, e como devem ser? Muitas pessoas estão constantemente perturbadas com esta questão, e tenho certeza que todos que já estiveram envolvi­dos em trabalho pastoral concordarão que não há outro assunto que leva tanta gente ao pastor, com tanta frequência, como este problema das emoções. Ora, isso é muito natural, porque, afinal, todos queremos ser felizes. Isso é algo inato na natureza humana; ninguém quer ser miserável, embora eu esteja consciente de que há pessoas que parecem se deleitar na miséria, e outras que pare­cem encontrar sua felicidade no fato de que são infelizes!

Eu considero que é uma grande parte da minha chamada ao ministério, enfatizar a prioridade da mente e do intelecto em cone­xão com a fé; mas ainda que eu insista nisso, estou igualmente pronto a asseverar que as emoções, as sensibilidades, os sentimen­tos, obviamente são de importância vital. Fomos criados de tal forma que eles exercem um papel dominante em nossa formação. Na verdade, eu creio que um dos maiores problemas em nossa vida neste mundo, não só para cristãos, mas para todas as pessoas, é lidar corretamente com nossas emoções e sentimentos. Oh, a devastação que é provocada, a tragédia, a miséria e desgraça que encontramos no mundo simplesmente porque as pessoas não sabem como lidar com suas emoções! O homem é constituído de tal forma que suas emoções ocupam uma posição muito proeminente, e de fato, podemos dizer que talvez a coisa final que a regene­ração e o novo nascimento fazem por nós, é justamente colocar a mente, as emoções e a vontade em suas posições correias. Vamos prosseguir, considerando isso ao analisarmos o assunto. É obvia­mente um grande assunto, o qual não pode ser tratado de forma breve, mas é importante que tenhamos uma visão ampla do assunto.

Há um ponto preliminar aqui que para mim é de muito inte­resse. É, como eu sugeri no princípio, que existe um curioso relacionamento entre este problema particular e aquele outro pro­blema de sentir ansiedade e temor a respeito do futuro. Estas coisas tendem a aparecer juntas, então não é de surpreender que ambas são encontradas neste capítulo. Timóteo, obviamente, era uma pessoa naturalmente tímida, mas igualmente era uma pessoa propensa à depressão; e as duas coisas com frequência são encon­tradas no mesmo tipo de pessoa. Mais uma vez, então, precisamos esclarecer que há certas pessoas que são mais propensas à depres­são, num sentido natural, do que outras. Quero também salientar e enfatizar novamente esta declaração vital em conexão com todo este assunto, que conquanto sejamos convertidos e regenerados, nossa personalidade fundamental não muda. O resultado é que a pessoa que é mais propensa à depressão antes de se converter, ainda terá que lutar contra isso após sua conversão. Todos temos certos problemas comuns na vida cristã, mas também temos certos problemas específicos. Nossos dons variam, nem todos temos os mesmos talentos; e é exatamente o mesmo na questão das nossas dificuldades. "O coração conhece a sua própria amargura", e cada homem tem o seu próprio fardo para carregar. Todos temos algo que representa uma dificuldade peculiar para nós, e em geral é algo que pertence à esfera do nosso temperamento ou formação natural. Então a pessoa que é naturalmente dada à introspecção, morbidez e depressão, vai continuar enfrentando isso na vida cristã. Esse tipo de pessoa sempre vai enfrentar o perigo de ficar deprimida, particularmente em conexão com esta área das emoções.

Portanto, creio que a coisa mais proveitosa a fazer seria examinar este assunto de uma forma geral, e talvez abordar os aspectos particulares mais tarde. Vamos então fazer uma série de declarações gerais a respeito das emoções e o seu lugar na vida cristã. Uma das primeiras perguntas que surgem é esta: onde entram as emoções, qual é o seu papel, qual devia ser a sua posi­ção na experiência cristã? Vou fazer algumas declarações gerais em relação a isso. Antes de tudo, obviamente, na verdadeira expe­riência cristã, as emoções têm que estar envolvidas. Elas devem estar incluídas. Vimos isso quando consideramos aquela grande declaração que Paulo fez aos romanos no capítulo 16, versículo 17. A ênfase ali é que o evangelho de Jesus Cristo é tão grande e glorioso que envolve o homem todo, e não apenas uma parte dele. O que eu quero mostrar agora, portanto, é que nossas emo­ções, tanto quanto nossa mente e nossa vontade, devem estar ativamente envolvidas. Se nunca fomos tocados em nossas emo­ções, então precisamos examinar as bases novamente. Se um poeta como Wordsworth, pensando na natureza, podia dizer: "Senti uma Presença que me agita com a alegria de pensamentos eleva­dos" — se um poeta místico podia dizer uma coisa assim — quanto mais nós devíamos ser capazes de dizê-lo, tendo tal evan­gelho, tal mensagem, tal Salvador, tal Deus, e com tal poder e influência como o Espírito Santo de Deus. Não se pode ler o Novo Testamento sem ver imediatamente que a alegria é uma parte essencial da experiência cristã. Uma das coisas mais notáveis que a conversão faz, é nos tirar de um "lago horrível, um charco de lodo, e pôr nossos pés sobre uma rocha, e firmar nossos passos, e colocar um novo cântico na nossa boca". As emoções devem estar envolvidas, e quando o evangelho chega a nós ele envolve a pessoa toda. Toda sua mente, quando ela compreende suas glorio­sas verdades, toca seu coração da mesma forma, e finalmente toca sua vontade.

A segunda declaração que quero fazer é esta — e estes são pontos muito simples e elementares, mas muitas vezes temos pro­blemas porque os esquecemos — não podemos criar emoções, nem podemos comandá-las segundo a nossa vontade. Deixem-me pôr isto bem claro. Não podemos gerar emoções em nós mesmos. Talvez possamos fazer com que lágrimas cheguem aos nossos olhos, mas isso não significa necessariamente que emoções reais estejam envolvidas. Existe um falso sentimentalismo que é bem diferente da verdadeira emoção. Isso é algo fora do nosso controle; não podemos criá-la. Por mais que tentemos, não teremos sucesso. Na verdade, de certa forma, quanto mais tentarmos produzir emoções em nós mesmos, mais aumentaremos nossa própria miséria. Olhan­do para isso do ponto de vista psicológico, é uma das coisas mais extraordinárias sobre o homem, que nesta área ele não é senhor de si mesmo. Ele não pode gerar ou produzir emoções, não pode trazê-las à existência, e tentar fazer isso sempre vai acabar agra­vando o problema.

Isso me leva à minha próxima declaração, a qual é, clara­mente, que não há nada que seja tão variável em nós como nossas emoções. Somos criaturas muito variáveis, e nossas emoções, de tudo que há em nós, são o que temos de mais variável. Isso se deve ao fato de que elas dependem de tantos fatores; existem tantas coisas que influenciam nossas emoções; não somente o tem­peramento, mas também condições físicas. Os povos antigos, como talvez saibam, criam que as emoções estavam localizadas em dife­rentes órgãos do corpo. Num certo sentido eles estavam certos: falavam de fleuma, de atitudes melancólicas — "tudo parece ama­relo a quem tem icterícia", etc. Há um elemento de verdade nisso. Condições físicas nos afetam profundamente. E quero salientar novamente que tendo se tornado cristãos não significa que vocês perdem imediatamente todas essas tendências da sua constituição. Ainda estão ali, e portanto, com todos esses fatores, nosso humor tende a variar. Ficamos assombrados muitas vezes, ao acordar, quando notamos que nosso humor ou atitude é completamente diferente do que tinha sido no dia anterior. Vocês não conseguem pensar em nada que possa ter causado isso. No dia anterior podem ter se sentido perfeitamente felizes, e foram dormir antecipado outro dia glorioso, mas acordam na manhã seguinte deprimidos e de mau humor. De repente, sem qualquer explicação, se acham nesse estado de espírito. Ora, isso é a essência do problema. Em outras palavras, nossos sentimentos variam, por isso quero enfatizar o perigo de sermos controlados por eles. Já vimos que o mesmo é verdade no que se refere ao nosso temperamento, qualquer que ele seja. Todos recebemos nosso temperamento de Deus. Ele não criou duas pessoas iguais, e devemos permanecer diferentes. Sim, temos o nosso temperamento, mas não há nada mais errado e anti-cristão do que permitir que nosso temperamento nos controle. Naturalmente há pessoas que se gloriam em fazer isso. Todos co­nhecemos a pessoa que diz: "Sempre digo o que penso". Imaginem o dano causado por tais pessoas, ao calcarem aos pés sem consi­deração a sensibilidade de outras pessoas! Que aconteceria se todos fizessem isso? Dizem: "Sou assim!" Bem, a resposta a essas pessoas é que não deviam ser assim! Isso não quer dizer que podem mudar seu temperamento, mas que devem controlá-lo. Em outras palavras, o temperamento é um dom de Deus, mas como resultado da queda e do pecado o temperamento precisa ser mantido em seu lugar. É um dom maravilhoso, porém para ser controlado. E é exatamente o mesmo com nossas emoções. Elas estão sempre tentando nos controlar, e se não compreendermos isso, sem dúvida o farão. É a isso que nos referimos quando falamos de humor e de melancolia. O mau humor parece descer sobre nós. Não o queremos, mas está aí. "Ora, o perigo é permitir que ele nos controle. Acordamos de mau humor de manhã, e a tendência é de continuar assim durante o dia, e permanecer assim até que algo aconteça para mudar isso. Temos um grande exemplo disso no Velho Testamento, no caso de Saul, rei de Israel. Corremos o risco de nos submetermos às nossas emoções, permitindo que nos governem e comandem e controlem toda a nossa vida.

Finalmente, ainda sob este tópico, quero chamar a atenção para o perigo de pensarmos que não somos cristãos porque não tivemos algum tipo especial de emoção ou experiência. Do ponto de vista espiritual, esta é uma das manifestações mais comuns desta condição. Estou pensando em pessoas que ouviram outras dando o seu testemunho, mencionando alguma emoção maravilhosa que tiveram, e elas dizem a si mesmas: "Eu nunca tive isso". E come­çam a conjecturar se realmente são cristãs. Quero repetir o que já disse antes: as emoções devem fazer parte do verdadeiro cristia­nismo, mas o fato de não termos sentido certas emoções especiais, não significa necessariamente que não somos cristãos. As emoções são essenciais, mas se pressupomos que certas emoções são essen­ciais, podemos muito bem nos tornar vítimas do diabo, passando o resto da nossa vida na infelicidade, "presos em superficialidade e miséria", embora sejamos verdadeiramente cristãos.

Considero este um tema fascinante, mas preciso evitar a ten­tação de entrar em divagações. Não há dúvida, entretanto, que este ponto em particular levanta não somente a questão do tempe­ramento, mas também da nacionalidade. Não há dúvida que certas nacionalidades são mais dadas a determinados pontos de vista sobre a vida. Certamente existem pessoas na fé cristã, e em geral pertencem às raças célticas, que chegam ao ponto de dizer que é errado um cristão ser muito feliz. Têm tanto medo das emoções, que estão prontas a dizer que sentimentos de felicidade e alegria são quase certamente devidos àquilo que é falso. Isso não está confinado apenas a raças, mas é também uma característica de certas denominações. Houve um sermão pregado por J. C. Philpot, um dos fundadores dos "Batistas Estritos", e que tinha este título: "O filho da luz andando nas trevas e o filho das trevas andando na luz". Era baseado nos dois últimos versículos do capítulo 50 do livro do profeta Isaías. No sermão, Philpot declarava que uma pessoa pode incitar emoções falsas, que pode acender um tipo maravilhoso de fogo e experiências, mas que não vai durar. "O verdadeiro filho de Deus", ele dizia, "por compreender a praga do seu próprio coração e de sua própria pecaminosidade, anda por este mundo penosa e laboriosamente, consciente do seu pecado e da grandeza e majestade de Deus". Eu concordo com a sua ênfase principal, mas sugiro que nesse sermão esse grande e glorioso pre­gador foi longe demais, porque a impressão final que ele deixa conosco é que, se alguém é feliz, provavelmente há alguma coisa errada com ele, e não é realmente um cristão. Isso é ir longe demais. Sem dúvida existem pessoas que pensam que são cristãs, cuja experiência é certamente psicológica em vez de espiritual. Felicidade frívola e despreocupada não é alegria cristã, mas isso não deveria nos levar a dizer que a alegria não é algo cristão.

Bem, o que as Escrituras nos dizem a respeito de tudo isto? Como devemos tratar desse problema das emoções? Quero apre­sentar algumas sugestões. A primeira é bem prática — é simples­mente a seguinte: se você, meu amigo, está deprimido neste mo­mento, deve se certificar de que não existe uma causa óbvia para a ausência de emoções jubilosas em sua vida. Por exemplo, se você é culpado de algum pecado, vai sentir-se miserável. "Duro é o caminho dos transgressores". Se quebrou as leis de Deus e violou Seus mandamentos, não vai ser feliz. Se acha que pode ser cristão e exercer sua própria vontade, seguindo seus próprios ca­minhos, sua vida cristã vai ser miserável. Não há necessidade de argumentar a respeito, isso se segue tão naturalmente quanto a noite segue o dia, se você está abrigando algum pecado favorito, se está se agarrando a algo que o Espírito Santo está condenando através da sua consciência, então não será feliz. E há somente uma coisa a ser feita: confessá-lo, reconhecê-lo, arrepender-se, ir a Deus imediatamente e confessar seu pecado, abrir seu coração, descobrir a sua alma, contar-Lhe tudo, sem reter coisa alguma, e então crer que, porque você fez isso, Ele o perdoou. "Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados, e nos purificar de toda a injustiça". Se pecado não confessado é a causa de sua infelicidade, eu estaria perdendo o meu tempo e o seu, se continuasse com minha lista de outras causas. Quantos estão presos nisso! Vamos ser perfeitamente claros a respeito; deixe sua consciência falar com você. Ouça a voz de Deus falando através do Seu Espírito que está em você, e se Ele está colocando Seu dedo sobre algo, livre-se daquilo. Não pode esperar resolver este problema enquanto estiver abrigando algum pecado.

Mas presumindo que não é este o caso, a próxima coisa que eu diria seria esta. Evite o erro de concentrar demais em suas emoções. Acima de tudo, evite o terrível erro de colocá-las no centro. Eu nunca me canso de repetir isso porque frequentemente descubro que isso leva a tropeços. Emoções nunca devem assumir o primeiro lugar, nunca devem ocupar o centro. Se você as colocar ali, estará se condenando à infelicidade, porque não está seguindo a ordem que o próprio Deus estabeleceu. As emoções sempre são o resultado de outra coisa, e como alguém que já tenha lido a Bíblia pode cair nesse erro ultrapassa minha compreensão. O sal­mista o expressa no Salmo 34, dizendo: "Provai, e vede que o Senhor é bom". Você nunca vai ver enquanto não provar; não vai saber, nem sentir, enquanto não experimentar. "Provai e vede", um segue ao outro como a noite segue o dia. Ver antes de provar é impossível. Isso é algo que é constantemente enfatizado nas Escrituras. Afinal, o que temos na Bíblia é a verdade; não é um estímulo emocional, não é algo destinado primariamente a nos dar uma experiência jubilosa. É, antes de tudo, verdade, e verdade é algo dirigido à mente, o dom supremo de Deus ao homem; e é quando compreendemos a verdade e nos submetemos a ela, que as emoções se seguem. Nunca devo fazer a mim mesmo, à primeira instância, a pergunta: "Que sinto a respeito disto?" A primeira pergunta deve ser: "Creio nisso? Aceito isso, isso tomou conta de mim?" Considero esta, talvez, a regra mais importante de todas, que não devemos nos concentrar demais nas emoções. Não gaste tanto tempo sentindo seu próprio pulso e tirando sua própria temperatura espiritual, não gaste tanto tempo analisando seus sen­timentos. Essa é a estrada principal que leva à morbidez.

Esta questão é extremamente sutil, e a sutileza muitas vezes entra desta maneira. Lemos as biografias dos grandes santos da história da Igreja, e descobrimos que cada um deles enfatizou a importância de se auto-examinar. Independente de qual ponto de vista teológico tenham defendido, todos são unânimes neste ponto. Eles instam que nos examinemos a nós mesmos, que precisamos examinar nossos próprios corações. Ora, o fato de que eles fizeram isso significa que, natural e inevitavelmente, nós também devemos examinar nossas emoções. Eles querem certificar-se que não somos meros intelectualistas interessados em discutir teologia. Querem ter certeza que não somos simples moralistas apenas interessados num código moral. Mas a tendência sempre é que, ao seguí-los, passamos a dar importância demasiada às emoções. Henry Martyn foi um exemplo disso. No entanto, talvez o exemplo clássico seja um homem que viveu na américa no século dezessete, chamado Thomas Sheppard. Ele é um perfeito exemplo de um homem que se fez miserável. Ele foi do coração da Inglaterra para a América e foi um dos maiores santos que já andou por este mundo, autor de grandes livros tais como "A parábola das dez virgens". Aquele pobre homem vivia deprimido devido à sua preocupação com seus sentimentos e o perigo de falsas emoções. Ele se fez miserável e infeliz.

O próximo ponto que quero mencionar é este: precisamos reconhecer que há uma grande diferença entre regozijar-se e sen­tir-se feliz. As Escrituras nos dizem que devemos nos regozijar sempre. Veja a lírica epístola de Paulo aos Filipenses, onde ele diz: "Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos". E ele repete isso. Regozijar-se é uma ordem, sim, mas há uma grande diferença entre regozijar-se e ser feliz. Não podemos nos forçar a sermos felizes, mas podemos nos regozijar, no sentido de que sempre vamos nos regozijar no Senhor. Felicidade é algo dentro de nós mesmos, regozijo é "no Senhor". Quão importante, então, é estabelecer a distinção entre regozijar-se no Senhor e sen­tir-se feliz. Vejam o quarto capítulo da Segunda Epístola aos Co­ríntios. Ali verão que o grande apóstolo coloca isso tudo de forma muito simples e clara naquela série de extraordinários contrastes que ele faz: "Em tudo somos atribulados (acho que ele não estava se sentindo muito feliz naquele momento), mas não angustiados; perplexos (não estava se sentindo nem um pouco alegre), mas não desanimados; perseguidos mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos" e assim por diante. Em outras palavras, o apóstolo não está parecendo uma pessoa muito feliz, no sentido carnal, mas ele ainda assim estava se regozijando. Essa é a diferença entre as duas condições.

Isso me conduz ao aspecto prático: o importante nesta ques­tão é saber como podemos nos despertar. Essa é toda a essência desta questão. Como já os tenho lembrado, o perigo é que, quando essa atitude nos assalta, nós permitimos que ela nos domine, somos derrotados e ficamos deprimidos. Dizemos que gostaríamos de ser libertos, todavia nada fazemos a respeito. O apóstolo diz a Timó­teo: "Desperta o dom" — precisamos acabar com indolência e melancolia.

Precisa falar conosco mesmos. Eu já disse isso muitas vezes antes, e vou continuar dizendo-o pois há um sentido em que as Escrituras nos ensinam a falar conosco mesmos. Lembrei vocês que precisam falar consigo mesmos, com seu horrível "eu". Falem com ele, e então "desperte(m) do dom". Lembrem a si mesmos de certas coisas. Lembrem a si mesmos de quem são e o que são. Cada um precisa falar consigo mesmo e dizer: "Não serei domi­nado por você, esta atitude não vai me controlar. Vou sair disso, vou vencer". Então levantem-se e andem, e façam algo. "Desper­tem o dom". Esta é a exortação constante das Escrituras. Se permi­tirem que essa atitude os controle, continuarão se sentindo miserá­veis, mas não devem permitir isso. Livrem-se disso. Não aceitem essa atitude. Digam de novo: "Fora, inércia e indolência".

Mas como podem fazer isso? Desta forma: nosso dever, o seu e o meu, não é despertar sentimentos; é crer. A Bíblia não nos diz, em lugar algum, que somos salvos por nossos emoções; ela diz que somos salvos pela fé. "Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo". Nem uma vez as emoções são colocadas numa posi­ção central. Ora, isto é algo que podemos fazer. Eu não posso forçar a mim mesmo a ser feliz, mas posso lembrar-me da minha fé. Posso exortar a mim mesmo a crer, posso falar com minha alma como o salmista fez no Salmo 42: "Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim? espera. . ." Crê, confia. Esse é o caminho. E então nossas emoções cuidarão de si mesmas. Não se preocupem com elas. Falem consigo mes­mos, e ainda que o diabo sugira que, se não sentem nada, então não são cristãos, digam; "Não, eu não sinto nada, mas quer sinta ou não, eu creio nas Escrituras. Creio que a Palavra de Deus é verdadeira, e vou firmar minha alma nela, e crer nela, aconteça o que acontecer". Ponham a fé em primeiro lugar, firmem-se nela. Sim, T. C. Philpot estava certo nesse ponto, o filho da luz às vezes se acha andando nas trevas, mas ele continua andando. Ele não se senta num canto, sentindo pena de si mesmo — esse é o ponto — o filho da luz andando nas trevas. Ele não consegue ver a face do Senhor neste ponto do caminho, mas sabe que Ele está ali; e por isso continua.

Melhor ainda, deixem-me colocá-lo assim. Se vocês querem ser realmente felizes e abençoados, se querem experimentar verda­deira alegria como cristãos, aqui está a receita:' "Bem-aventurados (felizes) os que têm fome e sede de justiça" — não de felicidade. Não saiam em busca de emoções; busquem a justiça. Voltem-se para si mesmos, voltem-se para suas emoções, e digam: "Eu não tenho tempo para me preocupar com emoções, estou interessado em outra coisa. Quero ser feliz, mas mais do que isso, quero ser justo, quero ser santo. Quero ser como o meu Senhor, quero viver neste mundo como Ele viveu, quero andar aqui como Ele andou".

Vocês estão neste mundo, diz João era sua primeira epístola, assim como Ele esteve. Tenham como alvo a justiça," e a santidade, e certamente ao fazer isso serão abençoados, e terão a felicidade que desejam. Busquem a felicidade, e nunca a encontrarão; bus­quem a justiça, e descobrirão que são felizes — a felicidade estará lá, quase sem vocês saberem, sem mesmo buscarem por ela.

Finalmente, deixem-me colocá-lo desta maneira: "Vocês que­rem conhecer alegria suprema, querem experimentar uma felici­dade que desafia descrição? Há somente uma coisa a fazer, buscar o Senhor Jesus Cristo, realmente, buscar a Ele somente, voltar-se apenas para Ele. Se se acharem com sentimentos de depressão, não fiquem num canto sentindo pena de si mesmos; não tentem forçar alguma emoção, mas — e esta é a simples essência da ques­tão — vão diretamente a Ele, busquem Sua face, assim como a criança que se sente infeliz e miserável porque alguém quebrou seu brinquedo corre para seu pai ou sua mãe. Então, se se acharem nas garras deste problema, há somente uma coisa a fazer, e é irem a Ele. Se buscarem o Senhor Jesus Cristo e O encontrarem, não precisarão mais se preocupar com sua felicidade e alegria. Ele é nossa alegria e felicidade, assim como Ele é nossa paz. Ele é vida, Ele é tudo. Então fujam dos estímulos e das tentações de Satanás para dar essa importância central às emoções. Ponham no centro o Único que tem o direito de estar ali, o Senhor da glória, que tanto amou a vocês que foi à cruz e levou sobre Si o castigo e a vergonha dos seus pecados, e morreu por vocês. Busquem a Ele, busquem a Sua face, e todas as demais coisas lhes serão acrescentadas.

 

9. TRABALHADORES NA VINHA

"Porque o reino dos céus é semelhante a um homem, pai de famí­lia, que saiu de madrugada a assalariar trabalhadores para a sua vinha. E, ajustando com os trabalhadores a um dinheiro por dia, mandou-os para a sua vinha. E, saindo perto da hora terceira, viu outros que estavam ociosos na praça. E disse-lhes: Ide vós também para a vinha, e dar-vos-ei o que for justo. E eles foram. Saindo outra vez perto da hora sexta e nona, fez o mesmo. E, saindo perto da hora undécima, encontrou outros que estavam ociosos, e perguntou-lhes: Por que estais ociosos todo o dia? Dis­seram-lhe eles: Porque ninguém nos assalariou. Diz-lhes ele: Ide vós também para a vinha, e recebereis o que for justo. E, aproxi­mando-se a noite, diz o senhor da vinha ao seu mordomo: Chama os trabalhadores, e paga-lhes o jornal, começando pelos derra­deiros até os primeiros. E, chegando os que tinham ido perto da hora undécima, receberam um dinheiro cada um; vindo, porém, os primeiros, cuidaram que haviam de receber mais; mas do mes­mo modo receberam um dinheiro cada um. E, recebendo-o, mur­muravam contra o pai de família, dizendo: Estes derradeiros traba­lharam só uma hora, e tu os igualaste conosco, que suportamos a fadiga e o calor do dia. Mas ele, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço agravo; não ajustaste tu comigo um dinheiro? Toma o que ê teu , e retira-te; eu quero dar a este derradeiro tanto como a ti. Ou não me é lícito fazer o que quiser do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou bom? Assim os derradeiros serão primeiros, e os primeiros derradeiros; porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos".

.   Mateus 20:1-16

Quero chamar sua atenção para o ensino especial contido nesta parábola, como parte de nossa consideração do assunto da depressão espiritual, ou, se preferirem, o assunto da infelicidade na vida do cristão — o cristão miserável. Acho que chegamos a um ponto crítico. Até agora, estivemos considerando dificuldades que eu colocaria na categoria de dificuldades preliminares, aquelas pedras de tropeço iniciais — dificuldades que surgem como resul­tado de falta de clareza com respeito ao ingresso na fé e na vida cristã.

Agora precisamos dar um passo à frente. Não tratamos, de forma alguma, de todas as dificuldades preliminares, e nossa expo­sição do assunto não foi exaustiva nesse sentido; mas tentamos salientar as causas mais importantes de tropeços e dificuldades e de infelicidade. O tipo, ou grupo de dificuldades que vamos con­siderar agora são as que surgem depois desse estágio preliminar. Estas dificuldades, é claro, podem surgir em qualquer ponto, mas constituem um tipo de grupo à parte.

Ao considerá-las, precisamos nos lembrar mais uma vez que as Escrituras deixam muito claro que não há parte desta vida cristã que não tenha os seus perigos. Nada é tão falso em relação aos ensinamentos do Novo Testamento, como dar a impressão que no momento que alguém crê e é convertido, todas as suas dificuldades vão acabar, e nunca mais terá qualquer problema. Infelizmente isso não é verdade, porque temos um inimigo, o adversário das nossas almas. Mas não só precisamos contender com o inimigo — temos também a nossa velha natureza dentro de nós, e esses dois juntos garantem que teremos problemas e dificulda­des; e é nosso dever entender os ensinamentos das Escrituras a respeito deles, para que não sejamos apanhados pelos seus enganos e sutilezas. O inimigo nos segue como seguiu o Senhor, o tempo todo. Quando ele tentou e provou o Senhor no deserto por qua­renta dias, lemos que no fim ele O deixou apenas "por algum tempo". Ele não O deixou permanentemente; voltou vez após vez, e O seguiu o caminho todo. Observemos suas atividades no Getse­mâni, quando o fim se aproximava; na verdade, ele ainda estava atacando quando nosso bendito Senhor morria na cruz. Ora, dizer isso não é ser deprimente — é ser realista, e ser realista sempre é encorajador. Não há nada pior ou mais repreensível do que entorpecer as pessoas com algum tipo de soporífero, e então per­mitir que acordem subitamente para enfrentar dificuldades para as quais não estão preparadas. É nosso dever estar preparados para estas coisas à luz das Escrituras: "Estar prevenido é estar armado de antemão", e temos diante de nós, sempre, aquela pode­rosa passagem que diz: "Revestí-vos de toda a armadura de Deus". Estamos simplesmente tentando, nestes estudos, colocar as dife­rentes peças desta poderosa armadura que Deus proveu para nós.

O ponto que quero enfatizar agora, portanto, é que, se por um lado é vital e importante começar de forma correta, por outro lado isso não é suficiente. Devemos continuar da mesma forma, pois se não fizermos isso, logo nos acharemos numa situação infeliz. Em outras palavras, estou apresentando a proposição de que, embo­ra não tenhamos qualquer dúvida sobre as coisas que foram con­sideradas até aqui — mesmo que o evangelho nos tenha sido apresentado e tenhamos nos convertido e ingressado na vida cristã; ainda que tenhamos acatado as advertências sobre as dificuldades iniciais — se não continuarmos, se não mantivermos nosso curso na mesma direção, logo cairemos em dificuldades. Há uma grande ilustração disso no Evangelho de João, capítulo 8, começando no versículo 30. Nosso Senhor estava pregando uma tarde sobre o relacionamento entre Ele e o Pai, e lemos que: "Dizendo ele estas coisas, muitos creram nele". Então o Senhor olhou para eles e disse: "Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade e a verdade Vos libertará". Eles pareciam estar começando bem, mas tinham que continuar se quisessem ser verdadeiramente livres. É exatamente o mesmo com algumas das pessoas retratadas na parábola do semeador. Havia aqueles que receberam a verdade com grande alegria, mas isso não durou. Em outras palavras, a importância de continuar é um princípio vital, e é isso que quero considerar agora à luz desta parábola.

Ao examinar esta parábola, é muito importante que o faça­mos de maneira correta, e a compreendamos verdadeiramente. Pode-se dizer, com reverência, que esta é uma parábola muito perigosa, se não for interpretada corretamente. Há muitos que se agarram a algo nela, justamente à "undécima hora". Pensam: "Não preciso me preocupar com minha salvação agora; vou fazer isso na hora undécima, como as pessoas que foram trabalhar na vinha na undécima hora e receberam o mesmo que aquelas que começaram cedo de manhã". Não há erro mais fatal do que este. Como disse o bispo Ryle a respeito do ladrão na cruz: "Poucos são salvos no seu leito de morte. Um ladrão na cruz foi salvo, para que ninguém se desespere; mas somente um, para que nin­guém presuma". Outra coisa perigosa é tornar a parábola numa alegoria, tomando cada detalhe no ensino, e ligando a ele uma verdade espiritual. Isso já foi feito muitas vezes, porém foi devido ao fato de esquecermos que é uma parábola, e o ponto a lembrar sobre uma parábola é que ela em geral tem o propósito de ilustrar uma verdade somente. É por isso que, por exemplo, no capítulo 13 do Evangelho segundo Mateus, vemos que o Senhor proferiu uma série de parábolas sobre o reino dos céus. Não podemos ver tudo numa só. Uma mostra um aspecto, e outra revela outro; todas se complementam e cada uma tem o propósito de comunicar um aspecto da verdade somente. Precisamos ser muito cuidadosos, portanto, para não tornar os detalhes em algum tipo de represen­tação alegórica da verdade.

Esta parábola, portanto, como todas as outras parábolas, tem o propósito de ensinar uma verdade. Qual é ela? A resposta, por certo, pode ser encontrada na palavra "porque" — "porque o reino dos céus. . ." É uma pena que, quando as Escrituras foram divididas em capítulos, fizeram uma divisão neste ponto. Obvia­mente o tema é uma continuação do que temos no fim do capí­tulo 19, e o que encontramos ali é o incidente do jovem rico, como é chamado, e os comentários do Senhor a respeito daquele jovem que se retirou triste. Lembram-se do que Pedro disse a Ele? "Eis que nós deixamos tudo, e te seguimos; que receberemos?" Foi por causa disso que o Senhor proferiu esta parábola. Pedro fez uma pergunta. Na verdade, ele estava dizendo: "Senhor, nós deixamos tudo, nós Te seguimos, nós abrimos mão de todas as coisas; o, que vais nos dar?" Nosso Senhor respondeu sua pergunta dizendo:'"Em verdade vos digo que vós, que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis sobre doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel. E todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou terras, por amor do meu nome, receberá cem vezes tanto, e herdará a vida eterna. Porém muitos primeiros serão os derradeiros, e muitos derradeiros serão os primeiros. "Porque" o reino dos céus é seme­lhante. . ." etc. Em outras palavras, a mensagem desta parábola é endereçada a Pedro por causa da reivindicação que ele fez. O Senhor ouviu a pergunta de Pedro, e a respondeu, mas Ele obviamente percebeu uma nota falsa e errada naquela pergunta; então, foi para repreendê-lo, reprová-lo e adverti-lo seriamente que o Senhor proferiu esta parábola. Para mim isso está provado con­clusivamente pela forma como Ele repete a declaração sobre "muitos primeiros serão os derradeiros, e muitos derradeiros serão os primeiros". Vemos isso no começo, e o vemos novamente no fim.

Aqui, então, está o princípio em que devemos nos concentrar. Qual é? Qual é a doutrina? É que na vida cristã tudo é pela graça, do começo ao fim. Essa é a mensagem, essa é a doutrina, esse é o princípio. Já examinamos resumidamente o ensino desta parábola num capítulo anterior, mas estávamos preocupados então com um ponto específico, isto é, que por causa deste grande prin­cípio da graça, aqueles que entram no fim são iguais àqueles que entraram no começo. Estávamos tratando do desânimo que muitas vezes assalta pessoas convertidas numa idade avançada. Vimos que nunca é tarde demais, que a salvação não é apenas para os jovens, e sim para todos. Às vezes um homem que é convertido tarde na vida é tentado pelo diabo nesta área porque aceitou a salvação tão tarde, e por causa dos anos que desperdiçou. Para uma pessoa assim, é um grande consolo que o Senhor chamou aqueles homens e os mandou trabalhar na hora undécima. Examinamos a parábola desse ponto de vista, mas neste capítulo nossa ênfase será sobre aqueles que entraram no começo. Não há qualquer dúvida que o objetivo da parábola é dirigir a estas pessoas uma advertência solene e séria.

A situação destas pessoas é que elas começaram de forma correta, mas tiveram problemas depois. Quão frequente isso acon­tece! É por isso que o Novo Testamento trata dessa questão com tanta frequência, em declarações como: "Corríeis bem; quem vos impediu, para que não obedeçais à verdade?" Num certo sentido, todas as epístolas do Novo Testamento foram escritas justamente para ajudar esse tipo de pessoa. Aqueles cristãos primitivos tinham crido e se ligaram à Igreja, mas caíram em depressão, e as epísto­las foram escritas para ajudá-los. É uma coisa que nos ameaça constantemente, e é um perigo que tende a nos perseguir por toda a nossa vida cristã. Não é suficiente começar corretamente — pre­cisamos continuar da mesma forma. Vou tratar aqui de várias ilustrações disso. O perigo para muitos tem sido o de voltar à escravidão, e é um perigo muito real na presente época por causa das seitas que têm surgido em toda parte. Pessoas que conheceram a gloriosa liberdade dos filhos de Deus às vezes caem novamente em escravidão e se tornam infelizes e miseráveis. Vamos então examinar isso segundo é apresentado nesta parábola.

Antes de tudo, vamos analisar a causa do problema. Por que esses homens, que foram enviados à vinha cedo de manhã, agiram de forma tão deplorável no final? Ali estão eles, descontentes, murmurando e resmungando. Qual era a causa do problema? Eu diria que o primeiro princípio aqui é que sua atitude em relação a si mesmos e ao trabalho estava errada. Eu concordo com aqueles que dizem haver um significado especial na palavra "ajustando" no versículo 2: "E ajustando com os trabalhadores..." Ora, é verdade que a parábola só fala desse ajuste no caso dos primeiros trabalhadores. Lemos adiante: "E saindo perto da hora terceira, viu outros que estavam ociosos na praça, e disse-lhes: ide vós também para a vinha, e dar-vos-ei o que for justo". E disse o mesmo para os demais trabalhadores. Não há referência a um ajuste. Ele simplesmente diz: "Ide para a vinha e dar-vos-ei o que for justo". E eles foram, bem satisfeitos. Mas com as pri­meiras pessoas, que no fim murmuraram a respeito do pagamento, parece haver uma sugestão que eles exigiram um acordo. Pode-se sentir, já no princípio, que havia algo errado na atitude deles. Tinham essa tendência de negociar, fazer certas exigências e esti­pular certas coisas. Quer estejamos certos ou errados em pensar isso a respeito deles, certamente estamos correios em dizer que eles estavam muito conscientes do seu trabalho, e do que estavam fazendo; enquanto trabalhavam de certa forma examinavam-se a si mesmos. E isso é uma coisa terrível! Mas não seríamos todos culpados disso? Deus sabe que o maior problema que um pregador do evangelho enfrenta é que, enquanto ele está pregando, está constantemente correndo o risco de olhar para si mesmo, e se observar, sempre consciente de si mesmo. Isso entra em todo o nosso serviço, em tudo o que fazemos. Acontece com o homem natural, é claro. Ele está representando o tempo todo e se obser­vando, e isso tende a nos seguir na vida cristã. Esses homens estavam claramente muito conscientes de tudo que fizeram. É óbvio, a julgar por suas palavras, que eles tinham observado a si mesmos o tempo todo.

Vamos passar agora para o ponto seguinte: eles estavam avaliando o seu trabalho. Também estavam avaliando o trabalho dos outros, e registrando cuidadosamente tudo que fizeram e' quanto tempo tinham trabalhado, bem como quantas horas eles mesmos haviam trabalhado e quanto haviam feito — "a fadiga e calor do dia". Tinham observado tudo em detalhe e registrado tudo cuidadosamente. E essa é a primeira declaração do Senhor sobre estas pessoas. Vamos pausar aqui por um momento, e per­mitir que isso penetre em nós profundamente. Nosso Senhor está censurando essa atitude. Ela é fatal no reino de Deus. Ele a detec­tou na declaração de Pedro: "Nós tudo deixamos e te seguimos; que receberemos?" A sugestão de barganha e exigência está implí­cita aqui. A atitude fundamental está tão errada, e tão antitética à esfera do Espírito e do reino como veremos; mas aí está, e essa atitude errada certamente acabará causando problemas, como acon­teceu no caso desses homens. O que é tão patético e trágico a respeito disso, é que traz problemas ao homem no exato ponto em que o Senhor é mais bondoso em seus tratamentos. O que torna esta parábola tão terrível é que esses homens demonstraram o que realmente eram, e o terrível espírito que os dominava foi revelado justamente quando o senhor da vinha, em sua benevolência, deu aos últimos exatamente o mesmo que aos primeiros. É aí que esse espírito se revela e causa problemas. Olhem para esses homens. Por causa da sua atitude inicial errada, por terem se esquecido dos princípios da graça, esperavam receber mais do que os outros, pois achavam que mereciam mais. Naturalmente eles eram perfei­tamente lógicos eram muito consistentes consigo mesmos. Partindo dos seus princípios e da sua atitude, seria a conclusão lógica. Por isso digo que começar dessa forma inevitavelmente leva a essa posição. Eles sentiam que tinham o direito a mais e deviam receber mais; esperavam receber mais, e porque não o conseguiram, fica­ram ressentidos.

Então lemos que eles começaram a murmurar. Sua alegria e felicidade se foram completamente, e aqui os encontramos murmu­rando porque não receberam algo extra. Isso não é uma coisa terrível? Mas é um fato que cristãos podem ser culpados dessa atitude que o Senhor retrata aqui — essa tendência de murmurar como fizeram os filhos de Israel no passado, e como esses homens fizeram aqui, sentindo pena de si mesmos, sentindo que não rece­beram tudo que tinham direito, sentindo que de alguma forma receberam tratamento injusto. O Novo Testamento coloca muita ênfase nessa questão. O apóstolo Paulo dirige uma palavra sobre isso aos filipenses. Ele os lembra de que devem "resplandecer como astros no mundo": "Fazei todas as coisas sem murmurações nem contendas; para que sejais irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração corrompida e per­versa, entre a qual resplandeceis como astros no mundo; retendo a palavra da vida" (Filipenses 2:14-16). Que coisa trágica que cristãos possam ser miseráveis e murmuradores, em vez de se regozijar em Cristo Jesus. É um resultado do fato de que se esque­ceram que tudo é pela graça. Eles se esqueceram deste grande princípio que permeia a vida cristã toda, do começo ao fim.

Mas isso não é tudo. Isso nos leva a outra coisa — desprezo por outros, e ao mesmo tempo a um certo grau de inveja. Os homens na parábola dizem: "Estes derradeiros trabalharam só uma hora, e tu os igualaste conosco, que suportamos a fadiga e o calor do dia". É o princípio do irmão mais velho na parábola do filho pródigo, e é ilustrado em muitas outras passagens do Novo Testamento. Essa tendência entra e ataca cristãos que têm sido fiéis em seu testemunho e que têm realizado um excelente trabalho. Vem em formas muito sutis, e os torna miseráveis porque eles sentem que outros receberam uma recompensa maior do que eles. Todos aqueles que leram o relato de Hugh Redwood sobre os anos que passou desviado, vão perceber que esta era exatamente a causa do seu problema. Uma mudança de oficiais no Exército de Salvação levou-o a sentir que já não era o favorito. Outra pessoa foi promovida e colocada em lugar de proeminência, e ele começou a sentir pena de si mesmo, e voltou ao seu pecado. Leiam o seu livro "Deus nas Sombras" e encontrarão ali a história em detalhes. É isso que está ilustrado aqui. Estes homens sentiam um desprezo por outros, tinham inveja daqueles que haviam rece­bido tanto quando tinham feito tão pouco.. Toda a sua atitude era de egoísmo e egocentrismo.

Todavia acima de tudo, e isto é o mais sério e mais terrível de tudo — eles sentiam em seus corações que o senhor da vinha era injusto. Nessa condição eles se convenceram que esse homem não era justo na maneira como os havia tratado. Estavam absolu­tamente errados, não havia qualquer base para tal atitude, mas eles sentiam isso. Assim, o cristão é tentado pelo diabo para sentir que Deus não está sendo justo. O diabo se chega a ele e diz: "Veja só quanto você fez, e o que está recebendo em troca? Olhe só para esse outro, ele não fez nada, e olhe só para o que ele está ganhando". Isso é o que o diabo diz, e essas pessoas lhe dão ouvidos. "Nós suportamos a fadiga e o calor do dia, e estamos recebendo o mesmo que esses outros que só trabalharam uma hora!" Esse é o espírito, e o que torna isso tão sério é que, nessa condição, se o cristão não for cuidadoso, ele logo estará atribuindo injustiça a Deus. Ele vai começar a sentir que Deus não é justo com ele, que Deus não está lhe dando aquilo a que ele tem direito, que ele não está recebendo o que devia receber.

Que coisa miserável, feia e indigna é a natureza humana! Todos somos culpados disso, cada um de nós, de alguma forma ou outra. O diabo vem a nós, e nós lhe damos ouvidos, e come­çamos a duvidar se Deus realmente é justo na maneira que nos trata. O nosso "eu" precisa ser exposto pelo que realmente é. O pecado, em toda a sua feiura e podridão, precisa ser desmasca­rado. Não é de surpreender que nosso Senhor tratou desse espírito errado da forma como o fez nesta parábola. É o maior inimigo das nossas almas, e nos leva à miséria e ao desespero. É este o seu resultado. É completamente errado, e nada pode ser dito em sua defesa.

Isso então me leva à cura. Qual é o tratamento? É entender o princípio controlador do reino de Deus. Esse princípio parece tão óbvio, mas somos tão propensos a esquecer os seus detalhes. O Senhor o apresenta aqui de uma vez por todas. Estou simples­mente colocando o que Ele disse em outras palavras. O princípio é que no reino de Deus tudo é essencialmente diferente de tudo em qualquer outro reino. Na verdade. Ele diz que o reino de Deus não é como aquilo que vocês sempre conheceram, é algo com­pletamente novo e diferente. A primeira coisa que precisamos entender é que "se alguém está em Cristo, nova criatura é (é uma nova criação); as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo". Se tão somente compreendêssemos como devíamos, que estamos numa esfera em que tudo é diferente! Todas as bases são diferentes, não têm nada a ver com os princípios da nossa velha vida. Precisamos examinar isso em detalhe, mas primeiro quero salientar novamente esse novo princípio. Precisamos dizer a nós mesmos, cada dia de nossas vidas: "Agora eu sou um cristão, e porque eu sou um cristão estou no reino de Deus, e todo meu pensamento tem que ser diferente. Tudo aqui é diferente. Não devo trazer comigo essas velhas idéias, essas velhas atitudes, con­ceitos e idéias". Tendemos a confinar a salvação a uma coisa só, ou seja, perdão, mas precisamos aplicar o princípio em toda a nossa vida cristã.

Mantendo isso em mente, então, aqui estão alguns dos deta­lhes. A primeira coisa é esta. Não pensem em termos de direitos e barganhas no reino de Deus. Isso é absolutamente fatal. Não há nada mais errado do que o espírito que argumenta que, por­que eu faço isto, ou porque eu fiz aquilo, tenho o direito de esperar algo em troca. Encontramos isso com muita frequência. Conheço bons cristãos evangélicos que parecem pensar dessa forma. "Agora", dizem, "se oramos por certas coisas, com certeza vamos recebê-las; por exemplo, se oramos toda a noite por reavivamento, teremos um reavivamento". Descrevo isso às vezes como um tipo de cristianismo "ficha-na-máquina". Põe-se a ficha de um lado, e do outro sai o que se quer. Eles demonstram a mesma atitude. Porque homens no passado oraram toda a noite para que um avivamento viesse, e um avivamento veio, então vamos ter uma reunião de oração a noite toda, e o avivamento vai acontecer. Mas isso com certeza nega todo o princípio que o Senhor está ensinando. Não importa o que for, quer seja oração ou qualquer outra coisa, de forma alguma devo argumentar que, porque eu fiz uma certa coisa, tenho o direito de receber algo em troca — nunca. E naturalmente podemos ver que o princípio é verdadeiro na prática. Pensem em quantas reuniões de oração já houve, com esse objetivo. E no entanto, o reavivamento não veio, e eu vou aventurar e dizer que dou graças a Deus que não veio. Que acon­teceria se pudéssemos controlar essas coisas de acordo com nossa vontade? Contudo, não podemos. Vamos nos livrar desse espírito de negociação, que se eu fizer isso, então aquilo vai acontecer. Não podemos ter reavivamento quando quisermos e como resultado de fazer certas coisas. O Espírito Santo é Senhor, e Ele é Senhor soberano. Ele envia essas coisas em Seu próprio tempo e da Sua própria maneira. Em outras palavras, precisamos compreen­der que não temos direito a coisa nenhuma. "Mas", alguém dirá, "Paulo não ensina sobre julgamento e recompensas na Segunda Epístola aos Coríntios, no capítulo cinco?" Certamente, e o faz também no terceiro capítulo da Primeira Epístola aos Coríntios, e o próprio Senhor, no capítulo doze de Lucas, fala sobre aqueles que recebem muitas chicotadas e os que recebem poucas, e assim por diante. O que isso nos diz, então? A resposta é que até mesmo as recompensas são pela graça. Ele não precisa dá-las, e se acham que podem determinar ou predizer com elas devem vir, estão erra­dos. Tudo na vida cristã é pela. graça, do começo ao fim. Pensar em termos de barganha, e resmungar por causa dos resultados, revela desconfiança dEle, e precisamos vigiar nosso próprio espí­rito, para que não abriguemos o pensamento de que Ele não está nos tratando de maneira justa.

Se  começarem  assim,  vão  acabar  roubando  a  si  mesmos. Gosto da maneira como o Senhor ensina isso.  Se fizerem um acordo com Deus, bem, então é quase certo que receberão apenas o que foi ajustado, e nada mais. Aqueles homens, bem no prin­cípio, tinham esse ajuste de receber um dinheiro por dia. "Muito bem", disse o senhor da vinha, "receberão um dinheiro." Mas quando os outros vieram, ele lhes disse: "Vão trabalhar, e lhes darei o que é justo". E eles receberam muito mais do que espe­ravam.  Essas últimas pessoas receberam um dinheiro;  mas não esperavam isso, e receberam muito mais do que imaginavam. Mas os primeiros ganharam apenas um dinheiro. Oh, amigos cristãos, não façam barganhas com Deus! Se o fizerem, receberão apenas o que estava no acordo; mas se deixarem tudo nas mãos dEle e de Sua graça, provavelmente receberão mais  do  que poderiam imaginar. O Senhor disse a respeito dos fariseus: "Já receberam sua recompensa". Eles faziam aquelas coisas para serem vistos pelos homens; eles eram vistos pelos homens, isso era o que que­riam, e isso era o que iriam receber, e nada mais.

Vamos então passar para o princípio seguinte. Não mante­nham um balanço ou registro do seu trabalho. Desistam dessa contabilidade. Na vida cristã nada devemos desejar além da Sua glória, nada além de agradar a Ele. Então, não fiquem de olho no relógio, mantenham seus olhos nEle e na Sua obra. Não fiquem registrando seu próprio trabalho, mantenham seus olhos nEle e em Sua glória, em Seu amor e em Sua honra e na expansão do Seu reino. Mantenham sua atenção nisso e em nada mais. Não se preo­cupem com quantas horas dedicou ao trabalho, nem com o que vocês fizeram. Deixem a contabilidade aos cuidados dEle e da Sua graça; deixem que Ele mantenha o registro. Ouçam o que Ele diz a esse respeito: "Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita". É assim que devem trabalhar no Seu reino, devem traba­lhar de tal forma que sua mão esquerda nem saiba o que a direita está fazendo. Por esta razão: "Teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente". Não há necessidade de perder tempo mantendo um balanço: Ele está fazendo isso. E a contabilidade dEle é maravilhosa! Digo isso com reverência, não conheço nada mais romântico do que o método de contabilidade de Deus. Pre­parem-se para surpresas no Seu reino. Vocês jamais saberão o que vai acontecer. Os últimos serão os primeiros. Que inversão total da nossa perspectiva materialista — os últimos, primeiro; os primeiros, por último, tudo de cabeça para baixo. O mundo todo foi virado de cabeça para baixo pela graça. Não é do homem, é de Deus, é o reino de Deus. Que coisa esplêndida!

Quero fazer uma confissão pessoal. Esse tipo de coisa acon­teceu muitas vezes comigo em meu ministério. Às vezes Deus foi gracioso num domingo, e tive consciência de uma extraordinária liberdade, e fui tolo o suficiente para dar ouvidos ao diabo quando ele disse: "Espere só até o próximo domingo, vai ser maravilhoso, a congregação vai ser ainda maior". E então subi ao púlpito no domingo seguinte, e vi uma congregação menor. Mas então, numa outra ocasião, parado naquele mesmo púlpito, batalhei como se estivesse ali sozinho, pregando de forma fraca e ineficaz, e o diabo veio e disse: "Não vai haver ninguém aqui no próximo domingo". Mas, graças a Deus, descobri no domingo seguinte uma congrega­ção maior. Este é o método da contabilidade de Deus. Nunca sabemos. Subo ao púlpito em fraqueza, e termino com poder. Subo com auto-confiança e acabo me sentindo um tolo. É a contabili­dade de Deus. Ele nos conhece muito melhor do que nós conhe­cemos a nós mesmos. E está sempre nos surpreendendo. Nunca se sabe o que Ele vai fazer. Sua contabilidade é a coisa mais romântica que conheço neste mundo.

Nosso Senhor falou disso novamente na terceira parábola do capítulo 25 do Evangelho de Mateus. Lembrem-se da Sua descri­ção das pessoas que vão chegar ao fim do mundo esperando uma recompensa, mas a quem Ele não vai dar nada, e então outros a quem Ele dirá: "Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado". E eles dirão: "Nós nada fizemos; quando Te vimos nu, e faminto, ou sedento, e Te atendemos?" E ele dirá: "Quando os fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes". Que surpresa isso vai ser. Esta vida é cheia de romance. Nosso livro-razão está ultrapassado; ele não tem valor. Estamos no reino de Deus, é a contabilidade de Deus. É tudo pela graça.

Isso então nos traz ao último princípio, qual seja, que não só devemos reconhecer que é tudo pela graça, mas nos regozijar por ser assim. Essa era a tragédia desses homens. Eles viram que aque­les que trabalharam apenas uma hora receberam um dinheiro, e em vez de se regozijarem com aquilo, começaram a murmurar e a reclamar, sentindo que não era justo, que não tinham sido tratados com equidade. O segredo de uma vida cristã feliz é compreender que é tudo pela graça, e regozijar-se nesse fato. "Assim também vós", diz o Senhor numa outra passagem, "quando fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: somos servos inúteis, porque fize­mos somente o que devíamos fazer". Esse é o Seu ponto de vista, esse é o Seu ensino, esse é o segredo de tudo. Não era esse o Seu modo? Era, de acordo com o apóstolo Paulo, que disse: "Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros. De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus". Vocês entendem o que isso significa. Ele não olhou para Si mesmo, Ele não pensou em Si mesmo e nos Seus interesses;  Ele deixou de lado Sua reputação, deixou de lado as insígnias da Sua eterna glória. Ele não considerou Sua igualdade com Deus algo a que devesse se agarrar, dizendo: "Aconteça o que acontecer, não vou largar". Ele não fez isso. Ele o deixou de lado, Ele Se humilhou, esqueceu-Se de Si mesmo, e enfrentou e suportou e fez tudo o que fez olhando somente para a glória de Deus. Nada mais impor­tava para Ele, apenas que o Pai fosse glorificado, e que homens e mulheres viessem ao Pai. Esse é o segredo. Sem olhar para o relógio, sem avaliar a quantidade de trabalho, sem manter um balanço, mas esquecendo tudo exceto a glória de Deus, o privi­légio de ser chamado para trabalhar para Ele, o privilégio de ser um cristão, lembrando somente da graça que olhou para nós e nos removeu das trevas para a luz.

É graça no princípio, é graça no fim. Portanto, quando nós estivermos em nosso leito de morte, o que deve nos consolar e ajudar e fortalecer ali é a mesma coisa que nos ajudou no começo. Não o que fomos, não o que fizemos, mas a graça de Deus em Jesus Cristo nosso Senhor. A vida cristã começa pela graça, deve continuar pela graça, e terminar na graça. Graça, maravilhosa graça. "Pela graça de Deus sou o que sou". "Todavia não eu, mas a graça de Deus, que está comigo".

 

10. ONDE ESTÁ A SUA FÉ?

"E aconteceu que, num daqueles dias, entrou num barco com seus discípulos, e disse-lhes: passemos para a outra banda do lago. E partiram. E, navegando eles, adormeceu; e sobreveio uma tem­pestade de vento no lago e enchia-se dágua, estando em perigo. E, chegando-se a ele, o despertaram, dizendo: Mestre, Mestre, perecemos. E ele, levantando-se, repreendeu o vento e a fúria da água; e cessaram, e fez-se bonança. E disse-lhes: Onde está a vossa fé? E eles, temendo, maravilharam-se, dizendo uns aos outros: Quem é este, que até aos ventos e à água manda, e lhe obedecem?"

Lucas 8:22-25

Quero chamar sua atenção particularmente para esta pergunta que foi dirigida por nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo aos Seus discípulos. Ele lhes disse: "Onde está a vossa fé?" Na verdade, quero chamar sua atenção para todo este incidente como parte da nossa consideração do assunto da depressão espiritual. Já consi­deramos várias causas dessa condição, e este incidente particular na vida e ministério do nosso Senhor nos traz face a face com mais uma causa.

A causa que é tratada aqui, é o problema e a questão da natureza da fé. Em outras palavras, há muitos cristãos que têm problemas, e são infelizes de vez em quando, porque não enten­deram a natureza da fé. "Bem", talvez digam, "se não entenderam a natureza da fé, como podem ser cristãos?" A resposta é que o que torna alguém um cristão é que a ele é dado o dom da fé. O dom da fé nos é dado por Deus através do Espírito Santo, e nós cremos no Senhor Jesus Cristo, e isso nos salva; mas isso não significa que entendemos completamente a natureza da fé. Então acontece que, embora possamos ser verdadeiramente cristãos e genuinamente salvos através do recebimento desse dom da fé, podemos subsequentemente cair em problemas em nossa experiên­cia espiritual porque não entendemos realmente o que é a fé. Ela nos é dada como um dom, mas daí para a frente há certas coisas que precisamos fazer a respeito.

Ora, este incidente notável realça a importância vital de dis­tinguir entre o dom da fé original e o andar pela fé, ou a vida de fé que vem subsequentemente. Deus nos dá o início nessa vida cristã, e então temos que andar nela. "Andamos por fé, e não pelo que vemos" é o tema que estamos considerando.

Antes de entrar na discussão deste assunto, devo dizer algu­mas palavras a respeito deste incidente. Examinado de qualquer ponto de vista, é um incidente muito interessante e de grande importância. Tem muito a nos dizer, por exemplo, sobre a pessoa do nosso Senhor. Ele nos traz face a face com o que é descrito como um paradoxo, a aparente contradição na pessoa do nosso Senhor Jesus Cristo. Ali estava Ele, fatigado — tão cansado, na verdade, que Ele adormeceu. Este acontecimento está registrado pelos três chamados evangelhos sinóticos, Mateus, Marcos e Lucas, e é realmente importante do ponto de vista de entender a pessoa de Jesus Cristo. Olhem para Ele. Não há qualquer dúvida a res­peito da Sua humanidade. Ele está fatigado, está cansado, tanto que Ele cai no sono, e continua dormindo mesmo em meio à tem­pestade. Ele é sujeito à fraqueza, Ele é homem de carne e osso, como qualquer um de nós. Ah, sim, mas espere um pouco. Eles O acordam, dizendo: "Mestre, não te importa que pereçamos?" Então Ele Se levantou, repreendeu o vento e a fúria da água, e cessaram, e fez-se bonança. Um dos outros evangelhos diz "grande bonança". Ora, não é de surpreender que os discípulos, vendo tudo isso, se admiraram e disseram uns aos outros: "Quem é este, que até os ventos e à água manda, e lhe obedecem?" Homem, e no entanto, gloriosamente Deus. Ele podia comandar os elemen­tos, podia silenciar o vento e acalmar a fúria da água. Ele é Senhor da natureza e da criação; Ele é Senhor do universo. Este é o mistério e a maravilha de Jesus Cristo — Deus e homem, duas naturezas, sem se misturar, e no entanto residentes na mesma pessoa.

Devemos começar aqui, porque se não temos isso claro em nossa mente, não faz sentido prosseguir. Se não crêem na deidade singular do Senhor Jesus Cristo, não são cristãos, o que quer que sejam. Não estamos apenas olhando para um bom homem, não estamos apenas interessados no maior mestre que o mundo já viu; estamos face a face com o fato que Deus, o Filho eterno, veio a este mundo e tomou sobre Si a natureza humana, e habitou entre nós, um homem entre homens — Deus-Homem. Estamos face a face com o mistério e a maravilha da encarnação e do nascimento virginal. Está tudo ali, e brilha em toda a plenitude de sua extra­ordinária glória. "Que espécie de homem é este?" Ele é mais que um homem. Esta é a resposta — Ele também é Deus.

Entretanto, esse não me parece ser o propósito especial deste incidente. Achamos essa revelação em outras passagens também, ela brilha através de todos os Evangelhos; mas os incidentes especí­ficos que ela se evidencia, em geral também têm alguma mensagem especial e peculiar para nos ensinar. Neste caso, não resta dúvida que a mensagem é a lição referente aos discípulos em sua situação neste ponto — é a grande lição sobre a fé e a natureza ou o cará­ter da fé. Não sei o que pensam, mas eu não cesso de ser grato a esses discípulos. Sou grato pelo registro de cada erro e engano que cometeram, porque posso me ver a mim mesmo neles. Como devemos ser gratos a Deus que temos estas Escrituras, como deve­mos ser gratos que Ele não Se limitou a nos deixar o evangelho apenas. Como é maravilhoso que podemos ler relatos como esse, e ver-nos a nós mesmos retratados neles, e como devemos ser gratos a Deus que Sua Palavra é divinamente inspirada e diz *a verdade, mostrando e retratando cada fraqueza humana.

Vemos, então, o Senhor repreendendo esses homens. Ele os repreende por causa do seu medo, por causa do seu terror, por causa da sua falta de fé. Ali estavam eles no barco, junto com Jesus, e a tempestade se levantou, e logo estavam em dificuldades. Eles tentaram tirar a água do barco, mas ele estava enchendo cada vez mais, e viram que em pouco tempo iriam naufragar. Tinham feito tudo que podiam, mas não parecia adiantar, e fica­ram assombrados que o Mestre ainda estava dormindo profunda­mente na popa do barco. Então eles O acordaram e disseram: "Mestre, Mestre, perecemos. Tu não Te preocupas?" E Ele Se levantou, e tendo repreendido o vento e o mar, fez-se grande bonança.

Devemos observar esta repreensão com cuidado, e entender o que Ele está dizendo. Em primeiro lugar, Ele os estava repreen­dendo por estarem em tal situação. "Onde está a vossa fé?", Ele pergunta. Mateus diz: "Homens de pouca fé". Aqui, como nas outras passagens, "Ele se maravilhou com sua falta de fé". Ele os repreendeu por estarem em tal estado de agitação e terror e alarme enquanto Ele estava com eles no barco. Essa é a primeira grande lição que precisamos  aplicar a nós mesmos e uns  aos outros. É muito errado para um cristão se achar em tal estado. Não importa quais sejam as circunstâncias, o cristão não deveria ficar agitado, o cristão jamais deveria ficar fora de si, o cristão nunca deveria chegar a uma condição em que não tenha controle de si mesmo. Essa é a primeira lição, uma lição que enfatizamos antes porque é uma parte essencial dos ensinos do Novo Testa­mento. Um cristão nunca deveria, como a pessoa do mundo, ficar deprimido, agitado, alarmado, frenético, sem saber o que fazer. É a reação típica a problemas da parte daqueles que não são cristãos, e é por isso que está errado ficar assim. O cristão é dife­rente de outras pessoas, ele tem algo que o não-cristão não possui, e o ideal para o cristão é o que o apóstolo Paulo expressou tão bem no capítulo quatro de Filipenses:  "Aprendi a contetar-me com o que tenho. . . Posso todas as coisas naquele que me forta­lece". Essa é a posição cristã, é assim que o cristão deve ser. Ele nunca deve ser arrastado por suas emoções, quaisquer que sejam elas — nunca. Isso sempre é errado num cristão. Ele deve sem­pre ser controlado, como espero mostrar aqui. O problema com esses homens era que eles não tinham domínio próprio. Por isso eles eram infelizes, por isso estavam agitados e alarmados, apesar do Filho de Deus estar com eles no barco. Não há como enfatizar esse ponto em demasia. Eu o apresento como uma simples propo­sição, que um cristão nunca deve perder o controle, nunca deve estar num estado de agitação, terror ou alarme, quaisquer que sejam  as  circunstâncias. Essa é,  obviamente,  a  primeira lição. A situação desses homens era alarmante. Estavam em perigo, e parecia que iam se afogar a qualquer momento, mas o Senhor de fato disse: "Vocês não deviam estar nessa condição. Como meus seguidores, vocês não têm o direito de estar em tal estado, ainda que estejam em perigo".

Essa é a primeira grande lição, e a segunda é que o que está tão errado em estar nesta condição, é que implica falta de confian­ça nEle. Esse é o problema, e é por isso que é tão repreensível. Por isso Ele repreendeu os discípulos naquele ponto. Ele disse, na verdade: "Você se sentem assim, apesar de eu estar aqui com vocês? Vocês não confiam em mim?" Em Marcos lemos que eles disseram: "Mestre, não se te dá que pereçamos?" Eu não creio que eles estivessem se referindo apenas a si mesmos ou sua própria segurança. Não creio que fossem tão egocêntricos. Não creio que, eles simplesmente estivessem dizendo: "Não Te importas que nós vamos nos afogar?" sem se preocuparem com Ele. Creio que O estavam incluindo também, e pensavam que todos eles iam se afogar. "Mestre, não se te dá que pereçamos?" Mas ainda assim, tal agitação e alarme sempre incluem uma implícita falta de con­fiança nEle. É uma falta de fé em Sua preocupação por nós e Seu cuidado conosco. Significa que assumimos o controle e nós mes­mos vamos cuidar da situação, sentindo que Ele não Se preocupa, ou que talvez não possa fazer coisa alguma para nos ajudar. Isso é o que torna essa questão tão terrível, mas eu me pergunto se sempre estamos conscientes disso. Parece óbvio, quando olhamos para a situação objetivamente, como no caso destes discípulos; mas quando estamos agitados ou perturbados, sem sabermos o que fazer, e damos a impressão de grande tensão nervosa, qualquer um que olhe para nós tem o direito de dizer: "Essa pessoa não tem muita fé no seu Senhor. Não parece haver muita vantagem em ser cristão, não parece haver muito valor no cristianismo, a julgar por essa pessoa". Durante a guerra todos nós estivemos sujeitos a tais provações de uma forma excepcional, mas mesmo agora em tempos de paz, qualquer coisa que surge em nosso caminho e nos coloca em dificuldades, imediatamente revela se realmente cremos e confiamos nEle, devido nossa reação. Para mim, portanto, parece que temos estas duas grandes lições aqui. Nunca devemos permitir que a agitação ou a perturbação nos con­trolem, não importa quais sejam as circunstâncias, porque fazer isso implica em falta de fé, falta de confiança em nosso bendito Senhor e Deus.

Contudo, vamos examinar a passagem em detalhe, vamos captar alguns princípios gerais deste incidente e seus grandes ensinos. Antes de tudo, examinando toda essa questão da fé, quero dizer algo sobre o que chamo a "prova da fé". As Escrituras estão repletas deste tema. Vejam o capítulo onze da Epístola aos Hebreus. Essa passagem é, de certa forma, nada mais que uma grande exposição deste tema — a prova da fé. Cada um desses homens foi testado. Eles receberam grandes promessas, e as haviam aceitado, e então tudo aparentemente começou a dar errado. Acon­teceu com todos eles. Pensem na prova enfrentada por um homem como Noé, no teste que Abraão enfrentou, os testes que homens como Jacó, e especialmente Moisés, tiveram que enfrentar. Deus dá o dom da fé, e então essa fé é provada. Pedro, em sua primeira epístola, no primeiro capítulo, diz. exatamente a mesma coisa. Ele diz: "Ainda que agora.. . estejais contristados por um pouco", devido a certas circunstâncias, o objetivo disso é que "a prova da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro que perece e é pro­vado pelo fogo, se ache em louvor, e honra, e glória na revelação de Jesus Cristo". Esse é o tema de toda as Escrituras. Ele é encon­trado na história dos patriarcas e de todos os santos do Velho Testamento, como também através de todo o Novo Testamento. Na verdade, é de forma peculiar o tema do último livro da Bíblia, o livro do Apocalipse.

Vamos deixar a questão bem clara. Precisamos começar enten­dendo que podemos nos encontrar numa posição em que nossa fé vai ser provada. Tempestades e provações são permitidas por Deus. Se estamos vivendo a vida cristã, ou tentando vivê-la no momento, na suposição que significa apenas vir a Cristo e então que nunca mais teremos qualquer preocupação na vida, estamos abrigando um terrível engano. É um erro e não é verdade. Nossa fé vai ser provada, e Tiago chega ao ponto de dizer: "Tende grande gozo quando cairdes em várias tentações (ou provações)" (Tiago 1:2). Deus permite tempestades, Ele permite dificuldades, Ele permite que os ventos soprem e o mar se enfureça, e que tudo pareça estar dando errado e que nós mesmos estejamos em perigo. Precisamos aprender e entender que Deus não toma o Seu povo e o leva a algum tipo de Campos Elísios em que estão protegidos de toda e qualquer infelicidade ou problema. Não — nós continuamos vivendo no mesmo mundo que os demais. Na verdade, o apóstolo Paulo parece ir ainda mais longe, dizendo aos filipenses: "Porque a vós vos foi concedido, em relação a Cristo, não somente crer nele, como também padecer por ele" (Filipen­ses 1:29). "No mundo", disse o Senhor, "tereis aflições; mas tende bom animo, eu venci o mundo" (João 16:33). "Tende bom âni­mo" — sim, mas lembrem-se que terão tribulações. Paulo e Barna­bé, visitando as igrejas durante suas viagens missionárias, adverti­ram-nas que "por muitas tribulações nos importa entrar no reino de Deus" (Atos 14:22).

Precisamos começar entendendo que "estar prevenido é estar armado de antemão" neste assunto. Se temos uma concepção má­gica da vida cristã, certamente vamos ter problemas, porque quan­do as dificuldades vierem, seremos tentados a perguntar: "Por que isto foi permitido?" E nunca deveríamos fazer essa pergunta. Se entendêssemos esta verdade fundamental, nunca faríamos tal per­gunta. Nosso Senhor dorme e permite que o temporal venha. A situação pode realmente se tornar desesperadora, e nossas vidas podem aparentemente estar em perigo. Tudo parece estar contra nós, entretanto — bem, um poeta cristão o expressou por nós:

Quando tudo parece estar contra nós, Para nos levar ao desespero. . .

Mas ele não se deixa desesperar, porque continua dizendo:

Sabemos que há uma porta aberta, Alguém ouvirá nossa oração.. .

A situação pode parecer desesperadora: "Tudo parece contra nós, para nos levar ao desespero". Vamos então estar preparados para isso. Sim, mas devemos fazer mais que isso. Enquanto tudo isso está acontecendo conosco, o Senhor parece estar totalmente indi­ferente. É aí que entra o verdadeiro teste da fé. O vento e as ondas eram terríveis, e a água estava entrando no barco. Isso era terrível, mas o que mais os aterrorizou foi a aparente indiferença do Senhor. Adormecido, aparentemente sem se importar. "Mestre, não se te dá que pereçamos?" Ele parece indiferente, sem Se preocupar co­nosco, nem consigo mesmo, com Sua causa ou Seu reino. Imagi­nem os sentimentos daqueles homens! Eles O tinham seguido, ouviram Seus ensinamentos sobre a vinda do reino, tinham visto Seus milagres e estavam esperando que coisas maravilhosas acon­tecessem; e agora parecia que tudo ia acabar em naufrágio e afoga­mento. Que anticlimax, e tudo por causa da Sua indiferença! Somos realmente muito inexperientes na vida cristã se não sabemos algo a respeito disso. Será que todos nós não conhecemos algo dessa situação de provas e dificuldades, sim e de uma sensação de que Deus parece não Se importar? Ele nada faz a respeito. "Por que Ele permite que eu, um cristão, sofra nas mãos de não-cristãos?" muitos perguntam. "Por que Ele permite que as coisas dêem errado comigo, e não com outra pessoa?" "Por que esse homem é bem sucedido, enquanto que eu sou um fracasso? Por que Deus não faz nada a respeito?" Com que frequência cristãos fazem essas perguntas! Eles têm indagado isso sobre a situação geral da Igreja hoje em dia. "Por que Ele não envia um reavivamento? Por que permite que humanistas e ateus tenham tanta proeminência? Por que Ele não interfere e faz algo, por que Ele não reaviva Sua obra?" Quantas vezes somos tentados a dizer tais coisas, exata­mente como aqueles discípulos no barco!

O fato de Deus permitir essas coisas, e que muitas vezes pa­rece até indiferente a respeito, realmente constitui o que estou descrevendo como a prova da fé. Essas são as condições sob as quais nossa fé é testada e provada, e Deus as permite, Deus per­mite tudo isso. Tiago chega até nos dizer que devemos "ter grande gozo" quando essas coisas nos acontecem. Este é um grande tema — a prova da fé. Não falamos muito sobre isso hoje em dia, não é? Mas se voltássemos ao século dezessete ou dezoito, descobriríamos que era um tema muito familiar. Creio que em certo sentido era o tema central dos puritanos. Certamente teve proeminência mais tarde no grande avivamento evangélico do século dezoito. A prova da fé, e como ter vitória sobre essas coisas, o andar pela fé e a vida de fé eram seus temas constantes.

Vamos agora passar para a segunda pergunta. Qual é a natu­reza da fé, o caráter da fé? Esta, acima de tudo, é a mensagem particular deste incidente, e sinto que se revela de forma especial­mente clara no registro do Evangelho de Lucas. É por isso que estou analisando o incidente baseado nesse Evangelho, e enfati­zando a forma como o Senhor colocou a pergunta: "Onde está a vossa fé?" Aí está a chave do problema. Observem a pergunta do Senhor. Parece inferir que Ele sabe muito bem que eles têm fé. A pergunta que Ele lhes faz é: "Onde está ela? Vocês têm fé, mas onde ela está neste momento? Devia estar aqui — onde está?" Ora, isso nos dá a chave para entender a natureza da fé.

Antes de tudo, quero colocá-lo de forma negativa. Fé, obvia­mente, não é uma questão de emoções. Não pode ser, porque nossas emoções numa situação assim podem ser muito variáveis. Um cristão não deve se sentir abatido quando tudo está dando errado. Ele tem o mandamento de se regozijar. Emoções pertencem à felicidade apenas, mas o regozijo envolve algo muito maior do que emoções; e se a fé fosse uma questão de emoções apenas, então, quando acontece algo errado ou os sentimentos mudam, a fé desaparece. Mas a fé não é uma questão de emoções apenas, a fé inclui o homem integral, incluindo sua mente, seu intelecto e seu entendimento. É uma resposta à verdade, como vamos ver.

A segunda coisa é ainda mais importante. A fé não é algo que atua automaticamente, não é algo que atua de forma mágica. E este é um erro do qual eu creio que todos nós, em alguma ocasião, fomos culpados. Parece que pensamos que a fé é algo que age automaticamente. Muitas pessoas, eu creio, concebem a fé como algo parecido com um termostato ligado a algum aparelho de aque­cimento — você ajusta o termostato num certo nível, para manter a temperatura num determinado ponto, e ele opera automatica­mente. Se a temperatura tende a subir além daquele nível, o ter­mostato entra em operação e a faz baixar; se usamos a água quente e a temperatura da água tiver caido, o termostato entra em ação e esquenta a água de novo, e assim por diante. Não precisamos fazer nada a respeito, o termostato age automaticamente e mantém a temperatura no nível desejado automaticamente. E há muitas pessoas que aparentemente pensam que a fé atua dessa forma. Presumem que não importa o que lhes aconteça, a fé vai operar e tudo estará bem. Contudo, a fé não é algo que atua automatica­mente ou de forma mágica. Se fosse assim, aqueles homens não teriam tido esse problema, a fé teria entrado em operação e eles estariam calmos e tranquilos e tudo acabaria bem. Mas a fé não é assim, e esses são conceitos muito errôneos a seu respeito.

O que é fé? Vamos examiná-la de forma positiva. O princípio ensinado aqui é que fé é uma atividade, é algo que precisa ser exercitado. Não entra em operação por si mesma, nós precisamos exercitá-la. É uma forma de atividade.

Quero dividir isso um pouco. Fé é algo que precisamos co­locar em ação. Isso é exatamente o que o Senhor disse a esses homens. Ele disse: "Onde está a vossa fé?", o que significa: "Por que não estão tomando a sua fé e aplicando-a a esta situação?" Pois foi porque eles não fizeram isso, foi porque não colocaram sua fé em ação, que os discípulos se desesperaram e ficaram nesse estado de consternação. Como então podemos colocar a fé em ação? Que quero dizer, ao afirmar que a fé é algo que precisamos aplicar? Posso dividir minha resposta desta forma. A primeira coisa que preciso fazer quando me encontro numa situação difícil, é não permitir que a situação me controle. Este é um aspecto negativo. Esses homens estavam no barco, o Mestre estava dor­mindo, as ondas estavam jogando água dentro do barco, e eles não conseguiam tirar a água com suficiente rapidez. Parecia que iam naufragar, e o problema foi que eles se deixaram controlar pela situação. Eles deviam ter colocado sua fé em ação, assumindo o controle e dizendo: "Não vamos entrar em pânico". Deviam ter começado assim, mas não o fizeram. Permitiram que a situação os controlasse.

A fé se recusa a entrar em pânico. Gostam desse tipo de definição de fé? Isso lhes parece terreno demais, e pouco espiritual? Mas esta é a própria essência da fé. Fé é uma recusa de se entrar em pânico, aconteça o que acontecer. Acho que Browning tinha isso em mente quando definiu fé desta forma: "Para mim, fé significa incredulidade perpetuamente mantida em silêncio, como o dragão sob os pés de Miguel". Aí está Miguel, e aí está o dragão sob seus pés, e ele o mantém quieto sob a pressão do seu pé. Fé é incredulidade mantida em silêncio, mantida prisioneira. E foi isso que esses homens não fizeram, eles permitiram que a situação os controlasse, e entraram em pânico. Fé, entretanto, é uma recusa em deixar isso acontecer. Ela diz: "Não vou ser controlada por essas circunstâncias — eu estou no controle". Então, assumam o controle de si mesmos, ergam-se, dominem-se a si mesmos. Não percam o controle, perseverem e vençam.

Essa é a primeira coisa, mas não termina aí. Isso não basta, porque pode ser nada mais que resignação. Isso não é a totalidade da fé. Depois de dar esse primeiro passo, assumindo o controle de si mesmos, então devem lembrar-se do que crêem e do que sabem. E isso também foi algo que aqueles tolos discípulos não fizeram. Se eles tão somente tivessem parado por um momento, dizendo: "Que vai acontecer? É possível que naufraguemos com Ele a bordo? Existe algo que Ele não pode fazer? Nós vimos os Seus milagres, Ele transformou a água em vinho, Ele curou o cego e o coxo, até ressuscitou os mortos; será que Ele vai permitir que tanto nós como Ele naufraguemos desta maneira? Impossível! Em todo caso, Ele nos ama, Ele cuida de nós, Ele disse que até os cabelos da nossa cabeça estão contados!" É assim que a fé racio­cina. Ela diz: "Muito bem, eu vejo as ondas e os vagalhões, mas" — ela sempre inclui este "mas". Isso é fé; ela se firma na verdade e raciocina baseada naquilo que sabe ser um fato. Essa é a ma­neira de aplicar a fé. Aqueles homens não fizeram isso, e por esta razão ficaram agitados e entraram em pânico. E nós também entra­remos em pânico e agitação se falharmos em agir assim. Quaisquer que sejam as circunstâncias, portanto, fique firme meu amigo, espere por um momento. Diga: "Reconheço tudo isso, mas..." Mas o quê? Mas Deus! Mas o Senhor Jesus Cristo! Mas o quê? Toda a minha salvação! É assim que a fé age. Tudo pode parecer contra mim, "para me levar ao desespero", e eu talvez não entenda o que está acontecendo; mas eu sei de uma coisa, eu sei que Deus me amou de tal maneira que enviou Seu Filho unigênito a este mundo por mim; eu sei que, quando eu ainda era um inimigo, Deus enviou Seu único Filho para morrer na cruz do calvário por mim. Ele fez isso por mim quando eu era um inimigo, um estranho rebelde. Eu sei que o Filho de Deus "me amou e se deu a si mesmo por mim". Eu sei que, à custa do Seu sangue, eu tenho a salvação e que sou um filho de Deus e herdeiro da bem-aventu­rança eterna. Eu sei disso. Muito bem, então, sei tudo isso, que "se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida" (Romanos 5:10). É uma lógica inevitável, e a fé argumenta nesses termos. A fé lembra o que as Escrituras chamam de "grandíssimas e preciosas promessas". A fé diz: "Não posso crer que Aquele que me trouxe até aqui vai me abandonar neste ponto. É impossível, não estaria de acordo com o caráter de Deus". Então a fé, recusando-se a ser controlada pelas circunstâncias, lembra-se do que sabe e em que acredita.

E então o próximo passo é que a fé aplica tudo isso à situação. Novamente, isso foi algo que aqueles homens não fizeram, e por isso o Senhor dirige a eles estas palavras: "Onde está a vossa fé?" "Vocês a têm; por que não a aplicam, por que não trazem tudo que sabem ao nível desta situação, por que não a focalizam sobre este problema?" Esse é o passo seguinte na aplicação da fé. Quais­quer que sejam as circunstâncias neste momento, tragam tudo que sabem a respeito do seu relacionamento com Deus e o apliquem à essa situação. Então terão plena certeza de que Ele nunca per­mitirá que nada lhes aconteça que possa ser prejudicial. "Todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus". Nem um cabelo das suas cabeças sofrerá dano, Ele ama vocês com um amor eterno. Não estou sugerindo que seremos capazes de entender tudo que está acontecendo. Podem não receber uma explicação completa; mas saberão com certeza que Deus não é indiferente. Isso é impossível. Aquele que fez a maior de todas as coisas por vocês, tem que estar preocupado com vocês em todas as coisas, e ainda que as nuvens sejam espessas e não possam ver Sua face, sabem que Ele está ali. "Por trás de uma providência carrancuda, Ele esconde uma face sorridente". Agarrem-se a isso. Talvez digam que não podem ver Seu sorriso. Eu concordo que essas nuvens terrenas impedem a muitos de vê-lo, mas Ele está ali, e nunca permitirá que algo de prejuízo permanente possa acontecer. Nada pode acontecer com vocês sem que Ele permita, não importa o que seja, algum grande desapontamento, talvez, ou uma doença, pode ser alguma tragédia, não sei o que é, mas podem ter certeza de uma coisa, que Deus permitiu que isso lhes acon­tecesse porque, em última análise, será para o seu bem. "E, na verdade, toda a correção, no presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas depois produz um fruto pacífico de jus­tiça. . ." (Hebreus 12:11).

É assim que a fé opera. Mas nós precisamos exercitá-la. Ela não entra em ação automaticamente. Precisamos focalizar a nossa fé nos eventos, e dizer: "Muito bem, mas eu sei isto a respeito de Deus, e porque é verdade, vou aplicá-lo a esta situação. Isto, por­tanto, não pode ser o que eu penso que é, precisa ter alguma outra explicação". E acabaremos vendo que é o propósito amoroso de Deus para conosco, e tendo aplicado a nossa fé, então ficaremos firmes, e nos recusaremos a ser abalados. O inimigo virá para atacar-nos, a água aparentemente vai jorrar dentro do barco, mas diremos: "Tudo está, bem, venha o que vier". O cristão permanece firme na fé, e diz a si mesmo: "Eu creio nisto, descanso nisto, tenho certeza disto, e embora não entenda o que está acontecendo, eu vou ficar firme nisto!"

Isso me leva à minha última palavra, o terceiro princípio — o valor da fé mais frágil ou ínfima. Examinamos a prova da fé, examinamos a natureza da fé, e para terminar quero falar sobre o valor da fé, por menor ou mais frágil que seja. Por mais fraca, ínfima e incompleta que fosse a fé daqueles discípulos naquela ocasião, eles ainda assim possuíam fé suficiente para fazer a coisa certa no final. Eles foram a Jesus. Agitados, perturbados, alarma­dos e exaustos, eles foram a Ele. Ainda tinham alguma idéia de que Ele poderia fazer alguma coisa, e assim O acordaram, dizendo: "Mestre, não vai fazer alguma coisa?" Isso é uma pobre amostra de fé, alguém diz, uma fé muito frágil, mas é fé, graças a Deus. E até mesmo fé "como um grão de mostarda" é valiosa porque nos leva a Ele. E quando vamos a Ele, isto é o que vamos encontrar. Ele estará desapontado conosco, e não esconderá o fato. Vai re­preender-nos, dizendo: "Por que não raciocinaram, por que não aplicaram a sua fé, por que ficaram agitados diante daquela pessoa incrédula, por que se comportaram como se não fossem cristãos, por que não colocaram a sua fé em ação como deveriam ter feito? Eu teria ficado tão feliz se pudesse ter visto vocês firmes como homens em meio do furacão ou da tempestade — por que não fizeram isso?" Ele deixará claro que está desapontado conosco, e nos repreenderá, mas, bendito seja o Seu nome, Ele ainda assim nos receberá. Não nos mandará embora. Ele não mandou embora aqueles discípulos, recebeu-os e nos receberá também. Sim, e não somente nos receberá, mas também nos abençoará e nos dará paz. "Ele repreendeu os ventos e o mar, e fez-se grande bonança". Ele fez surgir a situação que eles estavam ansiosos por gozar, apesar da sua falta de fé. Assim é o gracioso Senhor em quem nós cremos e a quem seguimos. Ainda que Ele muitas vezes fique decepcionado conosco e tenha que nos repreender, Ele nunca vai Se descuidar de nós; Ele nos receberá e nos abençoará, Ele nos dará paz, e na verdade fará por nós o que fez por aqueles homens. Com a paz, Ele também lhes deu uma compreensão maior de Sua pessoa do que eles haviam tido antes. Eles ficaram maravi­lhados, e cheios de assombro diante do Seu maravilhoso poder. Ele de certa forma incluiu isso como um bônus adicional às outras bênçãos.

Se você, meu amigo, se encontra nessa posição de prova e perturbação e teste, considere isso como uma oportunidade mara­vilhosa de provar a sua fé, de expressar a sua fé, de manifestar sua fé, e trazer glória ao Seu grande e santo nome. Mas se você falhar em fazer isso, se aparentemente você for fraco demais para colocar sua fé em ação, se está sendo tão assediado e atacado pelo diabo e pelo inferno e pelo mundo, bem, então, corra para Ele imediatamente e Ele receberá e abençoará você, Ele lhe dará libertação, e lhe dará paz. Mas lembre sempre que a fé é uma atividade, é algo que deve ser colocado em prática. "Onde está a vossa fé?" Vamos nos certificar que ela está sempre pronta a enfrentar as necessidades e as provações.

 

11. OLHANDO PARA AS ONDAS

"E logo ordenou Jesus que os seus discípulos entrassem no barco e fossem adiante para a outra banda, enquanto despedia a multi­dão. E, despedida a multidão, subiu ao monte para orar à parte. E, chegada já a tarde, estava ali só. E o barco estava já no meio do mar, açoitado pelas ondas; porque o vento era contrário; mas, à quarta vigília da noite, dirigiu-se Jesus para eles, caminhando por cima do mar. E os discípulos, vendo-o caminhar sobre o mar, assustaram-se, dizendo: É um fantasma. E gritaram, com medo. Jesus, porém, lhes falou logo, dizendo: Tende bom ânimo, sou eu, não temais. E respondeu-lhe Pedro, e disse: Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas. E ele disse: Vem. E Pedro, descendo do barco, andou sobre as águas para ir ter com Jesus. Mas, sentindo o vento forte, teve medo; e, começando a ir para o fundo, clamou, dizendo: Senhor, salve-me. E logo Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste? E, quando subiram para o barco, acalmou o vento. Então aproximaram-se os que estavam no barco, e adoraram-no, dizendo: És verdadeiramente o Filho de Deus".

Mateus  14:22-33

Esta ocorrência que agora vamos considerar tem muitas carac­terísticas em comum com aquela do capítulo anterior, registrada no oitavo capítulo do Evangelho segundo Lucas, sendo o ponto principal que este incidente, exatamente como o outro, concentra a atenção na natureza e no caráter da fé e na importância de termos uma compreensão correta dela. Mas esta passagem o faz de forma um pouco diferente. No texto anterior, vimos que o problema principal era uma falha em compreender que a fé é uma atividade, é algo que precisa ser colocado em prática. "Onde está a vossa fé?" Os discípulos a tinham, mas não a estavam aplicando ao seu problema específico. Aqui, embora ainda estejamos consi­derando, de modo geral, a questão do verdadeiro caráter da fé, ela é-nos apresentada de um aspecto um tanto diferente.

Todavia, não podemos avançar para nossa consideração prin­cipal, por mais importante que seja, sem observar um assunto preliminar que é absolutamente vital e essencial. Voltando ao inci­dente da tempestade no mar, a primeira coisa que observamos é a pessoa, a personalidade, se preferir assim, do nosso bendito Senhor. Aqui, mais uma vez, Ele Se destaca em toda a plenitude da Sua deidade. Nós O vemos em pessoa caminhando sobre as ondas turbulentas, e O vemos capacitando também o Seu servo, o apóstolo, a fazer o mesmo. Novamente O vemos dando ordens e controlando os elementos. Começamos desta maneira porque não podemos considerar a questão da fé, nem alcançar uma verdadeira compreensão dela, se não tivermos uma visão clara a respeito dEle. Não estamos falando de uma fé qualquer, estamos falando acerca da fé cristã, e uma preliminar essencial a qualquer consideração deste assunto, é que tenhamos uma visão clara acerca da pessoa do nosso bendito Senhor. Não há mensagem cristã à parte daquela que proclama que Jesus de Nazaré é o unigênito Filho de Deus, o Senhor da glória, o Senhor Jesus Cristo; e aqui nós O vemos sobressaindo-Se no esplendor da Sua glória, manifestando e pro­vando ser o Mestre do universo, o Senhor dos elementos. Come çamos com isso porque o propósito único dos Evangelhos é apre­sentá-lO. É também absolutamente vital em qualquer consideração do nosso assunto, demonstrar que a razão de todos os nossos problemas é o nosso fracasso em compreender o que Ele é.

Contudo, é igualmente claro que o propósito especial de re­gistrar este incidente é chamar a atenção para o que aconteceu com Pedro. Vemos o Senhor em toda parte nos Evangelhos, em Sua glória e em Sua deidade, porém cada incidente por sua vez salienta algo peculiar, alguma coisa especial; e claramente o aspecto especial aqui é o incidente na medida em que afeta particularmente o apóstolo Pedro.

Pedro começa muito bem — magnificamente até. Então entra em dificuldades, e acaba pessimamente. Essa é a cena. Pedro, que a princípio parecia cheio de fé, termina como um infeliz malogro, clamando em desespero. Quão rapidamente tudo aconteceu! Dizem que uma das características singulares deste mar, é o aparecimento repentino de tempestades. Pode estar calmo num momento, e no próximo aparece um temporal violento. Isso aconteceu com o mar nessa ocasião, e também aconteceu com Pedro — uma mudança súbita de toda a situação.

Do modo como vejo este incidente, a coisa essencial é observar cuidadosamente o que aconteceu, e o que deve ser enfatizado é que a grande diferença entre o milagre de acalmar a tempestade e este incidente aqui, é que lá, a tempestade veio como mais um fator para perturbar os discípulos — o Senhor adormeceu, e então veio a tempestade — porém aqui neste incidente, no que diz res­peito a Pedro, não é esse o caso em absoluto. Nenhuma novidade, não há nada de novo. A tempestade já havia começado, já rugia antes que o Senhor Se aproximasse dos discípulos ou do barco. O barco, como sabemos, estava no meio do mar, agitado pe­las ondas, e o Senhor estava orando sozinho na encosta do monte. Esse é o ponto que devemos destacar — que aqui os discí­pulos estavam no barco sem o Senhor, e a tempestade estava rugindo, e então repentinamente Ele aparece e temos este incidente.

O que precisamos lembrar é que Pedro não tinha nenhum elemento novo com o qual tivesse que lutar depois de sair do barco. Ele não saiu do barco e pisou em águas serenas e depois é que veio a tempestade; a tempestade já estava lá antes do Senhor aparecer perto do barco. Considero este um ponto muito importante. Não havia nenhum elemento novo como da outra ocasião, contudo Pedro encontrou dificuldades e ficou infeliz, assustado e desespe­rado. A pergunta é: por quê? E a resposta é que o problema estava inteiramente em Pedro. Nosso Senhor nos dá um diagnóstico muito preciso: era "pouca fé". "Homem de pouca fé, por que duvidaste?" É a "pouca fé" abrindo as portas à dúvida. Temos aqui, então, uma série de lições importantes que podemos aprender, e se as aprendermos e captarmos, elas nos pouparão de muitos ataques de depressão espiritual.

Antes de tudo, devo chamar a atenção para o que sou obri­gado a descrever como a mentalidade de Pedro, ou, se preferirem, o temperamento de Pedro. Muitas vezes já tivemos de enfatizar o fato de que, quando somos convertidos e salvos e nos tornamos cristãos, nosso temperamento não muda; ele permanece exatamente o mesmo que era antes. Não nos tornamos outras pessoas; continuamos a ser nós mesmos. Todos podemos dizer: "Vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim", e embora acrescentemos: "e a vida que agora vivo na carne vivo-a na fé do Filho de Deus", contudo esse "eu" é sempre o mesmo. Sempre seremos nós mesmos, e ainda que nos tornemos cristãos, continuamos a ser quem éramos. Cada um tem seu temperamento distinto, suas características próprias; e como resultado, todos temos nossos problemas específicos e par­ticulares. Há certos problemas que são fundamentais e comuns a todos nós, e mesmo nossos problemas particulares estão sujeitos à categoria geral de pecado e dos resultados da queda, mas nos chegam de formas diferentes e variadas. Todos estamos familiari­zados com esse fato. Todos os membros da Igreja não são iguais, ou os membros de qualquer grupo, por menor que seja; todos temos certas coisas a respeito das quais precisamos ser particular e excepcionalmente cuidadosos. Outras pessoas nem se deixam perturbar por essas coisas. Ah, sim, mas elas têm outras áreas com as quais precisam tomar cuidado. A pessoa explosiva precisa vigiar seu temperamento com cuidado, e a pessoa fleumática e letárgica precisa ser cuidadosa porque sua mentalidade é tão frouxa que tende a não se manifestar quando devia fazê-lo. Em outras pala­vras, todos temos nossas áreas específicas de dificuldades, e em geral elas surgem do temperamento específico que Deus nos deu. Na verdade, posso ir ainda mais longe, neste contexto, e dizer que provavelmente a coisa que mais precisamos vigiar é o nosso ponto forte. Todos temos a tendência de falhar, em última análise, no nosso ponto mais forte!

Ora, eu creio que isso era uma realidade no caso de Pedro. A grande característica de Pedro era a sua energia, sua capacidade de decisões rápidas, sua personalidade ativa. Ele era entusiasta e impulsivo, e era isso que constantemente lhe causava problemas. É muito bom ter uma natureza dinâmica. Alguns dos maiores ho­mens que o mundo já conheceu, se os entendo corretamente pela leitura das suas biografias, alcançaram proeminência principalmente por sua energia; não por sua capacidade intelectual, nem por sua sabedoria, mas por sua absoluta energia. Observem isso ao ler as biografias de muitos dos chamados grandes homens. Energia é uma grande qualidade, e geralmente é acompanhada por uma capa­cidade de decisão. No entanto, era justamente isso que estava constantemente causando problemas a Pedro. Muitas vezes leva a uma vida cristã instável, uma vida cristã em que falta equilíbrio. Que perfeita ilustração temos disso aqui! Observem Pedro quando ele reconhece o Senhor no começo deste incidente. Ali está ele no barco, em meio à tempestade. Ele tem fé suficiente para dizer ao Senhor: "Se és tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas", e sai do barco. Que coisa magnífica! Sim, mas olhem para ele alguns minutos mais tarde, clamando amedrontado. Isso sempre foi característico em Pedro. Quando o Senhor estava falando sobre Sua morte, e como Ele iria ser abandonado, Pedro não hesitou em dizer: "Ainda que todos se escandalizem em ti, eu não me escan­dalizarei"; mas não demorou para ele negar que conhecia o Senhor, com pragas e juramentos! É isso que eu chamo de "mentalidade de Pedro" — instável, o tipo de pessoa que está no topo da mon­tanha ou no mais profundo vale, ou cheio de entusiasmo e vibra­ção, fazendo-nos sentir que não estamos fazendo coisa alguma, ou então totalmente desencorajado, ameaçando abandonar completa­mente a vida cristã. Vocês conhecem esse tipo de pessoa.

A que se deve isso, qual é a causa dessa alternação entre êxtase supremo e miserável fracasso? A resposta é que se deve ao temperamento. O problema desse tipo de pessoa é que ela tende a agir sem pensar; sua fé não está baseada em suficiente reflexão. O problema é que ela não pondera nas coisas, não deixa as idéias amadurecerem. Este era o problema de Pedro. Nos Evangelhos, ele é sempre o primeiro a se apresentar como voluntário. Tomem por exemplo o incidente no capítulo 21 de João. Os discípulos tinham pescado a noite inteira sem conseguir coisa alguma, e então o Senhor aparece na praia. Ao ouvir as palavras de João, "é o Senhor", Pedro imediatamente cingiu-se com a túnica e pulou na água para ir ter com Ele. Ele sempre era o primeiro, o primeiro em tudo, e esse era o seu problema. Temos uma perfeita ilustração disso mesmo após o Pentecoste, no segundo capítulo da Epístola aos Gálatas. Ele ainda era o mesmo homem impulsivo, e Paulo teve que repreendê-lo pelo fato dele não ter esclarecido a questão da justificação pela fé como deveria ter feito. Ele não tinha des­culpa, porque foi o primeiro homem a admitir os gentios na Igreja Cristã. Vocês se lembram do incidente com Cornélio. Lendo o registro do capítulo 10 de Atos, encontrarão Pedro elevando-se a magníficas alturas. Foi uma coisa extraordinária, um judeu trazer um gentio para a Igreja Cristã. Mas ele voltou atrás em Antioquia, e quando aqueles mensageiros de Tiago chegaram ali, ele dissi­mulou, e Paulo teve que resistir-lhe face a face. Qual era o pro­blema com Pedro? Era o seu velho problema; ele aceitou a posição sem avaliar todas as suas implicações. Esse é invariavelmente o problema com este tipo de pessoa — essa energia, essa capacidade de decisão, essa impulsividade tende a levá-las a fazer coisas intui­tivamente em vez de avaliá-las e compreendê-las e captá-las; e o resultado são essas violentas variações em sua vida espiritual; ora, isso é uma causa muito comum de depressão espiritual e é por isso que estamos tratando dela.

Isso me leva ao segundo ponto que quero enfatizar, e é o ensino deste incidente a respeito de dúvidas: "Homem de pouca fé, por que duvidaste?" Este é um ensino importante — e graças a Deus por ele. A primeira coisa que aprendemos aqui é que nós mesmos às vezes produzimos nossas próprias dúvidas. Ninguém pode negar que este foi o problema de Pedro nesta situação. Ele produziu suas próprias dúvidas ao olhar para as ondas. Ele foi de encontro a dificuldades que não precisavam ter surgido. Não foi como se o Senhor tivesse dito a Pedro: "Pedro, tenha cuidado! Você sabe o que está fazendo?" Não, nenhuma palavra foi dita; Pedro mesmo, ao olhar para as ondas, produziu as dúvidas. Que sejamos muito cuidadosos aqui. Muitas vezes vamos de encontro à depressão, caímos em dúvidas ao nos intrometermos com coisas que deveriam ser evitadas. Estou me referindo a certos tipos de literatura, ou à tolice de nos aventurarmos em certos argumentos que vão além da nossa capacidade intelectual. Isto é muito impor­tante. Há pessoas que são tolas o suficiente para se engajar em discussões sobre ciência, apesar de pouco ou nada saberem a res­peito. Em vez de evitarem isso porque não têm conhecimento sufi­ciente, elas mergulham na discussão, e já conheci pessoas cuja fé foi abalada porque fizeram isso. Em outras palavras, elas deviam ter permanecido firmes na verdade que conheciam, sem tentar se envolver em questões científicas em que não são competentes. Assim, às vezes nos conduzimos à dúvidas, e precisamos ser caute­losos para não procedermos dessa maneira.

A segunda coisa — e eu dou graças a Deus por isso — é que dúvidas não são incompatíveis com a fé. Muitas vezes, em minha experiência pastoral, encontrei pessoas muito infelizes porque não captaram esse princípio. Certas pessoas pensam que, depois de alguém se tornar cristão, ele nunca mais deveria ser assaltado por dúvidas. Mas não é assim; Pedro ainda tinha fé. O Senhor lhe disse: "Homem de pouca fé". Ele não disse: "Pedro, porque você duvidou, você não tem fé". Isso é o que muita gente pensa e diz, por ignorância, e está muito errado. Embora tenham fé, podem ser perturbados por dúvidas, e existem muitos exemplos disso, não só nas Escrituras, mas também na história da Igreja. Na verdade, eu até diria, com o risco de ser mal-interpretado, que se alguém nunca foi perturbado por dúvidas em sua vida cristã, tal pessoa deveria examinar novamente os fundamentos de sua experiência, e se certificar de que não está gozando uma falsa paz, ou descan­sando no que eu chamaria de crença presunçosa. Leiam as vidas de alguns dos maiores santos que já viveram neste mundo e des­cobrirá que eles foram assaltados por dúvidas. O Senhor aqui cer­tamente nos dá a palavra final a respeito — dúvidas não são incompatíveis com a fé. Podem ter dúvidas, e ainda assim ter fé, uma fé fraca.

Para colocá-lo de outro modo, e este seria meu próximo prin­cípio, se as dúvidas nos controlam, isso é uma indicação de que nossa fé é fraca. Foi o que aconteceu com Pedro. Sua fé não tinha se desvanecido, mas porque era fraca, a dúvida o controlou e o subjugou, e ele foi abalado. Se tivéssemos feito a Pedro certas perguntas naquele momento de terror e alarme, ele teria dado respostas ortodoxas cada vez. Se lhe tivéssemos feito perguntas sobre a pessoa do Senhor, tenho certeza que ele teria dado a res­posta correta, mas naquele momento essas dúvidas o controlavam. Sua fé ainda estava presente, porém, de acordo com o ensino do Senhor aqui, quando nossas dúvidas nos controlam, isso é uma indicação de que nossa fé é fraca. Nunca deveríamos permitir que isso acontecesse. Dúvidas vão nos atacar, mas isso não significa que devemos permitir que nos controlem. Jamais devemos per­mitir isso.

Como podemos evitá-lo? O antídoto, é — muita fé. Se é "pouca fé" que permite que os homens sejam controlados por dúvidas, então o antídoto deve ser "muita fé" — ou grande fé. É isso que é enfatizado aqui acima de tudo o mais. Quais são as características dessa grande fé? A primeira é um conhecimento do Senhor Jesus Cristo e do Seu poder, e uma confiança firme e estável nisso. Pedro, como já vimos, começou bem, e isso faz parte da essência da verdadeira fé. Aqui estava um homem com os outros discípulos no barco, e com a tempestade rugindo à sua volta. O mar e o vento eram contrários, e o barco estava sendo jogado pelas ondas, e sua situação estava começando a se tornar desespe­radora. Mas subitamente o Senhor apareceu, e quando eles O viram, disseram: "Isso é um homem andando sobre as águas? É impossível — tem que ser algum tipo de fantasma, é um espírito". Eles gri­taram de medo, e imediatamente Jesus falou, dizendo: "Sou eu, não temais". E então temos essa magnífica expressão da essência da verdadeira fé por parte de Pedro. "Respondeu-lhe Pedro, e disse: Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas". Isso foi uma expressão de verdadeira fé, pois vemos o que significa: significa que Pedro estava na verdade dizendo ao Senhor: "Se Tu realmente és o Senhor, bem, então eu sei que não há nada impossível para Ti. Prova isso, ordenando que eu saia deste barco, neste mar tempestuoso, e ande sobre as águas". Ele cria no Senhor, em Seu poder, em Sua pessoa, em Sua capacidade. E não cria nisso apenas teoricamente. Ele tentou! O texto nos diz: "E Pedro, descendo do barco, andou sobre as águas". Ora essa é a essência da fé — "Senhor, se és tu. . ." É isso que a fé diz: "Se realmente és Tu, então eu sei que podes fazer isso; manda-me fazê-lo". E ele o fez. Aqui novamente está um grande princípio do qual devemos nos apossar com firmeza. A fé cristã começa e termina com um conhecimento do Senhor. Começa com um conhe­cimento do Senhor — não uma emoção, nem um ato da vontade, mas um conhecimento desta bendita Pessoa. Não há nenhum valor numa emoção se ela não for baseada nisso. Cristianismo é Cristo, e a fé cristã significa crer certas coisas a respeito dEle, e conhecê-10, e saber que Ele é o Senhor da glória que desceu até nós, saber algo sobre a encarnação, e o nascimento virginal, saber por que Ele veio, saber o que Ele fez quando veio, saber algo sobre Sua obra expiatória, saber que Ele veio — como Ele mesmo disse — não para chamar os justos, mas os pecadores ao arrependi­mento, saber que Ele diz: "Os sãos não necessitam de médico, mas sim, os que estão doentes"; saber que Ele levou "em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, para que, mortos para os pe­cados, pudéssemos viver para a justiça; e pelas suas feridas fostes sarados".

Quando as pessoas me procuram num estado de depressão espiritual, quase invariavelmente descubro que estão deprimidas porque não conhecem esses fatos como deveriam. Dizem: "Sou um pecador tão miserável, você não sabe o que eu fui ou o que eu fiz". Por que me dizem isso? Dizem isso porque nunca enten­deram o que Ele quis dizer ao afirmar: "Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores ao arrependimento". O que estão dizendo em auto-condenação é exatamente aquilo que lhes dá o direito de vir a Ele e ter certeza de que Ele os receberá. Onde existe uma falha em aprender e crer nestas coisas, a fé é fraca. Então uma fé forte significa conhecer estas coisas. Tenho que repetir isso cons­tantemente, e estou constantemente escrevendo estas coisas. Tive que escrever uma longa carta a um homem que eu nunca encontrei, a respeito deste assunto. O pobre homem estava extremamente infeliz e em escravidão. Por quê? Porque ele não tinha entendido que Cristo é o Amigo dos publicanos e pecadores, e que Ele veio para morrer por tais pessoas. Ele não tinha compreendido a Pessoa, não tinha compreendido a obra dessa bendita Pessoa. Sua fé era fraca, e as dúvidas o assaltaram por causa disso. Há muitos que atravessam a vida num estado de miséria e infelicidade porque não compreendem estas coisas. Se tão somente as entendessem, desco­bririam que sua auto-condenação é em si mesma uma garantia do seu arrependimento e o caminho para sua libertação final.

Em outras palavras, o grande antídoto para a depressão espi­ritual é o conhecimento da doutrina bíblica, da doutrina cristã. Não ter emoções despertadas em reuniões, mas saber os princípios da fé, conhecer e entender as doutrinas. Esse é o caminho bíblico, esse é o caminho de Cristo e é também o caminho dos apóstolos. O antídoto para a depressão é ter um conhecimento dEle, e acharão isso em Sua Palavra. Precisam se esforçar para aprendê-la. É tra­balho difícil, mas precisam estudá-la e se dedicarem a ela. A tragé­dia  de hoje, parece-me, é que as pessoas dependem demais de reuniões para a sua felicidade. Este tem sido orna problema há muitos anos na Igreja, e é por isso que muitos são tão infelizes. Seu conhecimento da verdade é falho. Isso, vão lembrar, foi o que o Senhor disse a certas pessoas que subitamente tinham crido nEle. Ele disse: "Se vós permanecerdes na minha palavra, verda­deiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (João 8:31-32). Libertará de dúvidas ou temores, da depressão, das coisas que abatem vocês. É a verdade que liberta — a verdade a respeito dEle, da Sua pessoa, da Sua obra, dos Seus ofícios, Cristo como Ele é.

Apressemo-nos para a segunda coisa. Tendo começado com a primeira, como Pedro começou, de forma tão correta, não esque­çamos a segunda, como Pedro infelizmente esqueceu, isto é, rejei­temos reflexões posteriores. "Ah, mas", alguém diz, "é uma boa coisa, pensar duas vezes". Não com a fé cristã; isso é insensatez. Dúvidas são coisas muito insensatas, e é bom que enxerguemos quão tolas e ridículas elas são. Então, da próxima vez que formos tentados, vamos nos lembrar de Pedro, que nunca deveria ter olhado para as ondas. Por que não? Por esta razão: ele já tinha resolvido a questão antes de sair do barco! Agora percebem porque, previamente, enfatizei o importante detalhe de que a tempestade já estava rugindo antes que o Senhor Se aproximasse do barco. Teria sido completamente diferente se Pedro tivesse pisado num mar calmo, e depois a tempestade viesse. Então ele teria tido uma desculpa. Mas não foi assim, pois quando Pedro disse ao Senhor: "Se és tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas", ele já tinha resolvido a questão das ondas. Ele já tinha lutado com elas enquanto estava no barco. Sabia que o barco estava jogando, então, quando disse aquilo, na verdade estava dizendo ao Senhor: "Não me importa o que o mar está fazendo". Ele já tinha resol­vido, essa questão, então saiu do barco e andou sobre as águas. Não havia nada de novo a respeito das ondas, nenhum fator novo. Ele não foi confrontado por nenhuma situação nova. O Senhor Jesus Cristo estava capacitando-o a andar sobre as águas turbu­lentas. Bem, por que então olhar para elas? Que razão havia para fazer isso? Nenhuma. Era ridículo, era insensato.

Esse sempre é o problema com uma fé fraca, ela volta a for­mular perguntas que já tinham sido resolvidas e respondidas. Se já creram no Senhor Jesus Cristo, devem, de alguma forma, ter se defrontado e lidado com dificuldades, ou não teria chegado à fé. Por que, então, voltar atrás? É pura insensatez. Não somente é uma questão de incredulidade, mas também uma questão de con­duta e comportamento. Por que sentar-se e encarar novamente difi­culdades que você já encontrou e resolveu antes de descer do barco? Quero repetir que este aspecto negativo da fé é muito importante. Depois de crer nEle, devem fechar a porta para certas coisas e recusaram-se a olhar para elas. Se já trataram delas, não voltem atrás, considerando-as novamente. Quantas vezes já tive de repetir isso nestes estudos! Quantas vezes nossos problemas se devem ao fato de que voltamos atrás. Pedro nunca deveria ter olhado para aquelas ondas. Não havia desculpa para ele, não havia nada novo a ser considerado. É a essência da fé recusar reflexões posteriores. Rejeitem-nas, não tenham nada a ver com elas. Digam-lhes: "Eu já cuidei de vocês!"

Isso me leva ao próximo princípio. A característica seguinte da fé é que ela persiste firmemente em olhar para Cristo e para Ele somente. Quero dividir isso, dando-lhes dois ou três princípios simples. A fé diz: "O que Cristo começou, Ele pode continuar. O início da obra foi um milagre, então, se Ele pode iniciar uma obra miraculosa, Ele pode mantê-la; o que Ele já começou, Ele pode continuar". "Tendo por certo isto mesmo", diz Paulo, "que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo" (Filipenses 1:6). Sim, diz Toplady,

A obra que Sua bondade começou, Seu braço de poder há de completar.

Esse é um argumento irrespondível.

Segundo, jamais devemos duvidar enquanto olharmos para Ele e formos iluminados acerca dEle. Sem Ele não temos qualquer esperança. Não importa quanto tempo tenhamos sido cristãos, de­pendemos dEle para cada passo. Sem Ele nada podemos fazer. Somente podemos conquistar nossas dúvidas se olharmos firme­mente para Ele, e não para elas. A única resposta apropriada para as dúvidas é olhar para Jesus. E quanto mais O conhecemos, e a Sua glória, mais ridículas elas se tornarão. Então mantenhamos nosso olhar firmemente em Jesus. Ninguém pode viver dependendo de uma fé inicial — isso parece ser o que Pedro estava tentando fazer. Ele começou com muita fé, e então, em vez de continuar pela fé, ele tentou prosseguir baseado naquela fé inicial. Mas, é claro, ninguém pode viver de uma fé inicial. Não tentem viver na dependência da sua conversão. Vocês estarão acabados antes de perceber! Não podem viver na dependência de uma experiência extática; precisam continuar olhando para Ele dia após dia. "Anda­mos pela fé", e vivemos pela fé no Senhor Jesus Cristo. Vocês vão precisar dEle tanto no seu leito de morte como precisaram na hora da sua conversão; precisam dEle em todos os momentos. A Bíblia está repleta de exemplos disso. Uma das ilustrações mais perfeitas é o fato de que os filhos de Israel tinham que colher o maná todos os dias, exceto no sábado. Esse é o método do Senhor. Ele não nos dá o suficiente para um mês. Precisamos de um supri­mento novo cada dia, então comecem o dia com Ele e mantenham-se em contato com Ele durante o dia. Esse foi o erro fatal de Pedro; ele desviou os olhos do Senhor. É a "batalha da fé"; vocês estão andando sobre águas turbulentas e a única maneira de pros­seguir é manter os olhos nEle.

Posso oferecer uma palavra final de conforto? Encontra-se neste incidente, e é o fato de que Ele nunca deixará vocês se afogarem! Pedro clamou em terror e alarme, "Senhor, salva-me!" — e imediatamente Jesus estendeu a mão é o segurou e disse: "Homem de pouca fé, por que duvidaste?" "E, quando subiram para o barco, acalmou o vento". Graças a Deus por essa conso­lação! Ele nunca nos deixará afundar, porque pertencemos a Ele. Podemos falhar, podemos sentir que estamos a ponto de submergir de uma vez por todas. Nunca! "Ninguém as arrebatará da minha mão". "Porque estou certo", diz Paulo, "de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus nosso Senhor" (Romanos 8:38-39). Nunca. Meus amigos, quando pensarem que estão perdidos, Sua mão estará ali, para sustentá-los. Olhem para Ele e digam com John Newton:

Seu amor no passado Proibe-me de pensar Que Ele me deixará Em tribulação, a sucumbir. Cada doce Ebenezer Que trago à lembrança Confirma o Seu deleite De ajudar-me até o fim.

Clamem quando estiverem desesperados. Não abram mão disso — se estiverem sobressaltados, clamem, e Ele os ouvirá e sustentará.

Mas não termino com isso. Devo terminar dizendo que, de certa forma, a grande lição de todo este incidente é que Ele pode evitar que caiamos. Nunca precisaremos gritar desta forma, se mantivermos os olhos nEle. Crendo nEle, nunca vamos cair, mas prosseguiremos firmes. Se Pedro tivesse olhado para Ele, teria continuado andando sobre o mar, e nunca teria se apavorado. Ele é tão grande, Ele é o Senhor do universo, e não só pode. andar sobre as águas, mas também capacitar Pedro a andar sobre elas. Nada é impossível para Ele. "Para Deus nada é impossível", e Ele é Deus. Então a fé olha para Ele e diz com Charles Wesley:

Fé, poderosa fé, a promessa vê, E somente a ela contempla, Ri das impossibilidades, E proclama: será feito!

Isso é fé. "Fé, poderosa fé, a promessa vê (nEle), e somente a ela contempla", e nada mais. Ri-se das impossibilidades — aque­las ondas turbulentas — e clama: "Será feito!" "Ora, àquele que é poderoso para vos guardar de tropeçar, e apresentar-vos irre­preensíveis, com alegria, perante a sua glória, ao único Deus, Salvador nosso, por Jesus Cristo, nosso Senhor, seja glória e majes­tade, domínio e poder, antes de todos os séculos, agora, e para todo o sempre. Amém" (Judas 24-25).

 

12. O ESPÍRITO DE ESCRAVIDÃO

"Porque não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; se ê certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados".

Romanos 8:15-17

Palavras mais expressivas do que estas jamais foram escritas. Elas se sobressaem mesmo num grande capítulo como este, como uma expressão de verdade que é absolutamente única. É uma das declarações mais magníficas encontradas em todas as Escrituras, contudo não há nada mais importante sobre uma declaração como esta, do que compreender exatamente por que o apóstolo a fez. O perigo a respeito de certas frases impressionantes é que temos a tendência de nos contentar com as palavras, ou com uma impres­são geral que elas exercem sobre nós; gostamos tanto delas que às vezes não compreendemos seu significado, e portanto não nos apropriamos verdadeiramente do ensino que elas visam nos trans­mitir.

Considerem esta grande afirmação. Por que Paulo a fez, qual era seu objetivo, qual foi sua razão para pronunciar estas palavras? A resposta nos é dada no versículo quinze: "Porque", diz o após­tolo, "não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor". Em outras palavras, a declaração está ligada a algo que foi dito antes, e o apóstolo tem um objetivo muito definido ao escrever estas palavras: ele está ansioso por livrar estes cristãos romanos de um espírito de desencorajamento — de um espírito de abatimento ou depressão. Talvez eles estivessem realmente sofrendo disso no momento, mas mesmo que não estivessem, ele quer se certificar de que não venham a sofrer disso, e seu alvo é prover um antídoto contra a depressão, contra esse espírito de escravidão, esse espírito de derrota, esse espírito de desencorajamento que, como já vimos, está sempre nos ameaçando em nossa vida cristã. O apóstolo não faz uma declaração tão magnífica sem um contexto, não é apenas uma verdade maravilhosa emitida subitamente. Ela aparece — como tais declarações quase invariavelmente surgem nos escritos do grande apóstolo — num momento em que ele está tra­tando de um problema bem prático. Estas epístolas que temos no Novo Testamento estão repletas de doutrina e teologia, e no entanto seria errado dizer que a coleção de epístolas do Novo Testamento é um compêndio de teologia. Não é. O fato estupendo é este, e é importante mantê-lo em mente, essas declarações e doutrinas sempre são apresentadas com algum objetivo prático em vista, e com o elemento pastoral sempre em proeminência. Estas epístolas são cartas pastorais escritas principalmente porque o apóstolo se preo­cupava em ajudar as pessoas a alcançar real alegria e vitória na fé cristã, a qual haviam aceito e crido.

Portanto, é imprescindível observar exatamente como ele veio a fazer esta declaração. Qual era a causa de desânimo nesta situação? Nada menos que o problema de viver a vida cristã, o problema, se preferir, de tratar com o pecado. Paulo começou a tratar desse problema no início do sexto capítulo desta grande epístola, e ainda está tratando dele aqui. As pessoas a quem ele está escrevendo tinham sido convertidas e creram no Senhor Jesus Cristo, mas agora estão enfrentando o problema de viver esta nova vida que receberam, num mundo que as antagoniza e que se opõe inteira­mente a elas. Também têm de vivê-la em face de certas coisas que encontram em sua própria natureza. É uma luta, é uma batalha; há pecado do lado de fora, e há pecado por dentro, e aqui temos pessoas que querem seguir o Senhor Jesus Cristo e viver da forma como Ele viveu neste mundo. E muitas vezes é quando enfrentamos essa questão e esse problema que o desânimo e a depressão tendem a surgir. Já consideramos muitos exemplos dos vários meios que o diabo, em sua sutileza, usa para nos desencorajar. Este, novamen­te, é um meio muito comum, especialmente quando a pessoa é conscienciosa, e leva muito a sério a fé cristã, o tipo de pessoa que não diz: "Agora sou convertido, e tudo está bem", mas aquela que diz: 'Esta é uma vida extraordinária e gloriosa, e devo vivê-la". Estamos considerando aqui a tentação peculiar que assedia tais pessoas.

Qual é a essência deste problema? É que elas falham em compreender certas verdades em relação à vida cristã, falham em compreender o que é possível para nós, como cristãos. Em última análise, é uma falha em entender doutrina ou, se preferirem, é em última análise mais um fracasso no domínio da fé. Vimos uma série de coisas com respeito à fé: vimos, por exemplo, que ela deve ser ativa. Muitas pessoas se esquecem disso, e acabam tendo problemas, porque não compreendem que devem colocar sua fé em ação. Então vimos que outros têm problemas porque não per­cebem que devem continuar e persistir na aplicação da fé, que não basta começar bem, porém que precisamos prosseguir, e não podemos relaxar nem por um momento. Mas aqui o problema parece ser um fracasso em compreender que a fé deve ser apropriada, que devemos tomar posse dela. Aqui está a verdade colocada diante de nós, mas se não tomarmos posse dela, ela não nos será útil. A falha em compreender isso é uma das coisas mais incríveis sobre o homem, como resultado do pecado. Todos já devemos ter perce­bido isso. Acaso já se acharam lendo uma passagem das Escrituras que haviam lido muitas vezes antes, e pensavam conhecer bem, e de repente ela se torna viva e fala com vocês de uma forma que nunca fez antes? Todos por certo tivemos esse tipo de experiência muitas vezes. Como é fácil ler as Escrituras e dar uma espécie de assentimento formal à verdade, sem nunca nos apropriarmos do que ela está dizendo!

Creio que essa é a essência deste problema específico que estamos considerando aqui, pois sempre tende a produzir o que o apóstolo chama de "espírito de escravidão" — "não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor". O que ele quer dizer com "espírito de escravidão"? Ele está falando do perigo de ter um "espírito de servo", um espírito e uma atitude de escravo. A atitude de escravo em geral surge de uma tendência de tornar a vida cristã, ou o viver a vida cristã, numa nova lei, numa lei mais alta, superior. Estou pensando em pessoas que estão bem esclarecidas em seu relacionamento com a lei — os Dez Mandamentos, ou a lei moral — como um caminho de salvação. Viram claramente que Cristo as libertou disso, e que somente Ele poderia fazer isso; sabem que seus próprios esforços jamais as capacitaram a cumprir a lei. Entendem que Cristo nos libertou da maldição da lei; não têm qualquer dúvida quanto à sua justifi­cação. Entretanto, agora começam a olhar positivamente para a vida cristã, e de uma forma muito sutil — sem ter qualquer cons­ciência disso — tornam-na num novo tipo de lei, e como resultado caem num espírito de escravidão e de cativeiro. Pensam na vida crista como uma grande tarefa a que têm que se empenhar, e à qual devem se dedicar. Leram o Sermão do Monte e compreendem que é um retrato da vida cristã, a vida que desejam viver. Voltam-se para outros ensinamentos do Senhor registrados nos Evangelhos, e vêem a mesma coisa. Então examinam as Epístolas, e lêem aquelas instruções minuciosas dadas pelos apóstolos, e dizem: "Essa é a vida cristã". E tendo chegado a essa conclusão, consideram-na algo que deve ser assumido e colocado em prática em suas vidas diárias. Em outras palavras, santidade se torna uma pesada tarefa para elas, e começam a planejar e organizar suas vidas e a incluir certas disciplinas que as capacitem a prosseguir. Esta atitude pode ser vista, de forma clássica, na igreja católica romana e em seus ensinos, em toda a idéia do monasticismo, que é nada mais do que uma grande expressão disto que estamos considerando. Vemos ali homens e mulheres que, sendo confrontados pela verdade cristã, dizem: "Obviamente, a vida cristã é uma vida nobre e sublime, e se alguém vai vivê-la com sucesso, deve se dedicar integralmente a isso". Indo ainda mais longe, dizem: "Não se pode fazer isso, e ainda continuar exercendo uma profissão, ou mesmo continuar vivendo no mundo. É preciso segregar-se do mundo, abandoná-lo completa­mente". E fazem isso. Essa é a forma extrema dessa idéia de san­tidade, de que cultivar santidade e a vida espiritual é uma ocupação de tempo integral, e que é necessário devotar-se a ela exclusivamente, e ter regulamentos e outras coisas para ser capaz de vivê-la.

De acordo com o apóstolo Paulo, isto nada mais é que um espírito de escravidão. Mas não preciso dizer que isso não está confinado aos católicos romanos, nem a outros que se denominam a si mesmos de "católicos" — pode ser bem comum, e é, entre cristãos evangélicos. Podemos muito facilmente impor a nós mesmos uma nova lei. É claro que não a chamamos de lei, e se compreendês­semos que estamos nos colocando sob uma nova lei, não o faríamos; mas ainda assim há uma tendência para fazer isso. Posso prová-lo pelas várias referências feitas a isso nas epístolas do Novo Testa­mento. Vejam, por exemplo, o argumento de Paulo ao escrever aos colossenses, onde ele tem uma passagem específica que trata desta questão. Observem como ele o expressa no fim do segundo capítulo: "Portanto ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados. Que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo. Ninguém vos domine a seu bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, metendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão, e não ligado à cabeça, da qual todo o corpo, provido e organizado pelas juntas e ligaduras, vai crescendo em aumento de Deus. Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como: não toques, não proves, não manuseies? As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; as quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne" (Colossenses 2:16-23). Isso nos dá uma idéia do que estava acontecendo na Igreja primitiva. Uma espécie de monasticismo estava surgindo de forma muito insidiosa. Já não é mais encontrado entre nós dessa forma particular, mas a tendência, a tentação, ainda está presente. Novamente, Paulo escrevendo a Timóteo, tem de advertí-lo contra a mesma coisa. Observem o que ele diz na Primeira Epístola a Timóteo, capítulo 4. "Mas o Espírito expressamente diz que nos últimos tempos apostarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios; pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo cauterizada a sua própria consciência; proibindo o casamento, e ordenando a abstinência dos manjares que Deus criou para os fiéis, e para os que conhecem a verdade, a fim de usarem deles com ações de graças". Isso certamente é algo que ainda é muito comum. Lembro-me muito bem do caso de uma senhora, uma cristã evangélica, que tinha parado de comer carne. Ela acreditava poder demonstrar claramente que o cristão não devia comer carne porque o animal teve que ser morto, e isso era uma violação do espírito de amor. Essa senhora havia imposto sobre si mesma uma lei. Qual era seu obje­tivo? Era, como ela pensava, verdadeiramente viver a vida cristã. Ela levava o cristianismo muito a sério, era uma cristã evangélica, não tinha dúvidas quanto à justificação pela fé, mas inconsciente­mente estava tornando a vida cristã numa nova lei que tinha imposto sobre si mesma. Essa passagem que eu acabei de citar, sobre espíritos enganadores que proíbem o casamento e proíbem comer carne, devia ser suficiente e para mostrar o que o apóstolo queria dizer com "espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor".

Vamos tentar interpretar isto em termos de certas coisas que podemos ver no presente, esta tendência de impor novas leis ao povo cristão. Mais adiante eu espero voltar a isto e tratar do assunto com mais detalhes, mas aqui está apresentado em princípio. Este "espírito de escravidão" sempre vem acompanhado de um espírito de temor. "Deus não nos deu o espírito de escravidão", escreveu Paulo aos gálatas, mas aqui ele o expressa assim: "Não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor".

Bem, em que sentido isso produz um espírito de temor? Em primeiro lugar, tende a produzir um temor errado de Deus. Há um temor de Deus que é certo, e se o negligenciamos ou ignoramos, é para nosso próprio risco; mas há também um temor de Deus que é errado, é um temor covarde, um temor que traz consigo tormento. Creio que as pessoas que estamos considerando tendem a desenvolver esse tipo errado de temor. Olham para Deus como se fosse um capataz, consideram-nO alguém que está constantemente vigiando o que fazem para descobrir falhas e erros nelas e puni-las de acordo. Outras pensam em Deus apenas como um severo e dis­tante legislador. Isso é bem evidente na tendência católica à qual já me referi, mas é também verdade com respeito a toda manifes­tação deste problema — Deus é alguém distante, nada mais que um grande legislador.

Entretanto, não é somente um temor de Deus, é também um temor da grandeza da tarefa. Tendo esboçado a tarefa para si mesmas, agora começam a temê-la. Por essa razão pensam que só podem viver a vida cristã se se segregarem do mundo, e que ninguém pode estar envolvido numa carreira ou profissão, e ainda viver a vida cristã. Torna-se então um temor e terror; elas passam a ter medo da tarefa. Essa é sua atitude para com a vida cristã. Não têm alegria porque a natureza gigantesca da tarefa enche-as de um espírito de temor, e estão constantemente perturbadas consigo mesmas, perguntando-se se realmente podem viver essa vida como ela deve ser vivida.

Então, uma outra forma em que este espírito de temor se manifesta, é que essas pessoas têm a tendência de temer o poder do diabo de uma forma incorreta. É preciso qualificar cada uma destas declarações. Existe um temor do diabo que é certo. Encontra­mos isto mencionado na Epístola de Judas, e também na Segunda Epístola de Pedro. Há pessoas volúveis, espiritualmente ignorantes, que fazem piadas sobre o diabo simplesmente porque são comple­tamente ignorantes a respeito dele e do seu poder. Mas, por outro lado, não devemos nos sujeitar a um temor covarde do diabo. As pessoas que estamos considerando sentem esse temor porque estão conscientes do seu poder. São pessoas espirituais — esta é uma tentação peculiar a algumas das melhores pessoas — e vêem este assombroso poder, o poder do diabo contra elas, e sentem medo.

Ficam igualmente apavoradas com o pecado que está dentro delas. Estão o tempo todo acusando a si mesmas, e falando sobre o pecado e a perversão do seu próprio coração. Aqui, novamente, precisamos manter o equilíbrio. O cristão que não está consciente de sua própria pecaminosidade e da perversão do seu próprio cora­ção não passa de uma criança na fé cristã; na verdade, se ele não tem qualquer consciência disso, eu questiono se realmente é um cristão. Claramente, de acordo com as Escrituras, pessoas que não têm consciência de sua pecaminosidade, ou são principiantes ou nunca foram regeneradas. Mas isso é diferente de se ter um espírito de temor, e viver nesta condição em que a vida não passa de um "desprezo aos prazeres, e viver dias laboriosos". Isto não é tão comum assim hoje em dia. Na verdade sou tentado a dizer que os cristãos modernos são quase saudáveis demais. Nosso problema peculiar é que somos sadios e despreocupados demais. Se voltarem ao século passado, e aos séculos anteriores, vocês encontrarão uma tendência diferente — uma tendência de estar constantemente se lamentando, sempre em pesar e nunca se regozijando. Na verdade, alguns quase iam ao ponto de dizer que; se o cristão se regozijasse, alguma coisa estava errada com ele! Ora, isso também é ser culpado do espírito de temor por causa de uma consciência profunda do poder do pecado interior.

Em outras palavras, posso resumi-lo: o espírito de temor, que resulta do espírito de escravidão neste tipo de cristãos é em última análise um temor de si mesmos e um medo de fracassar. Eles dizem: "Ingressei nesta vida cristã, sim, mas a questão é: posso vivê-la? Ela é tão maravilhosa e tão sublime. Como posso viver uma vida assim, como posso subir a tais alturas?" E com essa consciência de sua própria fraqueza, da grandeza da tarefa e do poder do diabo, caem nesse espírito de escravidão e vivem oprimidos e perturbados, preocupados e cheios de medo.

Em outras palavras, posso resumi-lo: o espírito de temor, que resulta do espírito de escravidão neste tipo de cristãos é em em temor", como a dizer: "Vocês viviam nesse espírito de escravidão e temor, mas foram libertados deles — por que voltar a ele?" Qual é o antídoto para esta condição? O apóstolo nos dá um esboço nesta declaração magnífica. Qual é a resposta? É que precisamos compreender a verdade concernente à doutrina do Espírito Santo e a sua habitação no cristão.

Essa é a mensagem, e de acordo com o apóstolo ela opera de duas formas. A primeira é que, ao confrontar esta imensa e gloriosa tarefa de negar-me a mim mesmo, tomar a cruz e seguir o Senhor Jesus Cristo, eu entendo que devo andar neste mundo como Ele andou. Ao compreender que nasci de novo e fui transformado por Deus segundo a imagem do Seu amado Filho, e ao começar a perguntar: "Quem sou eu para poder viver assim? Como posso ter esperança de alcançar isso?" — aqui está a resposta, a doutrina do Espírito Santo, a verdade que o Espírito Santo habita em nós. O que isso ensina? Antes de tudo, faz-me lembrar do poder do Espírito Santo que está em mim. O apóstolo já disse isso no versí­culo 13, onde ele trata da questão de como parar de viver na carne — "Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis". Aqui ele volta ao mesmo ensinamento: "Porque Deus não nos deu o espírito de temor". "Vocês precisam entender que não estão vivendo por suas próprias forças", ele diz a esses romanos. "Vocês estão pensando nesta tarefa como se tivessem que viver a vida cristã por si mesmos. Vocês sabem que foram perdoados, e podem dar graças a Deus que seus pecados foram apagados e lavados, mas parecem pensar que isso é tudo, e que foram deixados para viver a vida cristã por si mesmos. Se pensam assim", diz Paulo, "não é de espantar que estão vivendo sob um espírito de temor e escravidão, porque desse ponto de vista a coisa é totalmente sem esperança. Significa simplesmente que vocês têm uma nova lei, que é infinita­mente mais difícil do que a velha lei. Mas esse não é o caso, porque o Espírito Santo habita em vocês".

Na realidade, Paulo tratou dessa questão desde o princípio do oitavo capítulo. Por exemplo, observem o que ele diz no terceiro versículo: "Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne pecaminosa, pelo pecado condenou o pecado na carne". O que ele quer dizer com "o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne"? Ele quer dizer que a lei não podia salvar ninguém, a lei não podia capacitar ninguém a viver a vida cristã, porque a lei é fraca, por causa da fraqueza da minha carne. "O que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne". Não há carne na lei, portanto não podem falar sobre a fraqueza da carne da lei. O que significa é que a lei foi dada, mas que o homem, em si mesmo, é ordenado a cumpri-la. A fraqueza da carne está no homem, não na lei. A lei não é fraca, é o homem que deve cumpri-la que é fraco. Ouvi um idoso pregador expressar isso muito bem. Ele usou a ilustração de um homem cavando uma horta com uma pá, e enquanto estava cavando, o cabo da pá quebrou. Ele salientou o ponto que não havia nada de errado com a pá em si, era o cabo que era muito fraco. A pá em si era forte, feita de ferro; o problema estava no cabo, que era feito de madeira, e portanto era fraco. Não é igualmente verdadeiro que quando impomos uma nova lei a nós mesmos nesta vida cristã, a qual precisamos guardar por nossas próprias forças, estamos nos conde­nando ao fracasso? Mas não devemos fazer isso, porque o Espírito agora habita em nós. "Vós não estais na carne, mas no Espírito". Observem como o assunto é desenvolvido dos versículos 5 ao 14. A diferença essencial entre o homem natural e o cristão, é que o último tem o Espírito de Cristo habitado nele. Qualquer que seja a experiência que um homem teve, se ele não tem o Espírito de Cristo, ele não é um cristão: "Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele".

Aqui ele volta a esse mesmo argumento. Ele diz: "Vocês não precisam estar sob esse espírito de escravidão". Por que não? Porque o Espírito Santo está em vocês e Ele os fortalecerá e lhes dará poder. Paulo está sempre repetindo essa mensagem. Ouçam-no novamente em Filipenses 2:13: "Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade". "Operai a vossa salvação". Como? "Com temor e tremor". Somos um pouco sadios demais hoje em dia. "Operai a vossa salvação com temor e tremor". As pessoas não temem no momento da con­versão, e prosseguem não temendo; não conhecem o significado da palavra tremor: "Operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade". Isso é o Espírito novamente. Este é o modo de se livrarem desse espírito de escravidão e desse falso espírito de temor. Devemos nos conscientizar de que o Espírito de Deus está em nós. Devemos olhar para Ele, buscar Sua ajuda e confiar nEle. Isso não quer dizer que devemos ser passivos. Sig­nifica que cremos, e enquanto lutamos Ele está nos fortalecendo. De fato, nem sequer teríamos nos dado o trabalho de nos esforçar, se Ele não nos tivesse induzido a isso. Ele opera em nós, e nós trabalhamos, e quando compreendemos isso, a tarefa não é impos­sível. Paulo, na passagem paralela no quarto capítulo de Gálatas diz: "Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho" — o Espírito do Seu próprio Filho. Acaso compreendemos que, como cristãos, temos em nós o mesmo Espírito Santo que estava no Filho de Deus quando Ele esteve aqui na terra? O Pai dá o Espírito, e é o mesmo Espírito que estava no Filho que é dado a nós. O Espírito que O capacitou é o mesmo que nos capacita. Esse é seu argumento.

Passando para o segundo princípio, a presença do Espírito Santo em nós nos lembra do nosso relacionamento com Deus. Esta é uma coisa maravilhosa. "Não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai". A presença do Espírito Santo dentro de nós nos lembra da nossa filiação, sim, nossa filiação adulta. Não somos infantes, o próprio termo significa que somos filhos crescidos e alcançamos a idade adulta. Somos filhos no sentido mais amplo e em possessão de todas as nossas faculdades. Uma compreensão clara disso nos livra do espírito de escravidão que leva ao temor. Não dissipa o "temor reverente e piedoso", mas dissipa o temor trazido pelo espírito de escravidão.

Como faz isso? Bem, somos capacitados a compreender que nosso objetivo ao viver a vida cristã não é simplesmente alcançar certos padrões, mas agradar a Deus porque Ele é nosso Pai — "o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai". O escravo não tinha permissão de dizer "Aba", e o espírito de escra­vidão não olha para Deus como Pai. Ele não captou o fato de que Deus é Pai, e ainda O considera um Juiz que condena. Mas isso é errado. Como cristãos, precisamos aprender a nos apossar pela fé do fato que Deus é nosso Pai. Cristo nos ensinou a orar: "Pai Nosso". Este Deus eterno Se tornou nosso Pai, e no momento em que compreendemos isso, tudo o mais tende a mudar. Ele é nosso Pai e está sempre cuidando de nós, Ele nos ama com um amor eterno, Ele nos amou tanto que enviou Seu Filho unigénito a este mundo e à cruz para morrer por nossos pecados. Esse é nosso relacionamento com Deus, e a partir do momento que compreendemos isso, tudo se transforma. Doravante meu desejo não é mais guardar a lei, mas agradar meu Pai. A natureza nos ensina algo sobre isso. Amor filial, reverência filial, temor filial são tão diferentes daquele temor servil. Estão baseados no desejo de agradar nosso Pai, e no momento em que captamos isso, perdemos aquele espírito de escravidão. Nossa vida cristã deixa de ser uma questão de regula­mentos e regras, e passa a ser marcada pelo desejo de expressar nossa gratidão por tudo que Ele fez por nós.

Isso, todavia, não esgota o assunto. "O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdei­ros com Cristo". Observem o argumento, a lógica irrefutável. Se somos filhos de Deus, então estamos relacionados com o Senhor Jesus Cristo. Ele é "o primogênito entre muitos irmãos", e somos parte da família de Deus como filhos e herdeiros. Vocês já obser­varam a coisa assombrosa que João diz no capítulo 17, versículo 23? Notem as palavras do Senhor, quando Ele ora ao Pai: "Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade, e para que o mundo conheça que tu me enviaste a mim, e que os tens amado a eles como me tens amado a mim". Nosso Senhor diz ali que Deus o Pai nos ama como amou a Ele, o unigénito Filho de Deus. Então começamos a entender isso, que agora somos filhos de Deus. Temos esta nova dignidade, esta nova posição elevada e gloriosa em que nos encontramos. Voltem novamente àquela oração sacerdotal e observem como o Senhor diz que devemos glorificá-lO neste mundo exatamente como Ele glorificou Seu Pai. Vocês já tinham percebido isso? Isso é a vida cristã, essa é a razão de viver a vida cristã; é compreender que pertenço a Deus e que devo glorificá-10. É assim que devo encará-la. Que posição maravilhosa! E o Espírito está em mim, e me capacita a fazê-lo. Ele transforma minha perspectiva, e eu perco o espírito de escravidão que leva ao temor.

É assim que eu o entendo; entendo que o Espírito Santo habita em mim. Esse é o argumento de Paulo no sexto capítulo da Primeira Epístola aos Coríntios: "Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo?" Esse é o meio de vencer os pecados da carne. Tenho que fazer constantemente esta pergunta às pessoas que vêm a mim com algum problema ou dificuldade, e dizem: "Tenho orado sobre isso"; e eu digo: "Meu amigo, você sabe que o seu corpo é o templo do Espírito Santo?" Essa é a resposta. Digo-o de novo, mesmo com o risco de ser mal-interpretado, mas essas pessoas, num certo sentido, deveriam orar menos e pensar mais. Precisam lembrar-se de que seus corpos são "os templos do Espírito Santo que habita neles". A oração sempre é essencial, mas raciocinar também é essencial, porque a oração pode ser apenas um mecanismo de escape, e às vezes um grito no escuro por pessoas que estão desesperadas e derrotadas. A oração precisa ser inteli­gente, e é somente àqueles que sabem que seus corpos são templos do Espírito Santo, que a resposta virá e o poder será dado.

Então, finalmente, é claro, o Espírito Santo em nós nos lembra do nosso destino. "Se nós somos filhos, somos logo herdeiros tam­bém, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo". É assim que devemos contemplar a vida cristã. Paulo usa muito este argumento, e frequentemente encerra dizendo o que ele expressa tão gloriosa­mente nos dois últimos versículos de Romanos capítulo oito. O cristão tem certeza absoluta do seu destino, ele está persuadido, acima e além de qualquer dúvida, que "nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o pre­sente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus nosso Senhor". Não é uma questão de manter um padrão, não é uma questão de lutar em vão para fazer algo; é uma questão de se preparar para o lugar para onde você está indo. O meio de se livrar do espírito de escravidão e temor, é saber que você é um filho de Deus, está destinado para o céu e para a glória, e que tudo o que você vê dentro e fora de si mesmo não pode impedir que esse plano seja cumprido. Então a vida cristã é uma questão de se preparar para isso. "Esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé". Fé em quê? Fé no meu destino final. Ou considerem o que João diz em sua Primeira Epístola, no terceiro capítulo, versículo dois: "Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é o veremos". Ao que isso nos leva? Leva-nos ao que lemos no versículo seguinte: "E qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é puro". Não há nada tão capaz de promover santidade como a compreensão de que somos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, que nosso destino é certo e seguro, que nada pode impedir isso. Compreendendo isso, nós nos purificamos assim como Ele é puro, e sentimos que não há tempo a perder. Esse é o argumento do apóstolo nestes três versí­culos, e é muito prático. Essa é a maneira de viver a vida cristã! Não a transforme numa lei, mas compreendem que vocês receberam o Espírito Santo. Então desenvolvam isso em suas vidas. Seu Pai está cuidando de vocês. Ele está zelando por vocês — sim, vou usar a linguagem bíblica — Ele é zeloso a seu respeito, porque vocês pertencem a Ele. Pertencem a Cristo, são irmãos dEle. O Espírito Santo está habitando em seus corpos e são destinados para a glória. Ao contemplar tal destino, digam:

Toma, minha alma, tua plena salvação, Ergue-te acima do pecado, temor e preocupação, Para encontrar gozo em cada lugar, Algo para fazer, uma tarefa a realizar. Pensa no Espírito que habita em ti, No sorriso que o Pai te dirige, No Salvador que por ti morreu na cruz, Filho do céu — deverias lamentar?

Como é errado viver num espírito de escravidão e temor! "Filho do céu, deverias lamentar?" Nunca! "Pensa no Espírito que habita em ti, no sorriso que o Pai te dirige, no Salvador que por ti morreu na cruz — filho do céu, deverias lamentar?" Essa estrofe de um antigo hino é uma boa exposição destes três versí­culos. Firmem-se nisso, apropriem-se disso, e pratiquem-no. Não se preocupem com o que sentem. A verdade sobre vocês é gloriosa. Se estão em Cristo, ergam-se acima do pecado, do temor e da preocupação. Apossem-se da sua plena salvação, triunfem e pre­valeçam!

 

13. DOUTRINA FALSA

"Qual é, logo, a vossa bem-aventurança? Porque vos dou testemunho de que, se possível fora, arrancaríeis os vossos olhos, e mos daríeis".

Gálatas 4:15

Chamo sua atenção à pergunta dirigida pelo apóstolo aos membros das igrejas na Galácia, para que consideremos juntos outra causa de depressão espiritual, ou infelicidade na vida cristã. Toda a Epístola aos Gálatas realmente trata desta questão. Estes gálatas haviam ouvido a mensagem do evangelho pelo apóstolo Paulo. Tinham sido gentios pagãos típicos. Estavam longe de Deus, sem qualquer conhecimento dEle ou do Seu Filho, ou da grande salvação cristã, mas o apóstolo Paulo veio e pregou a eles, e recebe­ram a mensagem do evangelho com grande alegria. Ele descreve, em detalhes mesmo, seu regozijo quando o encontraram pela pri­meira vez, e ouviram sua pregação. Parece claro que quando o apóstolo esteve entre eles, não estava fisicamente bem. É quase certo que ele estava sofrendo de algum problema dos olhos, porque lembra aos gálatas que, quando estivera entre eles, eles teriam arrancado os próprios olhos, dando-os a Paulo, se isso pudesse ter sido de alguma ajuda. Concluímos que essa dolorosa condição inflamatória dos seus olhos era algo ofensivo e desagradável de se ver. Não havia nada atraente na aparência do apóstolo. Como ele lembra a igreja em Corinto, sua presença era "fraca". Ele não tinha o que chamaríamos hoje de presença imponente. Era um homem de aparência muito comum, sem levar em consideração a deforma­ção adicional causada por seu problema nos olhos. Mas, como ele os lembra aqui, eles não o desprezaram nem rejeitaram. Ele diz: "Não rejeitastes nem desprezastes isso que era uma tentação na minha carne", e na verdade o receberam "como um anjo de Deus, como Jesus Cristo mesmo", e tinham se regozijado nessa maravi­lhosa salvação. Mas não eram mais assim, tinham se tornado infelizes, e ele se viu forçado a perguntar-lhes: "Qual é, logo, a vossa bem-aventurança?" Eles estavam infelizes consigo mesmos, e quase se voltaram contra o apóstolo. Estavam num, estado de tanta depressão que ele podia até usar este tipo de linguagem: "Meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós".

A pergunta que ele lhes apresenta, a respeito de sua bem-­aventurança anterior, é marcante. Na verdade, ele a tinha apresen­tado em outras formas previamente na mesma carta. No sexto versículo do primeiro capítulo, ele diz: "Maravilho-me de que tão depressa passásseis daquele que vos chamou à graça de Cristo para outro evangelho". Então ele o repete no terceiro capítulo, no pri­meiro versículo: "Ó insensatos gálatas! quem vos fascinou para não obedecerdes à verdade, a vós, perante os olhos de quem Jesus Cristo foi já representado como crucificado?" Ora, mesmo sem acrescentar outras evidências, creio que está claro que esses cristãos da Galácia que tinham sido tão felizes, tão jubilosos em sua salva­ção,  haviam   se  tornado  espiritualmente  infelizes   e   deprimidos.

A questão à nossa frente é esta: o que causou esta mudança? Que tinha acontecido com eles? E a resposta é perfeitamente simples, e pode ser colocada numa única frase — era tudo devido doutrina falsa. Esse era o problema das igrejas na Galácia; todos os seus problemas emanavam de uma certa doutrina falsa em que haviam acreditado. E isto é algo que é tratado com muita frequência no Novo Testamento. Quase não há uma epístola que não trate deste assunto, de uma forma ou outra. Estas igrejas infantes tinham sido muito perturbadas por certos tipos de mestres que seguiam o apóstolo Paulo, imitando a sua mensagem e pregação em muitos aspectos, mas acrescentando suas próprias idéias. O resultado é que não somente isso causava confusão nas igrejas mas, além disso, cau­sava esta condição deprimente e infeliz na vida de muitos cristãos, Era, obviamente, obra do diabo. O apóstolo não hesita em afirmar isso, e nos lembra que o diabo pode até se transformar em anjo de luz. Ele ataca os cristãos e insinua idéias falsas em suas mentes, conseguindo assim, por um tempo pelo menos, arruinar seu teste­munho cristão e roubar sua felicidade. A história da Igreja Cristã desde o Novo Testamento está cheia de tais ocorrências. Começou já no princípio, e tem continuado desde então, e num certo sentido é verdadeira a afirmação de que a história da Igreja Cristã é a história do surgimento de muitas heresias e a batalha da Igreja contra elas, assim como a libertação da Igreja pelo poder do Espírito de Deus.

Este obviamente é um assunto muito extenso, e posso apenas tocar nele de passagem. Doutrinas falsas podem surgir em muitas formas diferentes; mas podem ser divididas em duas áreas principais. Às vezes, a doutrina falsa assume a forma de negação aberta da ver­dade e dos princípios e dogmas orientadores da fé cristã. Devemos deixar bem claro que às vezes assume esta forma. Pode se apresentar como sendo cristã, mas de fato nega a mensagem cristã. Já existiram, e ainda existem, ensinos que se dizem cristãos, porém que até mesmo negam a deidade do Senhor Jesus Cristo e outros dogmas básicos e fundamentais da nossa fé.

Mas doutrina falsa nem sempre assume esta forma. Há uma outra forma para a qual quero dirigir sua atenção agora. Em certo sentido, esta é muito mais perigosa que a primeira, e é a mesma forma que tinha assumido nas igrejas da Galácia. Não é tanto uma negação da fé, não é tanto uma contradição dos dogmas funda­mentais; mas é uma doutrina que sugere que algo mais é necessário, além do que já cremos. Essa foi a forma peculiar que assumiu no caso dos gálatas. Certos mestres tinham ido às igrejas ali, dizendo e pregando: "Sim, cremos no evangelho e concordamos com a pregação de Paulo. Tudo que ele ensinou está certo, mas ele não ensinou tudo. Ele deixou de fora algo que é absolutamente vital, a circuncisão. Fiquem firmes em tudo que crêem, mas se realmente querem ser cristãos, precisam também ser circuncidados". Essa era a essência do falso ensino.

Não é difícil perceber como essa doutrina entrou ali. Afinal, os primeiros cristãos foram judeus. Vemos isso nos Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos. Vamos ser justos com eles. É fácil enten­der sua situação. Eles sabiam que sua velha religião tinha sido dada por Deus, e sabiam que era verdadeira. Sua dificuldade era entender os novos ensinos à luz de sua velha doutrina tradicional. Eles sabiam que a circuncisão fora dada por Deus a Abraão, e tinha continuado desde então; mas aqui estava uma nova doutrina que afirmava que a circuncisão não era mais necessária, que a velha distinção entre judeus e gentios havia sido abolida, que a circuncisão, bem como toda a lei cerimonial, já cumprira seu propósito e o povo de Deus não tinha mais obrigações para com ela. Muitos ficaram perplexos com isso. Eles não tinham problemas com os gentios sendo admitidos à fé. A princípio isso tinha sido um obstá­culo para eles (até o apóstolo Pedro teve dificuldade em aceitar isso, e foi só depois que Deus lhe deu a visão do céu que ele admitiu receber Cornélio e os outros gentios na igreja Cristã). Mas eles ainda não conseguiam entender como um gentio podia se tornar cristão se ele ao mesmo tempo não se tornasse judeu. Entendiam que o cristianismo era o resultado lógico da sua velha religião, mas não entendiam como alguém podia ingressar nele sem passar pela circuncisão. Então eles foram a esses cristãos gentios da Galácia e sugeriram que, se quisessem realmente ser cristãos, teriam que se submeter à circuncisão e se colocar sob a lei.

Esse é o tema que o apóstolo aborda nesta Epístola aos Gálatas. Não podemos lê-la sem nos comovermos. Ele escreve com paixão. Está tão preocupado com a questão que até mesmo deixa fora sua costumeira saudação, e logo depois da abertura da carta ele ime­diatamente aborda o assunto e faz sua pergunta. Por que sente essa paixão, por que está tão emocionado? A resposta, é claro, é que ele sentia que a própria posição cristã dessas pessoas estava em jogo, e se não captassem esta verdade, toda sua posição cristã podia estar em perigo. Não há outra carta em que o apóstolo fale com tanta veemência. Notem o que ele diz: "Mas ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema". Vocês não poderiam ler coisa mais veemente. E ele o repete: "Assim como já vo-lo dissemos, agora de novo também vo-lo digo. Se alguém vos anunciar outro evangelho além do que já recebestes, seja anátema". Essa é a forma em que ele cala qualquer tendência de dizer: "Não importa que essas pessoas não vejam o que eu vejo, somos todos cristãos". Não é assim; há uma definitiva intolerância aqui porque, como ele sugere e ensina, toda a posição cristã está em jogo nesta questão.

listou chamando atenção para isso não devido a qualquer interesse especial na história dos gálatas em si, mas por causa da sua importância para nós. Essa é a glória do Novo Testamento. Não é um livro acadêmico; é o livro mais atualizado que existe. Não há uma heresia ou problema descrito no Novo Testamento que não possa ser encontrado em alguma forma ou aspecto na Igreja aluai. Não estamos envolvidos numa discussão acadêmica sobre depressão espiritual; estamos falando sobre nós mesmos, e falando uns com os outros; e estou chamando atenção para isso porque estas coisas ainda estão conosco, e essa heresia dos gálatas ainda pode ser encontrada entre nós, numa manifestação moderna. Há muitos cristãos que passaram por essa experiência. Quando encon­traram a verdade pela primeira vez, ficaram assombrados. Disseram: "Nunca pensei que o cristianismo fosse assim". Receberam-na com alegria e experimentaram bênçãos extraordinárias; mas subsequentemente foram confrontados com outra doutrina. Talvez tenham lido a respeito, ou alguém pregou sobre aquilo, ou foi sugerida por um amigo, e assim entraram em contato com outro tipo de doutrina. Imediatamente essa doutrina os atraiu porque parecia tão espiritual, e porque prometia bênçãos tão especiais se cressem nela, e assim eles a acataram. Mas então passaram a experimentar infelicidade e confusão. Outros que não chegam a aceitar e abraçar tal doutrina, ainda assim sofrem os seus efeitos, porque ela os perturba e porque não sabem como rebatê-la. Sua alegria parece desaparecer, e ficam perplexos e confusos. De qualquer forma, perdem sua felicidade original.

Realmente não há necessidade de mencionar nenhuma dessas doutrinas especificamente, pois tenho certeza que vocês estão fami­liarizados com o que tenho em mente. Todavia, devo mencionar certas coisas à guisa de ilustração, mas sem o propósito de tratar delas em detalhe. À parte de exemplos óbvios, em heresias tais como os Testemunhas de Jeová ou os Adventistas do Sétimo Dia, encontramos isso inerente ao catolicismo romano, com sua insistên­cia em conformidade e obediência a coisas não ensinadas nas Escri­turas. Aparece também na doutrina de que batismo por imersão em idade adulta é essencial à salvação. Também o vemos na ênfase da absoluta necessidade de se falar em outras línguas, se alguém quer ter certeza de que recebeu o Espírito Santo, e às vezes é encontrado em conexão com cura física, na doutrina de que um cristão jamais deveria ficar doente. Essas são apenas algumas ilustrações. Há muitas outras; menciono essas simplesmente para que entendamos que esta é uma questão muito prática, e não simplesmente um pro­blema teórico. Todos temos que enfrentar coisas assim, e, como espero demonstrar, tudo isso é parte do caráter da heresia que estamos considerando.

Creio que aqui o apóstolo estabeleceu de uma vez por todas um grande princípio que precisamos ter sempre em nossa mente, se quisermos nos proteger destes perigos, e assegurar que perma­necemos "firmes na liberdade com que Cristo nos libertou", sem tornar a cair "debaixo do jugo da servidão". Foi seu amor por aquelas pessoas que o levou a escrever dessa maneira. E Paulo lhes diz aqui que se sentia como um pai se sente em relação aos seus filhos. Não é que o apóstolo fosse pedante ou de mente fechada, intolerante ou egocêntrico. Pelo contrário, sua única preo­cupação era a vida espiritual e o bem-estar daquelas pessoas. "Meus filhinhos", ele diz. Ele é como uma mãe; "por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós". E é neste espírito que quero dirigir sua atenção para o assunto. Deus sabe que eu preferiria não tratar dele em absoluto. Vivemos numa época que não aprecia esse tipo de coisas. A tendência é dizer: "Que importância tem?" E esta tendência é aparente não só entre aqueles que estão fora da Igreja, mas também entre os que estão dentro dela. Abordo este tema, portanto, com relutância, e simplesmente porque sinto que estaria traindo minha missão e a chamada de Deus para o ministério cristão se não expusesse a verdadeira doutrina da Palavra de Deus, qualquer que seja a opinião moderna.

Como, então, enfrentamos esse tipo de situação? A primeira coisa que o apóstolo apresenta é a questão de autoridade. Isso tem que vir primeiro. Essas perplexidades e esses problemas não são uma questão de emoção ou experiência, e nunca devem ser julgadas meramente na base dos resultados. Doutrinas falsas podem fazer as pessoas muito felizes. Vamos deixar isto bem claro. Se julgarem somente em termos de experiência e resultados, descobrirão que cada seita e heresia que o mundo ou a Igreja já conheceu pode ser justificada. Qual, então, é a autoridade? O apóstolo nos diz claramente no primeiro capítulo. Na verdade a questão da autoridade é o assunto de que ele trata nos dois primeiros capítulos. Aqui a posição pessoal do próprio apóstolo está envolvida, e é por isso que ele tem de dizer tanto a respeito de si mesmo. Ele assume uma posição em que desafia qualquer um a pregar outro evangelho que não seja o que ele prega. Ele diz: "Mas ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho. . . seja anátema". Por quê? Qual é o teste? É este: "Mas faço-vos saber, irmãos, que o evangelho que por mim foi anunciado não é segundo os homens. Porque não o recebi, nem aprendi de homem algum, mas pela revelação de Jesus Cristo". E então ele continua, relatando como entrou no ministério: "Porque já ouvistes qual foi antigamente a minha conduta no judaísmo, como sobremaneira perseguia a igreja de Deus e a assolava. E na minha nação excedia em judaísmo a muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições de meus pais". Ele tinha vivido assim até aquele momento na estrada de Damasco, quando o Senhor Jesus Cristo o colocara no ministério para o qual, como ele agora sabia, fora separado desde o ventre de sua mãe. Ele recebera sua missão e sua mensagem diretamente do Senhor Jesus Cristo. Ah, sim, mas Paulo sabia mais até do que isso. Ainda que tivesse ingressado no ministério dessa maneira singular, e pudesse se descrever a si mesmo aos coríntios como um "nascido fora do tempo", ele todavia diz que o evangelho que lhe fora dado era exatamente o mesmo evangelho que fora dado aos outros, os outros apóstolos que tinham estado com o Senhor nos dias da Sua carne. Quando falou com os outros apóstolos em Jerusalém, descobriu que estava pregando exatamente o mesmo evangelho que eles pregavam. Embora tivesse vindo a ele daquela forma individual como uma revelação direta, os outros estavam pregando exatamente a mesma coisa que ele pregava.

Aí, então, está a base da autoridade — e essa é a autoridade que o apóstolo pleiteia aqui, a qual é a base do seu argumento. Ele diz que não é uma questão de um homem dizer isto e outro dizer aquilo. Ele assevera que não está pregando simplesmente o que ele pensa. A mensagem fora dada a ele da mesma forma que fora dada aos outros apóstolos, e portanto todos estavam proclamando a mesma coisa. O teste da verdade é sua apostolicidade. Ela se conforma à mensagem apostólica? Esse é o teste e esse é o padrão. O evangelho de Jesus Cristo, como é anunciado e ensinado no Novo Testamento, reivindica nada menos do que o fato que vem com a autoridade do Senhor Jesus Cristo, que o deu a esses homens, e eles, por sua vez, o pregaram e escreveram. Aqui está o único padrão. E continua sendo o único padrão.

Não temos qualquer padrão à parte do Novo Testamento, e portanto devemos tomar cada ponto de vista e examiná-lo à luz disto. Ao fazer isso, vamos descobrir que essas doutrinas falsas sempre se revelam erradas em uma de duas maneiras. A primeira é que podem conter menos do que a mensagem apostólica. Vamos ser perfeitamente claros sobre o fato de que há uma mensagem apostólica,  uma  verdade  positiva  com  que  todos  os  apóstolos concordaram e que todos eles pregaram — aí está a mensagem definitiva. Doutrina falsa pode ser culpada de declarar menos que a mensagem integral, e deixar certas coisas de fora. Isso é algo que desencaminha muitos cristãos hoje em dia. Se um homem proclama algo que é patentemente errado, eles podem ver imediatamente que ele está errado, mas não vêem com a mesma rapidez que uma doutrina pode estar errada porque proclama menos que a mensagem apostólica, porque não diz certas coisas. Pode ser menos que o verdadeiro ensino sobre a pessoa do Senhor Jesus Cristo. Pode negar Sua encarnação, ou pode negar as duas naturezas contidas em Sua pessoa; pode negar o nascimento virginal, ou os aspectos miraculosos da Sua vida, ou a Sua ressurreição física literal. Apre­senta-se como cristã, mas é menos que a verdade. Ou pode negar num certo ponto a obra de Cristo. Pode negar o fato que "aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus". Pode descrever a morte de Cristo como sendo nada mais que uma extraordinária demonstração do amor. Pode negar que Deus puniu os nossos pecados "em Seu corpo no madeiro". Isso era o que os apóstolos pregavam, que Cristo "morreu por" nossos pecados. Portanto, se uma doutrina ou ensino deixa isso de fora, é menos que a verdade apostólica. É a mesma coisa com o novo nascimento. Tantas vezes essa doutrina não é ensinada, e sua absoluta necessidade não é enfatizada. Tam­bém encontramos o mesmo problema até no que se refere à conduta e ao comportamento, ainda que o Novo Testamento enfatize isso. Há muitos que dizem crer em Cristo, mas então deduzem que, se alguém crê em Cristo está seguro, e não importa o que ele faz. Entretanto, esse é o terrível erro do antinomianismo. O Novo Testa­mento ensina a importância das obras quando declara que a "fé som obras é morta". Deixar qualquer um destes aspectos de lado, é não corresponder à mensagem apostólica.

O segundo perigo, como já vimos, é o oposto, o perigo de acrescentar à verdade, e, ao mesmo tempo que reconhecendo a mensagem apostólica como correta, sugerir que algo precisa ser acrescentado a ele. E esta é a questão que estamos tratando aqui. Mais uma vez, devemos lembrar nosso princípio inicial, que cada doutrina deve ser testada pelos ensinos do Novo Testamento, não por emoções, nem por experiências ou por resultados, nem pelo que outras pessoas estão dizendo ou fazendo. Este é o teste-apostolicidade, isto é o ensino do Novo Testamento.

Outro bom teste é este: sempre seja cuidadoso em averiguar as implicações de um ensino ou doutrina. Isso é o que o apóstolo faz no segundo capítulo desta Epístola aos Gálatas. Esta nova dou­trina não parecia estar negando a Cristo, no entanto o apóstolo demonstra claramente que estava negando o Senhor no ponto mais vital. Ele até mesmo teve que fazer isso com o apóstolo Pedro em Antioquia. Pedro, que recebera uma visão com respeito a Cornélio (Atos, capítulo 10), e aparentemente tinha entendido estas coisas muito claramente, foi subsequentemente influenciado pelos judeus e sentiu que não podia comer com os gentios, mas somente com os judeus. Paulo teve que resistir Pedro "na cara, porque era repreensível", e teve de dizer-lhe claramente que ao fazer aquilo ele estava negando a fé. Pedro não queria fazer aquilo, não queria negar sua salvação por Cristo através da fé somente. Mas alguém teve que mostrar a Pedro claramente a posição que estava assu­mindo, e levá-lo a entender que por suas ações ele estava anun­ciando que algo mais era necessário além da fé em Cristo. Vamos então sempre ponderar as implicações do que dizemos e fazemos. Vou dar-lhes uma ilustração do que quero dizer. Uma senhora cristã com quem certa vez discuti esta questão, estava tendo problemas com isso. Ela não conseguia entender como certas pessoas incré­dulas, que viviam uma vida muito correta, não eram cristãs. Ela disse: "Não sei como você pode dizer que não são cristãs — olhe para suas vidas". Ela era uma boa cristã, mas estava tendo proble­mas para entender isso. Mas eu disse: "Espere um pouco; você não vê o que está inferindo, não percebe o que está dizendo? Você realmente está dizendo que estas pessoas são tão boas e tão nobres e tão morais que o Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, não é necessário em seu caso, que a vinda do Filho de Deus do céu foi desnecessária para elas. Ele não precisaria ter morrido na cruz, pois elas podem se reconciliar com Deus através de suas boas obras e de sua vida exemplar. Você não pode ver que isso é negar a fé — que na verdade, com esse argumento, você realmente está dizendo que o próprio Cristo e Sua morte não são necessários?" E ela percebeu, ao avaliar as implicações daquilo que estava dizendo. Portanto, não avaliem as coisas pelo seu valor aparente apenas, mas verifiquem as suas implicações.

A terceira coisa que, para mim, parece ser uma característica especial desta heresia como está exposta na Epístola aos Gálatas é que ela sempre é um acréscimo à revelação. "Este ensino sobre a circuncisão não é parte da mensagem de Cristo", Paulo está dizendo. "Essas pessoas pregam isso, mas não o receberam de Cristo. Quando o Senhor me deu a mensagem, Ele não disse que todos deviam ser circuncidados. Isto é algo à parte da Sua revelação, é um acréscimo à   mensagem apostólica". Vocês vão descobrir que esta é sempre a característica do tipo de heresia que estamos consi­derando. Considerem, por exemplo, as reivindicações dos católicos romanos. A igreja católica romana declara que ela é tão inspirada hoje como eram aqueles primeiros apóstolos, mas ela não tem base bíblica para dizer isso. Ela mesma afirma isso, e ela mesma faz a reivindicação de que esta revelação subsequente foi dada à Igreja. Esta reivindicação é feita abertamente; não há qualquer sutileza nela, e quer dizer que a própria igreja católica tem tanta autoridade quanto a Palavra de Deus. Afirmam que as declarações do papa falando "ex catedra" são tão inspiradas como as epístolas do Novo Testamento, e são um acréscimo a essa revelação. Mas isso não é um lalo só em relação à igreja católica romana, pois há muitos outros que fazem a mesma reivindicação.

Antes de aceitar qualquer um destes ensinos, sempre tomem tempo para ler a respeito das suas origens. Quase sempre vocês vão descobrir que alguém teve uma "visão" — na grande maioria das seitas, foi uma mulher. Leiam a história, e descobrirão que a doutrina está baseada na autoridade de uma mulher. O apóstolo declarou que "não permitia que a mulher ensinasse". Mas isso não faz diferença para essas pessoas. Não só isso, em geral a mulher leve uma visão e recebeu alguma revelação especial. "Ah", dizem, "não vão achar isso nas Escrituras, mas foi dado diretamente a esta pessoa por Deus". Estão acrescentando algo à revelação, é algo mais, alguma coisa mais avançada. Eles declaram que seus funda­dores eram tão inspirados quanto os apóstolos de Jesus Cristo, e baseiam sua autoridade nisso. Apliquem esse teste à maioria desses movimentos, e descobrirão que é verdade. Mas lembrem-se que também é verdade a respeito de muitos que ainda estão nas fileiras da Igreja Cristã, e que no entanto têm esse ponto de vista. "Ah, sim", dizem, "aqueles homens eram inspirados, mas os homens hoje ainda são inspirados. Não negamos a inspiração, mas dizemos que é possível acrescentar à verdade. Os primeiros séculos não esgotaram a revelação da verdade, e coisas especiais estão sendo revelados a nós através dos nossos avanços em conhecimento e instrução neste século vinte". Isso é acrescentar à revelação. Sig­nifica que as Escrituras não são mais suficientes; as descobertas da sabedoria moderna têm que ser acrescentadas. Mas ao permitirmos esses acréscimos da mente moderna e da perspectiva atual, na verdade estamos reivindicando uma revelação adicional.

Outra característica invariável é que este ensino ou doutrina sempre enfatiza alguma coisa em particular, dando-lhe grande proe­minência. No caso dos gálatas era a circuncisão. Mas o que quer que seja, esta idéia central é a origem do ensino especial, é o ponto em torno do qual gira todo o movimento. Eles reconhecem que uma pessoa pode ser um verdadeiro crente, mas precisa de uma certa coisa adicional — a observância do sábado, ou o batismo por imersão, ou falar em línguas, ou cura, ou alguma outra coisa. Algo mais sempre é essencial. É isso que importa —- dizem. Sempre ocupa uma posição proeminente, no centro, e acabamos nos tornando mais conscientes disso do que de Cristo, por causa da ênfase que lhe dão. Não podem justificar o movimento à parte dessa coisa específica, circuncisão, ou o que quer que possa ser.

O terceiro ponto é que todas estas coisas são um acréscimo a Cristo. O católico romano diz: "É claro que cremos em Cristo, mas você também precisa crer na igreja, precisa crer na virgem Maria, precisa crer nos santos, precisa também crer no sacerdócio, além de crer em Cristo". De um ponto de vista puramente doutri­nário e ortodoxo, eu me sinto mais próximo a muitos católicos romanos do que a muitos que fazem parte das fileiras do protestan­tismo, mas onde eu me afasto, e devo me afastar deles, é que acrescentam algo ao que é vital — é Cristo, mais a igreja, mais a virgem Maria, mais os padres, mais os santos, e assim por diante. Do seu ponto de vista, Cristo apenas não é suficiente, e Ele não está colocado, em toda a Sua glória singular, no centro. E é assim com todos os outros. Proclamam que precisamos ter uma experiência especial, precisamos ter alguma crença especial sobre "observar dias", como o apóstolo o expressa, ou precisamos observar certos ritos ou sacramentos. Então, é sempre "Cristo, mais alguma coisa", alguma coisa que não podemos deixar de ter.

Então precisamos demonstrar, em quarto lugar, que esta dou­trina errada sempre acaba de alguma forma levando à conclusão que ter fé apenas não é suficiente. O apóstolo deixa isso claro: "Porque em Jesus Cristo nem a circuncisão nem a incircuncisão tem virtude alguma; mas sim a fé que opera por caridade" (Gálatas 5:6). Essas doutrinas falsas estão sempre nos ensinando que nós mesmos precisamos fazer alguma coisa; precisamos acrescentar algo, é necessária alguma ação da nossa parte, ou temos que permitir que algo seja feito a nós. Fé não é suficiente. Não vivemos pela fé, e a justificação não é pela fé somente. Precisamos realizar certas obras, precisamos fazer algo especial antes que possamos receber esta grande experiência da salvação. Mas de acordo com Paulo, dizer tais coisas significa que "caimos da graça".

Mas por último quero enfatizar uma coisa — e dou graças a Deus por este último teste, porque tem sido de tanta ajuda para mim. Crer em tal doutrina sempre leva à negação da experiência cristã anterior. "Qual é, logo, a vossa bem-aventurança?" Vocês sabem o que ele quer dizer com isso. Na verdade ele está dizendo: "Gálatas insensatos, gálatas amados, vocês realmente estariam me dizendo que o que experimentaram quando estive entre vocês pela primeira vez, não teve qualquer valor, foi tudo inútil? Onde está a vossa bem-aventurança? Oh gálatas insensatos, quem vos fascinou?

Vocês sabem que todos os que são das obras da lei estão debaixo da maldição. Vocês sabem que receberam o Espírito. Voltem — lembrem-se que receberam o Espírito. Vocês O receberam pelas obras da lei? Naturalmente que não! Acaso não percebem que estão negando sua própria experiência passada?"

Todas essas doutrinas falhas são culpadas disso. É o que o apóstolo salienta, no relato de sua discussão com Pedro. Disse a Pedro que ele estava renegando sua experiência passada. Isso também é o significado de seu argumento sobre Abraão. Pois Abraão foi abençoado, não depois de sua circuncisão, mas antes dela, por­tanto não se pode afirmar que a circuncisão é essencial, e dizer isso é negar esta experiência. E quantas vezes tive que usar esse argu­mento! Estes ensinos errados são sutis e atraentes, e fazem-nos sentir que precisamos daquilo, e que só pode estar certo. Então de repente nos lembramos deste argumento a respeito da experiência, e ele nos detém. Trazemos à lembrança homens como George Whitefield e John Wesley, por exemplo, que sem dúvida foram cheios do Espírito de uma forma assombrosa, extraordinária e poderosa — notáveis santos de Deus e que estão entre os Seus maiores servos; e no entanto descobrimos que eles observavam o primeiro dia da semana, e não o sétimo; que não foram batizados de uma forma única ou especial, não há registro de que tenham falado em línguas, e não dirigiam reuniões de cura e assim por diante. Vamos afirmar que todos esses homens careciam de conhe­cimento, sabedoria e discernimento? Não percebem que essas novas doutrinas que fazem tantas reivindicações na verdade negam algu­mas das maiores experiências cristãs através dos tempos? Estão virtualmente dizendo que a verdade veio somente através deles, e que por dezenove séculos a Igreja andou em ignorância e em trevas. Isso é monstruoso. Precisamos entender que essas coisas devem ser testadas desta forma: "Qual é, logo, a vossa bem-aventurança?"

Isso me traz à minha última palavra, e o teste final, que é o seguinte. Depois de passar por todos esses testes, vocês estão prontos para se unir a mim e dizer o que o apóstolo disse no versículo 17 do último capítulo desta Epístola aos Gálatas: "Desde agora nin­guém me inquiete; porque trago no meu corpo as marcas do Senhor Jesus". Que significa isso? O que o apóstolo está dizendo, na verdade, é: "Mas longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo". "Parem de falar comigo sobre circuncisão, não estou interessado. Parem de me falar sobre os guardadores do sábado, ou qualquer outra seita. Parem de me falar sobre todas essas coisas que são tidas como essenciais, se alguém quer ser um verdadeiro cristão. Eu não as quero. "Longe esteja de mim gloriar-me", eu não vou me gloriar em nada e em ninguém, em nenhuma doutrina especial — em nada a não ser o Senhor Jesus Cristo, e nEle somente. Ele é suficiente, porque através dEle "o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo".

Para deixar isso bem claro, quero dizer que não vou me gloriar nem sequer na minha ortodoxia, porque até mesmo ela pode se transformar numa armadilha, se eu a tornar num ídolo. Vou me gloriar somente na bendita Pessoa por quem tudo isto foi feito, com quem eu morri, com quem fui sepultado, com quem estou morto para o pecado e vivo para Deus, com quem eu ressuscitei, com quem estou assentado nas regiões celestiais, por quem o mundo está crucificado para mim e eu estou crucificado para o mundo. Qualquer coisa que queira se colocar no centro que é dEle, qualquer coisa que queira se acrescentar a Ele, eu a rejeito. Conhecendo a mensagem apostólica com respeito a Jesus Cristo, em sua integridade, sua simplicidade e sua glória, longe de nós acrescentar qualquer coisa a ela. Que nos regozijemos nEle em toda a Sua plenitude — e nEle somente.

 

14. CANSADO DE FAZER O BEM

"E não nos cansemos de fazer bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não tivermos desfalecido".

Gálatas 6:9

A Bíblia é um livro que foi escrito para ajudar o povo de Deus neste mundo. Isso é verdade especialmente a respeito das epístolas do Novo Testamento, que foram todas escritas por causa de alguma situação que havia surgido nas igrejas; e pensar em termos de um homem que está escrevendo uma tese em seu escritório não é a maneira certa de compreender a mensagem delas. Pelo contrário, o apóstolo Paulo era um evangelista, um homem que viajava muito, e em geral escrevia uma epístola por causa de algum problema que havia surgido, e para ajudar as pessoas a compreender a causa dos seus problemas e a maneira de vencê-los. Ele lidava com as possíveis causas à medida que os problemas surgiam, e podemos ter certeza de que não existe uma causa de depressão espiritual hoje que não tenha sido tratada nas epístolas. As doenças da vida espiri­tual são sempre as mesmas, nunca variam. As aparências podem ser diferentes, a forma particular em que os problemas se manifestam pode variar, mas a causa de tudo sempre é o diabo, e ele nunca varia seu objetivo final.

Encontramos aqui mais uma causa da depressão espiritual, e ela nos relembra imediatamente de algo que precisamos salientar de novo, como já fizemos várias vezes, e isso é a terrível astúcia do nosso adversário. Temos visto a maneira como o diabo tenta os cristãos e os torna miseráveis ao sugerir doutrinas falsas. Obser­vamos a maneira astuta como ele coloca no centro coisas que não deviam estar lá, ou nos oferece algum tipo novo de religião, a qual é uma mistura de várias religiões. Mas agora estamos num clima totalmente diferente. O apóstolo não está preocupado com o perigo de nos desviarmos através de heresias ou erros, ou de aceitarmos alguma seita acreditando que ela seja a fé verdadeira. Não é com isso que ele está preocupado. Aqui, o diabo faz algo muito mais sutil, pois aparentemente não há nada de errado. O que acontece é que as pessoas simplesmente ficam cansadas e fatigadas, mesmo que estejam caminhando na direção certa. Aqui temos o caso da­queles que estão no caminho certo, estão encarando a direção correta. Estão se movendo na direção certa, mas o problema é que estão se arrastando pelo caminho, cabisbaixos, e o espetáculo que apresentam é a antítese do que um cristão deveria ser nesta vida e neste mundo.

Talvez a melhor maneira de considerar esta tendência de ficar­mos cansados, seja examinando-a de forma geral primeiro. É o que poderíamos chamar o "perigo de meia- idade". É algo que é verdadeiro não somente a "respeito da vida cristã, mas da vida em geral. É o problema da meia-idade, e é algo que se evidencia em todos os aspectos, e que teremos de enfrentar mais cedo ou mais tarde, à medida que envelhecemos. Muita ênfase é dada à juventude hoje em dia, e considerável atenção também aos idosos. Mas estou convencido de que o período mais difícil da vida é a meia idade. Há certas compensações na juventude, e também na velhice, que parecem estar completamente ausentes no período da meia idade. É algo que todos nós temos que enfrentar. À medida que envelhecemos, nossa elasticidade tende a desaparecer e percebemos uma diminuição das nossas energias e das nossas forças. É algo com que todos estamos familiarizados, se não pela experiência, pelo menos de ouvir outros falando a respeito. E não seria também verdadeiro a respeito do trabalho ou da profissão de um homem? E se constitui num problema para muitas pessoas. Significa que já ultrapassaram o estágio de desenvolver e edificar suas vidas, e que atingiram um certo nível. Por muitas razões um desenvolvimento ulterior é impossível. Essas pessoas atingiram um certo nível, e a dificuldade está em permanecer e prosseguir nesse nível sem o estí­mulo que as levou até lá. Isso já aconteceu a muitos homens de negócios, os quais acharam ser muito mais fácil estabelecer uma empresa do que mantê-la estável. Tudo parece estar a seu favor quando estão na fase de edificação, mas quando chegam a um certo nível e perdem o estímulo que os levou até lá, descobrem que é muito difícil manter a posição. Eu poderia continuar ilustrando isso até o infinito, do ponto de vista da vida natural, e das nossas experiências no trabalho, na profissão e nos demais aspectos da vida. Se vocês lerem as biografias dos homens mais bem sucedidos que o mundo já conheceu, em qualquer campo, descobrirão que todos concordam que esse nível foi o mais difícil das suas vidas. Isso também é verdade na vida religiosa ou espiritual. É o estágio que se segue à experiência inicial, aquela experiência onde tudo era novo, surpreendente, maravilhoso e claro, o estágio em que estávamos constantemente fazendo novas descobertas, que pare­ciam não ter fim. Mas repentinamente tomamos consciência do fato de que elas realmente parecem ter chegado ao fim, e nos acostumamos à vida cristã. Não nos surpreendemos mais com as coisas como no início, porque estamos familiarizados com elas e as conhecemos. Toda aquela emoção de novas descobertas que nos animava nos primeiros estágios parece ter desaparecido subitamen­te. Parece que nada mais está acontecendo, nenhuma mudança, avanço ou desenvolvimento. Isso pode ser verdade a respeito de nós, individualmente, pode ser verdade a respeito do nosso trabalho, pode ser verdade a respeito da nossa igreja, pode ser verdade a respeito de todo um grupo de pessoas, pode ser verdade a respeito de um país ou de uma sociedade. Estou inclinado a compreender, e sei que é verdade, que esse fenômeno particular é um dos maiores problemas ligados ao trabalho missionário no estrangeiro, e qual­quer missionário que já passou algum tempo fora do país, saberá exatamente o que quero dizer. É algo que tende a acontecer quando Já passaram pela fase de novidades e emoção e o estímulo de fazer algo que nunca fizeram antes, e se acomodam numa rotina, fazendo a mesma coisa dia após dia. Então surge essa provação, e não a superam mais com aquele ímpeto inicial, que parecia ajudá-los a superar tudo nos primeiros estágios.

É desta condição que o apóstolo trata aqui. Talvez, para piorar a situação, haja problemas e dificuldades causadas por outras pes­soas, e que se acrescentam às pressões já existentes. Essas pessoas talvez façam coisas que não deviam, e assim nos ofendem. Como resultado de tais provocações, dificuldades e problemas, surgindo num período tão crítico da nossa vida, nós nos cansamos de fazer o bem. Assim, frequentemente chega um ponto em que o desenvol­vimento e o progresso parecem ter cessado, e caímos numa espécie de depressão em que não sabemos se o trabalho está se movendo, ou para frente ou para trás. Tudo parece estar paralisado, e nada acontece. Ora, não há dúvida que alguns desses cristãos gálatas haviam atingido esse ponto. A posição revelada pela nossa análise no capítulo anterior — as doutrinas falsas, heresias, e assim por diante — sem dúvida tinham algo a ver com isso.

Podemos dizer então que estamos considerando, não tanto pessoas que estão cansadas do trabalho, mas que estão cansadas no trabalho: "Não nos cansemos de fazer o bem". Essa é a situação. O que diremos sobre ela e o que faremos a seu respeito? Quero dizer, antes de mais nada, que não há aspecto deste grande pro­blema da depressão em que negativos Sejam mais importantes do que nesta ocasião particular. Quando nos encontramos nesta condi­ção de fadiga, ou cansaço, antes de fazer qualquer coisa positiva, há certos pontos negativos que são de importância capital. O pri­meiro é este: o que quer que sinta a respeito disso, nem sequer considerem a sugestão que virá a vocês de todas as direções — não tanto das pessoas, mas do seu interior, das vozes que parecem estar falando em torno de vocês — não as ouçam quando começam a sugerir que deveriam desistir, que deveriam se entregar ou largar tudo. Essa é a grande tentação que nos assalta neste ponto. O desa­nimado diz: "Estou enfadado e cansado; isso tudo é demais para mim". E não há outra coisa a dizer diante disso a não ser esta negativa — não ouça. Irmãos, vocês sempre devem começar com esses "nãos" no nível mais baixo; e esse é o nível mais baixo. Devem dizer a si mesmos: "não importa o que aconteça, não vou desistir". Vocês não devem desistir ou se entregar.

Mas talvez essa não seja a maior tentação. A maior é aquela que vou colocar na forma do meu segundo preceito negativo: não se resignem ante a situação. Ainda que haja pessoas que entregam sua demissão, dizendo: "Eu desisto", isso não é o que acontece com a maioria. O perigo que corre a maioria das pessoas neste ponto é o de resignar-se, e perder o ânimo e a esperança. Não entre­gam os pontos, mas prosseguem nessa condição sem esperança e sem energia. Para ser mais exato, o perigo neste ponto é dizer: "Bem, perdi aquele algo especial que eu tinha, e obviamente nunca vou recuperá-lo. Mas vou prosseguir, por lealdade, cumprindo mi­nha obrigação. Perdi a alegria que tinha, ela se foi, e sem duvida" foi para sempre. Tenho que suportar isto, vou me resignar ao meu destino, não vou ser um desertor, não vou virar as costas, vou prosseguir, embora me sinta tão desesperançado com tudo isto, vou prosseguir fazendo o melhor que puder". Esse é o espírito de resignação, ou estoicismo, se preferir; prosseguir suportanto tudo.

Esse é o maior perigo de todos; e mais uma vez digo que não é perigoso somente no nível espiritual, fato que mais nos preocupa, mas também em cada outro plano da vida. Podemos trabalhar dessa forma em nossa profissão, podemos viver a nossa vida dessa ma­neira, em certo sentido. Estamos na verdade dizendo a nós mesmos: "as horas douradas já passaram, os dias de grandeza pertencem ao passado. Talvez nunca mais venha a experimentar isso, mas mesmo assim vou em frente". De certo modo parece haver algo maravilhoso nisso, parece haver algo heróico nisso, mas notem que estou me expressando de forma negativa. Na verdade, afirmo que é uma tentação do diabo. Se ele conseguir fazer com que o povo de Deus perca a esperança, isso o deixará imensamente feliz. E a julgar pelo que vejo hoje em dia, este talvez seja o maior perigo confrontando a Igreja Cristã, o perigo de fazer uma coisa num espírito formal e apenas por obrigação. Seguindo em frente, é verdade, mas cami­nhando penosamente e com dificuldade, em vez de andar como deveríamos.

Isto me conduz à minha terceira e última negativa, e reco­nhecerão esta, mais uma vez, como algo extremamente perigoso. O terceiro perigo de chegarmos a esta condição de cansaço e fadiga, é recorrer a estimulantes artificiais. Vocês conhecem essa tentação. Ela tem sido a ruína de muitos homens que edificaram e estabele­ceram uma profissão ou uma empresa, e depois entraram nesse estágio de cansaço e fadiga. Estão conscientes que não possuem mais o vigor e a energia de outrora, e não sentem, como se diz, "no topo do mundo". Não sabem o que devem fazer a respeito, e então alguém sugere que o que precisam é de algum tipo de tônico. Todo o perigo ligado ao consumo de bebidas alcoólicas surge neste ponto. Muitos homens que terminaram a vida como bêbados, começaram com um traguinho de álcool para ajudá-los a recobrar o ânimo; e muitas pessoas recorrem a drogas e muitas outras coisas exatamente da mesma maneira.

Mas isto tem uma aplicação espiritual muito importante e vital. Tenho visto pessoas na igreja lidando com esse cansaço e fadiga espiritual dessa mesma maneira. Tentam criar algum tipo de estímulo ou adotam novos métodos. Dizem que precisam estimu­lar-se para sair daquilo, então inventam algum projeto novo. Vocês já não viram isto muitas vezes nos anúncios que ficam do lado de fora de certas igrejas? Não podem pensar imediatamente em certas igrejas que estão sempre anunciando coisas novas ou achando novas atrações? Tais igrejas estão obviamente vivendo de estimu­lantes artificiais, e tudo é feito com esta idéia em mente. O pastor ou alguma outra pessoa responsável disse: "Estamos numa rotina, estamos ficando estagnados. Que podemos fazer a respeito? Bem, vamos fazer isto ou aquilo. Assim providenciaremos trabalho e atividade, haverá um novo interesse". Ora, esse tipo de pensamento na vida espiritual ou na vida de uma igreja, só pode ser comparado a uma coisa no nível natural, isto é, ao homem que recorre à bebida ou às drogas para despertar seu entusiasmo ou provocar alguma emoção. Obviamente esta é uma tentação muito sutil e perigosa. Parece tão plausível, parece ser exatamente o que precisávamos, e no entanto, é claro, o terrível engano atrás disso, num sentido cien­tífico, é que na verdade estamos nos desgastando cada vez mais. Quanto mais um homem depende do álcool, ou das drogas, mais ele esgota a sua energia natural. Além disso, à medida que ele se esgota mais e mais, ele vai precisar de mais álcool ou mais drogas; e assim o processo continua de maneira crescente. E acontece exata­mente o mesmo na área espiritual.

Estas, então, são três negativas de suprema importância. Pas­semos agora aos pontos positivos. Devemos evitar essas armadilhas perigosas, mas não há mais nada que podemos fazer? Aqui estamos, cansados de fazer o bem, mas o que podemos fazer? A primeira coisa a fazer, é uma auto-avaliação. Comecem por examinar a si mesmos. Não digam que seu estado de melancolia não tem jeito. Não recorram a estimulantes. Parem e digam para si mesmos; "Bem, por que estou cansado? Qual é a causa da minha fadiga?" Certamente é uma pergunta óbvia. Não se deve tratar uma condição antes de diagnosticá-la; não se aplica um remédio antes de saber a causa do problema. É perigoso aplicar um tratamento antes de saber a causa; deve-se diagnosticar primeiro. Portanto, vocês devem pri­meiro perguntar a si mesmos a razão da sua fadiga, e por que estão nessa condição.

Há muitas respostas possíveis para esta pergunta. Podem estar nessa condição simplesmente por excesso de trabalho físico. Podem estar cansados no trabalho, e não do trabalho. É possível que os homens trabalhem demais — quer seja na área natural ou espiritual — sobrecarregando assim seus recursos físicos e desgastando suas energias. Se continuarem trabalhando demais, ou sob pressão, estão destinados a sofrer. E é lógico que, se esta for a causa do problema, o remédio que precisam é tratamento médico. Temos um exemplo marcante disso no Velho Testamento. Lembram-se do ataque de depressão espiritual que Elias sofreu, após o seu heróico esforço no Monte Carmelo? Ele se sentou debaixo de uma árvore e teve pena de si mesmo. Mas o que ele realmente precisava era descanso e alimento; e Deus providenciou as duas coisas. Deu-lhe alimento e descanso antes de lhe dar auxílio espiritual.

No entanto, suponhamos que essa não seja a causa do proble­ma. Outra coisa pode ser a causa, e isso é que com frequência temos vivido a vida cristã, ou realizado o trabalho cristão através da nossa energia carnal. Pode ser que tenhamos feito tudo com nossas próprias forças, em vez de operar no poder do Espírito. Talvez tenhamos trabalhado com uma energia puramente carnal, humana e física. Talvez tenhamos tentado fazer o trabalho de Deus por nós mesmos; e é claro que, se tentamos fazer isso, só poderá haver um resultado, seremos esmagados, pois é um trabalho muito elevado. E assim precisamos nos auto-examinar, para ver se há algo errado na maneira como vimos trabalhando. É possível para um homem pregar através da sua energia carnal, mas se o fizer, logo estará sofrendo de exaustão e depressão espiritual.

Aqui, porém, surge uma pergunta ainda mais importante e muito mais espiritual. Devo perguntar a mim mesmo por que tenho feito este trabalho, e qual realmente tem sido a minha motivação. Fui ativo na obra, gostei de fazer o trabalho, mas agora percebo que ele se tornou um peso. E agora tenho que responder a pergunta: qual realmente foi minha motivação para fazê-lo todo esse tempo? É uma pergunta terrível, porque talvez seja a primeira vez que a fazemos. Achamos tudo normal, e supomos que nossos motivos sempre foram puros. Mas talvez descubramos que não eram. Algu­mas pessoas trabalham simplesmente por amor à emoção e entusias­mo do trabalho. Não há qualquer dúvida a respeito. Já vi pessoas envolvidas ativamente no serviço cristão porque havia um certo grau de emoção envolvido nele. Existem pessoas que não conse­guem ser felizes a não ser que estejam envolvidas em algo, e não percebem que o fazem simplesmente pela emoção que a atividade oferece. Se vivemos dessa maneira, é certo que logo acabaremos exaustos e fatigados, e também é certo que nosso maior inimigo interno vai entrar em cena — o nosso "eu". Na realidade o que vínhamos fazendo tinha apenas o propósito de agradar o nosso "eu", de satisfazer a nós mesmos, e de podermos dizer a nós mes­mos: "Como você é maravilhoso, e quanta coisa você faz!" O "eu" diz que somos importantes. Temos que admitir que não estávamos sendo motivados a trabalhar para a glória de Deus, e sim para a nossa própria glória. Podemos dizer que não queremos louvor, e que "a Deus seja a glória", mas gostamos de ver resultados, e gostamos de vê-los publicados, e assim por diante — o "eu" entrou em ação, e ele é um terrível mestre. Se estamos trabalhando para satisfazer e agradar nosso "eu" de qualquer maneira ou forma, o resultado sempre será fadiga e cansaço. Como é importante ques­tionarmos a nós mesmos sobre a motivação do nosso trabalho!

Minha última pergunta, e ela é muito importante, é esta: será que este trabalho tem sido minha motivação para prosseguir? Em vez de ser o trabalho de Deus, será que ele se tornou um tipo de motivação na minha vida? Tenho certeza de que há muitas pessoas que sabem o que quero dizer com isso. Um dos maiores perigos e problemas da vida espiritual é viver das nossas próprias ativida­des. Em outras palavras, a atividade não está ocupando o lugar que devia, apenas como algo que fazemos, mas tornou-se a fonte da nossa motivação para prosseguir. Algumas das maiores tragédias que tenho visto, têm sido as vidas de homens que não perceberam que por anos viveram na dependência da força e energia das suas atividades. Elas eram a sua motivação, e quando ficaram doentes, ou velhos demais para continuar a trabalhar, ficaram deprimidos. Não sabiam o que fazer consigo mesmos, porque haviam vivido de suas próprias atividades. Suponho que esta é uma das tendências mais óbvias da nossa civilização. É certamente uma das maiores causas de neurose dos dias atuais. Infelizmente o mundo ficou tão louco, que somos impulsionados por esse terrível ímpeto e correria de vida, e em vez de estarmos no controle, isso tudo está nos controlando. E finalmente acaba nos deixando exaustos e depri­midos.

Quero expor alguns dos principais elementos desse processo vital de auto-análise. Permitam-me enfatizar o princípio. Se vocês se sentem fatigados e cansados em qualquer área de suas vidas neste momento, eu lhes peço que perguntem a si mesmos: "por que estou cansado? Qual tem sido a minha motivação nas coisas que faço?" Examinem suas atitudes em relação a suas vidas e ativi­dades particulares que estão exercendo, e descubram como se sen­tem a respeito da vida cristã. Por que vocês ingressaram nela? O que ela é? E assim por diante. Parem e façam a si mesmos essas perguntas.

Mas quero apresentar a questão de maneira positiva. Há alguns grandes princípios aqui, de acordo com o ensinamento do apóstolo, que devemos reconhecer se quisermos ser curados desta condição. Em primeiro lugar, existem fases na vida cristã, assim como na vida natural. O Novo Testamento fala sobre bebês em Cristo, e fala sobre crescimento. João escreveu na sua Primeira Epístola aos "filhinhos", aos "mancebos" e aos "pais". Isto é um fato, é bíblico. A vida cristã não é sempre a mesma; há um começo, uma continuação, e um final. E por causa dessas fases, existem muitas variações. As emoções, talvez, são o que temos de mais variável. É de se esperar que as emoções sejam fortes no início, e em geral é o que acontece. Com frequência, cristãos ficam can­sados e fatigados porque certas emoções desapareceram. O que não entendem é que eles cresceram, ficaram mais velhos. Porque não são mais como eram antigamente, pensam que algo está errado. Mas à medida que crescemos e nos desenvolvemos espiritual­mente, certas mudanças devem ocorrer, e todas essas coisas obvia­mente fazem uma diferença em nossa experiência. Quero colocar isso na forma de uma ilustração. Outro dia vi uma criança pequena, de uns quatro anos de idade, creio, saindo de casa com a mãe, e fui atraído pela maneira como ela saiu daquela casa. Ela não andava — ela pulou para fora, saltitou e saltou para fora como uma ove­lhinha; mas eu notei que a mãe caminhou para fora da casa. Vamos nos assegurar que não estamos falhando em perceber que algo semelhante acontece na vida espiritual. A criança tem energia em abundância e ainda não aprendeu a controlá-la. Na realidade, a mãe possuía muito mais energia que a criança; no entanto, à pri­meira vista podia parecer que tinha menos, porque caminhou para fora de forma tranquila e quieta. Mas sabemos que isso não é verdade. O nível de energia do adulto é muito maior, ainda que pareça ser maior na criança; e muitas pessoas caem em fadiga e depressão porque não entendem esta experiência de "reduzir a marcha", e pensam que perderam algo vital. Precisamos reconhecer que existem essas fases, esses estágios de desenvolvimento na vida espiritual. Às vezes a simples compreensão desse fato resolverá o problema.

Agora passemos para o segundo princípio. "Não nos cansemos de fazer o bem". Lembrem-se que diz "fazer o bem". Temos a tendência de esquecer isso. Dizemos: "Ah, é sempre a mesma coisa, semana após semana". Essa é nossa atitude para com a nossa vida, e esse tipo de atitude leva à fadiga. Mas Paulo diz: "Quero lem­brá-los de que estão vivendo a vida cristã, e a vida cristã é uma vida de fazer o bem. Se encararem a vida cristã como uma tarefa monótona, estarão insultando a Deus. O que é nossa vida cristã? Esta é uma pergunta extremamente importante, e com frequência respondemos que é evitar coisas que outras pessoas fazem; que é andar pelo caminho estreito, e dizer não a isto, e fazer aquilo. É ir à igreja. É uma tarefa imensa, é uma vida muito dura, esta em que nos encontramos! Não seria esta a nossa atitude, com demasiada frequência? E a resposta a isso é que estamos envolvidos em "fazer o bem". Se viermos a considerar qualquer aspecto desta vida cristã meramente com uma tarefa e um dever, e se precisamos estimular-nos, e ranger os dentes para suportá-la, eu diria que estamos insul­tando a Deus, tendo esquecido a própria essência do cristianismo. A vida cristã não é uma tarefa. Ela é a única vida digna de ser chamada vida. Somente ela é reta, santa, pura e boa. É o tipo de vida que o próprio Filho de Deus viveu. É ser parecido com o próprio Deus na Sua santidade. É por isso que devo vivê-la. Não é resolver simplesmente fazer um esforço maior para continuar. De modo algum; devo lembrar a mim mesmo que esta é uma vida boa e plena, é "fazer o bem". E como ingressei nesta vida? Esta vida sobre a qual eu agora estou reclamando e murmurando, e achando dura e difícil? Quero enfatizar esta pergunta. Como vocês ingressaram na vida cristã? Aqui estamos, neste caminho estreito; como viemos do caminho largo? O que fez a diferença? Estas são as perguntas; e há somente uma resposta. Viemos do caminho largo para o caminho estreito, porque o Filho unigênito de Deus deixou o céu e veio a esta terra para a nossa salvação. Ele Se despojou de todas as insígnias de Sua eterna glória, e humilhou-Se a Si mesmo, nascendo como um bebê numa manjedoura. Ele suportou a vida deste mundo por trinta e três anos; cuspiram nEle e O injuriaram. Espinhos foram enterrados em Sua fronte e Ele" foi pregado a uma cruz, para levar o castigo do meu pecado. Foi assim que passei de uma posição para a outra, e se eu alguma vez, por uma fração de segundo que seja, questionar a grandeza e a glória e o milagre e  a nobreza desta caminhada na  qual estou envolvido, estarei cuspindo nEle. Fora com tal coisa! "Não nos cansemos de fazer o bem". Meu amigo, se você pensa na sua vida cristã com esse espírito de má vontade, ou a encara como uma tarefa ou um dever fatigante, volte para o começo, retroceda até aquela porta estreita pela qual passou. Olhe para o mundo na sua perversidade e pecado, contemple o inferno para o qual estava levando você, e então olhe para a frente e reconheça que você está envolvido na mais gloriosa .campanha de que um homem poderia participar, e que está trilhan­do o caminho mais nobre que o mundo já conheceu.

Quero, todavia, me aprofundar ainda mais. O princípio seguin­te é que esta nossa vida aqui na terra é apenas uma vida prepara­tória. "Não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não tivermos desfalecido". Será que se sentem can­sados e fatigados, e às vezes sentem que tudo é demais para vocês? Voltem atrás e olhem para as suas vidas, e as coloquem no con­texto da eternidade. Parem e perguntem a si mesmos o que tudo isso significa. É nada mais que uma escola preparatória. Esta vida é uma ante-sala da eternidade, e tudo que fazemos neste mundo é uma antecipação da nossa vida futura. Nossas maiores alegrias nada mais são que os primeiros frutos e o ante-gozo da alegria eterna que nos espera. Como é importante que nos lembremos disso! É o peso da rotina da vida diária que nos abate. Talvez comecem o dia dizendo: "Bem, mais um dia pela frente!" Ou um pastor talvez diga: "Mais um domingo, e hoje preciso pregar duas vezes". Que coisa horrível é dizer isso! O peso da rotina muitas vezes pode nos levar ao ponto de dizer isso. Mas a solução é contemplar a situação toda em seu contexto glorioso, e dizer: "Estamos a caminho da eternidade, e esta vida é apenas uma escola preparatória". Que diferença isso faz! "Continuem a fazer o bem", diz Paulo, "por causa da certeza da colheita que virá". "Não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não tivermos desfale­cido". A partir do momento que compreendem algo da verdade sobre a colheita, não mais desfalecerão.

"O mundo é demais para nós", e isso é o nosso problema. Estamos  mergulhados  demais em  nossos problemas.  Precisamos aprender a olhar para a frente, em antecipação das glórias eternas que brilham ao longe. A vida cristã é experimentar os primeiros frutos da grande colheita que está por vir. "As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam". "Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra". Captem em suas mentes e corações algo da glória do lugar para onde estão indo. Esse é o antídoto, essa é a cura. A safra que vamos colher é certa, é segura. "Portanto, meus amados irmãos", Paulo escreveu aos coríntios, "sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor". Prossigam com a sua tarefa, sejam quais forem os seus sentimentos; continuem com o seu trabalho. Deus dará o crescimento, mandará a chuva da Sua graciosa misericórdia conforme a nossa necessidade. A colheita será abundante. Aguardem-na. "A seu tempo ceifaremos". E acima de tudo, consideremos o Mestre para quem trabalha­mos. Lembremo-nos como Ele sofreu e como foi paciente. Observem novamente o poderoso argumento de Hebreus capítulo 12: "Ainda não resististes até o sangue". Ele resistiu. Ele desceu do céu, e suportou tudo; e como foi paciente! Quão fatigante foi a Sua vida! Ele passou a maior parte do Seu tempo com pessoas comuns e às vezes mesquinhas, que não O compreenderam. Mas Ele prosse­guiu firme, sem qualquer reclamação. Como conseguiu isso? "Pelo gozo que lhe estava proposto suportou a cruz, desprezando a afron­ta". Foi assim que Ele o fez. Considerando o gozo que Lhe estava proposto — Ele sabia que o dia da coroação estava se aproximando. Viu a seara que iria ceifar, e, vendo isso, foi capaz de não olhar para as outras coisas, porém passou por elas em glória e triunfo. E nós temos o privilégio de podermos ser como Ele. "Sé alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me". É isso! Talvez até tenhamos a honra de sofrer por amor ao Seu nome. Paulo diz algo extraordinário em Colossenses 1:24. Ele declara que se considera privilegiado por "cumprir o resto das aflições de Cristo" em seu próprio corpo. Quem sabe vocês e eu, como cristãos, estamos tendo o mesmo privilégio, sem o saber? Bem, lembrem-se do seu abençoado Mestre, olhem para Ele, e peçam-Lhe perdão por terem-se entregue à fadiga e ao cansaço. Olhem para as suas vidas mais uma vez com esta perspectiva, e com certeza descobrirão que estão cheios de uma nova esperança, uma nova força, um novo poder. Não mais precisarão de estimu­lantes artificiais ou qualquer coisa assim, pois vão achar que estão novamente animados com o privilégio e o gozo da vida cristã, e detestarão a si mesmos por terem murmurado e reclamado, e pros­seguirão ainda mais gloriosamente, até que um dia venham a ouví-lO dizer: "Bem está, bom e fiel servo, entra no gozo do teu Senhor". "Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo".

 

15. DISCIPLINA

"E vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência temperança, e à temperança paciência, e à paciência piedade, e à piedade amor fraternal; e ao amor fraternal caridade".

II Pedro 1:5-7

Aqui neste primeiro capítulo de sua segunda epístola, o após­tolo Pedro trata de mais uma causa de depressão espiritual. De fato, seu objetivo ao escrever a carta era tratar desse problema. Ele escreve para animar pessoas que estavam desanimadas, e desa­nimadas a tal ponto que estavam quase duvidando da fé que tinham aceito. Isso é algo que pode surgir como um perigo muito real neste estado de depressão espiritual; e se a condição persiste e continua, invariavelmente leva a dúvidas e incertezas, e a uma tendência de olhar atrás, para a vida da qual fomos libertos.

Felizmente o apóstolo nos dá uma descrição muito exata deste problema. Ele nos conta, indiretamente, uma série de coisas a respeito das pessoas a quem está escrevendo. Por exemplo, após fazer sua exortação, ele diz no versículo oito: "Porque, se em vós houver e abundarem estas coisas, não vos deixarão ociosos nem estéreis no conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo". Ele diz: "Se estas coisas existirem em vós" — farão de vocês o que não são no momento. Ou seja, "farão com que não sejam ociosos nem estéreis no conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo" — impli­cando que a condição deles era "ociosa e estéril". Mas não é só isso; ele diz que eles eram cegos, "nada vendo ao longe, havendo-se esquecido da purificação dos seus antigos pecados". Na verdade, há Uma insinuação de que eles estavam tropeçando, pois ele lhes diz que, se fizessem essas coisas, "nunca jamais tropeçariam"; e não só isso, mas se fizessem essas coisas, tornariam "cada vez mais firme" a sua vocação. É claro que eles não tinham muita certeza a respeito destas coisas na ocasião em que o apóstolo lhes escreveu.

Não há dúvida de que eles eram cristãos. Precisamos repetir isso, porque há pessoas que têm noções tão falsas e sem base nas Escrituras, as quais julgam que alguém que se enquadra nos termos em que o apóstolo Pedro descreve estas pessoas não pode realmente ser um cristão. Mas obviamente estas pessoas eram cristãs, ou ele não estaria escrevendo para elas. Muitas pessoas têm uma idéia errônea do cristão, como alguém que está sempre vivendo no topo da montanha, acima das circunstâncias; e há alguns que pensam que se alguém não está lá o tempo todo, não é realmente um cristão. Tal idéia sobre o cristão não tem qualquer fundamento nas Escrituras. Essas pessoas eram cristãs, mas estavam infelizes, vivendo uma vida ineficaz, que parecia não levar a lugar algum, e não estavam ajudando outras pessoas. Não só isso, mas não eram muito produtivas no tocante às suas próprias vidas, e sua fé não lhes dava gozo nem segurança. Eram ociosas e estéreis. Estas pa­lavras realmente as descrevem — ineficazes para ajudar os outros, com falta de conhecimento e compreensão. Elas não estão cres­cendo no conhecimento do Senhor. Aqui está disponível este tre­mendo conhecimento e compreensão, mas não os possuem, não têm crescido neles, são estéreis nesse sentido. Na verdade, apesar de não haver dúvidas quanto ao fato de serem cristãs, estas pessoas parecem ter muito pouco que demonstrasse isso. E também parecem não compreender o significado da sua conversão, parecem ter esquecido o fato de que foram purificadas dos seus pecados de outrora, e estão vivendo como se isso nem tivesse acontecido. Agora, todas essas coisas inevitavelmente caminham juntas. Quando há uma falta de entendimento e de produtividade neste aspecto da compreensão, vocês sempre encontrarão um fracasso corres­pondente na vida, tanto no que se refere à sua própria santidade, como também à sua utilidade e valor para outras pessoas.

Essa é a descrição que o apóstolo dá destas pessoas, e natu­ralmente todos estamos bem familiarizados com esse tipo. É o tipo de indivíduo que não podem negar ser um cristão, apesar de sua vida pouco demonstrar isso. Ele parece estar preso em superficia­lidades e misérias, e não dá a impressão de ser nada do que o Senhor disse que um cristão seria quando recebesse o Espírito Santo: "Rios de água viva correrão do seu interior". Não, a im­pressão que ele dá é de esterilidade e improdutividade, nada está sendo produzido por ele, e parece não estar dando nada a outros. Sua vida é fraca e não parece estar em crescimento ou desenvolvi­mento. Sua vida toda parece totalmente ineficaz, e ele vive aba­tido, infeliz e tomado de dúvidas. Parece incapaz de dar uma razão da esperança que há nele; diz crer, e no entanto está sempre nessa posição em que o próprio fundamento de sua fé parece sujeito a ser abalado. Ora, essa é a condição da qual o apóstolo trata aqui, e que estamos considerando.

A primeira coisa que devemos considerar é a causa desta condição. Como é que alguém pode chegar a tal estado? Há cris­tãos que correspondem a esta descrição. Por que são assim? Por que não são como outros cristãos, cujas vidas são dinâmicas, efe­tivas e que transmitem vida? Qual é a diferença? Essa é a pergunta, que devemos considerar, e parece estar bem claro que o apóstolo aqui diz a essas pessoas que existe apenas uma causa de todas as manifestações desta depressão — a falta de disciplina. Esse é o problema real, uma completa ausência de disciplina e ordem em suas vidas. Mas, felizmente para nós, o apóstolo não se limita a uma declaração genérica. Os escritores do Novo Testamento nunca se limitam a generalidades; eles sempre prosseguem, salientando os detalhes, considerando o problema ponto por ponto; e felizmente o apóstolo faz isso neste caso particular.

Por que essas pessoas não têm disciplina? Por que essa frou­xidão, essa indolência é tão aparente em suas vidas? A primeira causa parece ser que elas têm uma perspectiva errada da fé. Encontro isso no começo do quinto versículo, onde ele diz: "E vós também, pondo nisto mesmo toda diligência, acrescentai à vossa fé" — complemente a sua fé, guarneça sua fé com as coisas que ele passa a mencionar. Temos aqui uma sugestão de que eles tinham uma perspectiva errada da fé. Isso é algo muito comum. Parece que essas pessoas tinham uma espécie de visão mágica da fé; em outras palavras, tinham a idéia de que, enquanto alguém tivesse fé, tudo estaria bem, sua fé operaria automatica­mente em sua vida, e tudo que ele precisa fazer como cristão é crer na verdade. Precisa aceitar a fé, e tendo feito isso, tudo o mais acontecerá automaticamente; ele dá um passo, toma uma decisão — qualquer que seja a expressão usada — e isso é tudo que é necessário. Eu o descrevo como uma visão quase mágica da fé,  ou uma concepção automática  da fé.  Mas  talvez possa expressá-lo de forma diferente. Muitas vezes existe o que podemos descrever como uma visão mística da fé. Isso certamente explica o problema de muitas pessoas. O que quero dizer com visão mís­tica, é uma concepção de fé que sempre pensa nela como um todo. Colocando-o de forma negativa, quero dizer que tais pessoas não compreendem que a fé precisa ser complementada pela virtude, ciências, temperança, paciência, piedade, amor fraternal e caridade, como o apóstolo mostra aqui. Elas têm somente uma fórmula, e essa fórmula é que uma pessoa deve estar sempre "olhando para o Senhor", e enquanto "olhar para o Senhor" não precisa fazer mais nada. Elas dizem que qualquer tentativa de fazer outra coisa e voltar à posição de "salvação pelas obras". Então, se um cristão tem um problema em sua vida cristã, simplesmente dizem: "Olhe para o Senhor, permaneça nEle".

Este é um erro muito comum. Irmãos, vocês podem encon­trá-lo numa forma muito interessante em expositores que tomam este ponto de vista. Ao expor certas passagens das Escrituras onde muita ênfase é colocada em detalhes, eles obviamente caem em dificuldades, porque do ponto de vista deles não devemos nos preocupar com detalhes. Há somente uma coisa a ser feita, é "permanecer no Senhor e olhar para Ele", e enquanto fizermos isso, não há mais nada a fazer. Esta é uma causa extremamente produtiva deste tipo de depressão espiritual e letargia de que esta­mos tratando. Tais pessoas passam o tempo todo nesta condição infeliz. Tentam colocar em prática esta exortação de "permanecer no Senhor" e "olhar para o Senhor", e por algum tempo tudo parece estar bem, mas então, de alguma forma, algo acontece de errado, e parecem não estar mais "permanecendo", e mais uma vez sentem-se infelizes. O problema volta, e assim passam sua vida toda tentando manter esta posição, a única que reconhecem. Ora, obviamente isto é um assunto muito importante, e precisamos ter certeza de que nossa visão da fé é a visão do Novo Testamento, e que compreendemos o que o apóstolo quer dizer, ao afirmar que devemos suplementar, ou complementar nossa fé com certas coisas.

A segunda causa geral desta condição é, sem dúvida, nada mais que mera preguiça ou indolência, nada mais que frouxidão, ou, nas palavras do apóstolo, falta de diligência. Ele diz: "Pondo nisto toda diligência". Ele quer ter certeza que entendemos isso bem, e o repete no décimo versículo. Creio que todos sabemos algo a esse respeito. Existe uma espécie de indolência ou preguiça geral que aflige a todos nós, e que é indubitavelmente produzida pelo próprio diabo. Já não percebemos, todos nós, que no que se refere à vida espiritual, parece que não temos o mesmo zelo e entusiasmo, nem aplicamos a mesma energia dedicada à nossa vocação secular, nossa profissão ou negócio, nossas distrações, ou algo que nos interessa? Todos já não percebemos que podemos estar trabalhando com muita disposição, mas se paramos para um tempo de oração, repentinamente nos sentimos extremamente can­sados? Não é curioso que sempre ficamos com sono e cansados quando vamos ler a Bíblia? Estamos plenamente convencidos de que é algo puramente físico, que realmente nada há que possamos fazer, mas é certo que a partir do momento em que começamos a nos dedicar às coisas espirituais, imediatamente vamos nos de­frontar com esse problema de indolência e preguiça que nos afeta, por mais alertas e dispostos e cheios de energia que pudéssemos estar previamente.

Ou observem isso quando assume a forma de procrastinação. Queremos ler a Bíblia, queremos estudá-la, queremos ler um co­mentário; mas não sentimos vontade no momento, achamos que não é certo fazer estas coisas quando não temos vontade, e que devemos esperar até que estejamos nos sentindo melhor, e que haverá uma oportunidade melhor mais tarde. Ou não temos tempo, ou não temos oportunidade. Quantas vezes todos nós passamos por esse tipo de experiência! Mas então, quando chega a hora certa, por estranho que pareça, ainda não conseguimos nos dedicar àquilo. Está fora de discussão que a maioria de nós está vivendo vidas que carecem de disciplina, ordem e organização. Talvez nunca antes a vida fosse tão difícil para os cristãos como na época atual. O mundo e as organizações da vida ao nosso redor tornam as coisas quase impossíveis; a coisa mais difícil é pôr em ordem nossas próprias vidas e administrá-las. A razão disso não é que estas coisas externas nos compelem, mas se não reconhecemos o perigo de nos desviarmos, se não assumimos uma posição contra isso, já teremos falhado sem saber. Há tantas coisas que nos dis­traem. Começamos com o jornal da manhã (e muitas pessoas co­meçam com dois em vez de um), e então, depois de algumas horas chega o jornal (ou jornais) da tarde. Essas coisas são lançadas sobre nós. Naturalmente não somos obrigados a comprar os jornais, mas estão aí, e todo mundo faz isso. Talvez seja entregue à nossa porta. É colocado à nossa frente, e quase sem percebermos, está ocupando o nosso tempo. Não preciso deter-me com todos estes detalhes — o rádio, a televisão, as coisas que temos de fazer, reuniões para assistir, incidentes aqui e ali, problemas que surgem. O fato é que cada um de nós está lutando por sua vida no presente, lutando para controlar, governar e viver sua própria vida. Todos os pastores concordarão comigo quando eu digo que não há nada que nos é dito com mais frequência hoje em dia do que isto: "Eu não sei o que fazer, parece que não tenho tempo de ler a Bíblia e meditar como eu gostaria".

A simples resposta para isso é que não passa de falta de dis­ciplina, uma falha em organizar nossas vidas. Não adianta reclamar a respeito das circunstâncias. Sempre voltamos para isso, e não há necessidade de discutir o assunto — todos temos tempo! Se temos tempo para fazer tantas outras coisas, então temos tempo, e o segredo do sucesso nesta área é tomar esse tempo e insistir que seja dedicado às questões da alma, em vez de ser gasto com tantas outras coisas. Essa é a segunda causa do problema — uma falta de disciplina em nossas vidas, uma falha em organizar, comandar e controlar nossas vidas como no fundo do coração sabemos que deveríamos fazer.

Sendo essa a causa, passemos agora para o tratamento. Qual é o tratamento prescrito pelo apóstolo Pedro para esta condição? É simplesmente o inverso da causa do problema. Em primeiro lugar e antes de tudo, ele enfatiza "toda a diligência". "Façam o máximo de esforço" diz outra tradução, É isso — "fazer o má­ximo de esforço" — à luz destas coisas, à luz de Suas grandíssimas e preciosas promessas que nos foram dadas, para que por elas nos tornemos participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção que pela concupiscência há no mundo — por causa de todas estas coisas, façam todo o esforço, ponham toda a diligência, ou, como está traduzido no décimo versículo, "procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação". Aqui, então, está o tratamento:

o  exercício de disciplina e diligência.

Talvez a melhor maneira de esclarecer este assunto seja colo­cando-o num contexto histórico. Eu desafio vocês a lerem a vida de qualquer santo que já adornou a vida da Igreja, sem perceber imediatamente que a grande característica da vida dessa pessoa era ordem e disciplina. É invariavelmente a característica universal e marcante da vida de todos os grandes homens e mulheres de Deus.

Leiam sobre Henry Martyn, David Brainerd, Jonathan Edwards, os irmãos Wesley, e Whitefield — leiam seus diários. Não importa a que ramo da Igreja pertenceram — todos disciplinaram suas vidas e insistiram na necessidade disso; e obviamente é algo bíblico e absolutamente essencial. "É necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe", diz o autor da Epístola aos Hebreus (Hebreus 11:6); sim, e também "que é galardoador dos que o buscam diligentemente". Precisamos ser diligentes em buscar a Deus. "Mas", alguém dirá, "esse tipo de ensino não esta­ria aprovando a justificação pelas obras?" Veja como o diabo é sutil! "Você certamente está voltando à heresia católica romana, e à forma católica de devoção!" A resposta a isso é que foi o apóstolo Pedro, o apóstolo inspirado, que se esforçou para nos lembrar que todas as Escrituras são inspiradas, e é ele que também nos diz que devemos acrescentar todas essas outras coisas à nossa fé, e exercer toda a diligência ao fazer isso. Sejam mais zelosos, sejam ainda mais ativos, ele diz. E é claro que não há nenhuma contradição nisso. O erro da justificação pelas obras está em confiar na disciplina de sua própria alma para salvar sua alma; mas o oposto de confiar em suas obras, não é não fazer coisa alguma, é fazer tudo sem colocar a sua confiança no que faz. Não são as obras que estão erradas, é colocar sua fé nelas, confiar em suas próprias obras. Mas que perigo sutil temos aqui! Creio que um dos maiores perigos no protestantismo hoje em dia, especialmente nos círculos evangélicos, é que, em nosso medo do erro da justifi­cação pelas obras, temos declarado que as obras não têm qualquer importância. Argumentamos que a fé somente é que conta, e porque sou um homem de fé, não importa o que eu faço e minha vida pode ser completamente indisciplinada. De maneira nenhuma! O oposto de uma confiança falsa nas obras não é indolência, falta de disciplina e não fazer nada; é ser diligente, e mais que dili­gente, ser zeloso, e "acrescentar à sua fé". Mas ao mesmo tempo devem compreender que suas ações nunca serão suficientes, e sim que Deus certamente é galardoador daqueles que O buscam com diligência. Tantas pessoas dizem que dariam tudo para ter um vestígio que fosse do conhecimento que os santos tiveram. "Se eu pudesse ter esse mesmo gozo, essa alegria que tiveram! Eu daria o mundo inteiro em troca disso, por que não posso ter essa expe­riência?" — perguntam. A resposta é que nunca realmente a bus­caram. Observem as vidas desses homens, e o tempo que dedicaram à leitura da Bíblia e à oração e várias outras formas de auto-avalia­ção e exercícios espirituais. Eles creram no exercício da disciplina da vida espiritual, e foi por causa disso que Deus os recompensou, dando-lhes aquelas manifestações graciosas de Si mesmo, e aquelas experiências estupendas que aqueceram seus corações.

Então, colocamos em primeiro lugar a necessidade de disci­plina e ordem. Na verdade, vejo-me tentado neste ponto a tratar do assunto em detalhes. Se concordamos com a importância de reivindicar tempo e organizar nossa vida diária, devemos insistir a todo custo que certas coisas precisam ser feitas. Em outras pa­lavras, se realmente creio que a Bíblia é mais importante para mim do que o jornal matutino, devo ler a Bíblia antes de ler o jornal.

O que quer que eu tenha deixado de fazer, isso deve ser feito. Devo ser fiel em meu tempo de oração, devo gastar tempo em meditação; outras coisas talvez fiquem por fazer, mas isso tem que ser feito. Este é o começo, é uma ilustração de um elemento de ordem sendo incorporado à minha vida. Tantas pessoas falham, e se tornam infelizes e deprimidas simplesmente porque não assu­miram controle de si mesmas. Vocês mesmos precisam fazer estas coisas; ninguém mais as fará por vocês — na verdade, ninguém mais pode fazê-las por vocês. Se não prestarem atenção a essas coisas em detalhes, continuarão sendo cristãos deprimidos, podem ter certeza! Sejam diligentes, façam todo esforço, sejam mais que zelosos — cuidem disso a qualquer preço.

O segundo princípio é que devemos suplementar a nossa fé. "Acrescentai à vossa fé", diz a tradução que eu li; "suplemente a sua fé", diz outra tradução; ainda outra diz, "guarneça a sua fé". Os estudiosos nos dizem que a palavra "guarnecer" é uma palavra grega usada em conexão com a representação de um drama. Signi­fica providenciar uma espécie de orquestra ou coro. A represen-

tação é guarnecida com esta orquestra, este coro, para que possa ser completa. Era algo que rematava a apresentação, tornando-a perfeita. Esse é o significado da palavra: acrescentar, guarnecer, suplementar, tornar a coisa completa — uma fé integral.

O que se deve acrescentar à fé? O apóstolo nos dá uma lista, a qual eu quero citar aqui. A primeira coisa que ele diz é: "Acres­centai à vossa fé a virtude". O que ele quer dizer com isso? Aqui temos novamente uma palavra cujo sentido mudou com o decorrer do tempo. Não significa virtude no sentido que comumente usamos a palavra hoje em dia, pois cada um destes itens é uma virtude em si. Seu sentido aqui é de energia, energia moral; significa poder, vigor. Isto é muito importante. A condição da qual o após­tolo está tratando aqui é este tipo de vida cristã lânguida, indis­ciplinada e frouxa, e ele começa lembrando-os disso: "Agora que têm fé, vocês crêem na verdade, e não há dúvida quanto a isso, vocês têm essa mesma fé preciosa que está em nós". Bem, o que mais eles precisam fazer a respeito? Ele lhes diz que em acréscimo à fé que têm, eles precisam deixar de ser lânguidos. Em outras palavras, acrescentem à sua fé essa energia moral, assumam con­trole de si mesmos, não se arrastem através da vida cristã, andem por ela como devem, com vigor, acrescentem à sua fé força e poder. Não sejam cristãos debilitados que sempre dão a impressão de que estão ao ponto de ter uma vertigem e desmaiar, e que podem falhar a qualquer momento. Não sejam lânguidos, diz o apóstolo, guarneçam a sua fé com virilidade e poder — virtude.

Como essa exortação é necessária! Comparem, façam um contraste do cristão típico e comum com a pessoa típica e comum do mundo. O cristão declara estar interessado em coisas espirituais, no reino de Deus, e num conhecimento de Deus e de Cristo. Esta é sua reivindicação. Ele diz que tem fé, e é isso que a fé significa. Comparem-no com a pessoa típica do mundo, que está interessada em jogos e nas coisas que acontecem no mundo dos esportes. Vocês percebem a diferença; não há nada lânguido a respeito da pessoa que está interessada nessas coisas. Observem seu entusiasmo e sua energia. Então observem o cristão em contraste, como ele é débil, sempre com uma expressão de pesar. E a razão é que esse tipo de cristão falhou em "acrescentar à sua fé". Ele diz que é um cristão e que crê na verdade, mas falhou em "guarnecer" a sua fé.

"Acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência". Isso não quer dizer simplesmente conhecimento de doutrina. Temos isso numa certa medida — de outro modo nem teríamos fé. Isto signi­fica um tipo de discernimento, significa entendimento, significa iluminação. Não sabemos tudo no momento em que cremos em Cristo, não entendemos todas as coisas; isso é só o começo. Há constantes apelos e exortações nas epístolas do Novo Testamento para que cresçamos em entendimento — "para que o vosso amor cresça", diz Paulo, "em entendimento". Isso é o que o apóstolo Pedro está dizendo neste ponto. Ele diz que os cristãos não devem parar na fé. Já são cristãos, mas precisam entender a vida cristã. Devem compreender os perigos sutis que os cercam, precisam compreender algo da sutileza de Satanás. Precisam de compreensão: por isso, "acrescentai à vossa fé" — esforcem-se por ter esse dis­cernimento, essa compreensão, essa iluminação. Como isso é essen­cial — que nos entreguemos à leitura diligente das Escrituras e de livros a respeito das Escrituras e das doutrinas da fé. Vocês nunca compreenderão a fé verdadeiramente se não se dedicarem a essas coisas. Às vezes é um processo doloroso, e certamente exige toda a disciplina que pudermos aplicar. Um estudante nunca se torna perito em qualquer assunto sem trabalho árduo. Aquela conversa a respeito do tipo de homem que tem uma inteligência tão brilhante que nunca precisa estudar ou se esforçar, e depois recebe o primeiro lugar nos exames, é puro mito. Isso não acontece — é uma mentira. Sem conhecimento — e nunca se pode ter conhecimento se não se esforçar — a pessoa nunca terá verdadeira compreensão, verdadeiro discernimento. Isso requer disciplina e esforço; na verdade, guarnecer sua fé com conhecimento, ou ciên­cia, é trabalho muito árduo.

O próximo item é. temperança, que significa domínio próprio, e aqui não significa simplesmente que controlamos a nossa vida em geral. Esta temperança é uma coisa muito mais detalhada e particular do que isso. Significa que precisamos controlar cada aspecto da nossa vida. Talvez signifique que tenhamos que con­trolar até o que comemos e bebemos. Os médicos constantemente estão nos dizendo que muitas pessoas estão numa condição pre­cária de saúde física porque comem ou bebem demais. Não há dúvida de que isso é verdade, e há uma tendência crescente a isso no mundo moderno. É lançado sobre nós, de maneira atraente, e há pessoas que sofrem de cansaço e lentidão muitas vezes por simples falta de temperança ou domínio próprio. Não controlam seus apetites, seus desejos, suas paixões; comem demais, ou bebem demais, ou até mesmo dormem demais. O meio de se obter uma boa visão disso é ler as vidas dos santos, ler seus diários, ler o que eles faziam e como controlavam suas vidas. Como temiam essas coisas, e como compreendiam claramente que tinham de evitá-las a todo custo!

Paciência significa perseverança para continuar mesmo em meio ao desânimo. Temos que fazer isso — nós mesmos. Precisa­mos acrescentar isso à nossa fé. Não significa apenas olhar passi­vamente para o Senhor; nós mesmos precisamos exercer paciência e perseverança, e continuar fazendo isso dia após dia.

Depois vem a piedade, que neste ponto sem dúvida significa preocupação e cuidado em manter a nossa comunhão com Deus. Então os dois últimos itens da lista se referem à nossa atitude para com os nossos semelhantes. Amor fraternal significa nosso relacionamento para com nossos irmãos em Cristo. E caridade significa amor a todos os homens, mesmo aqueles que não estão na fé. Precisamos observar estas coisas em detalhes.

Depois de nos levar através desses vários passos e estágios, o apóstolo agora nos encoraja a fazer tudo o que ele nos disse. Qual é o encorajamento? Antes de tudo, ele nos lembra do que nós somos. Ele nos diz que nos tornamos "participantes da natureza divina". Se vocês acham que estou pregando uma doutrina dura, e que estou reduzindo a vida cristã a uma tarefa árdua, se sentem hesitações e dúvidas, quero lhes fazer algumas perguntas. Vocês percebem o que são como cristãos? Percebem que são "partici­pantes da natureza divina" e que o Filho de Deus veio do céu à terra e foi até a cruz do Calvário para salvá-los, para libertá-los do mundo e suas concupiscências? "Havendo escapado da corrup­ção que pela concupiscência há no mundo." Concupiscência é a causa dessa corrupção. Vão permanecer nessa condição? Não que­rem escapar dela? Percebam, ele diz, que Cristo morreu para que pudessem ser tirados dela, e que realmente foram tirados dela. Por isso, então, "ponde nisto toda a diligência". "Certamente", Pedro pergunta, "vocês não esqueceram que foram purificados dos seus pecados, certamente não esqueceram que morreram com Cristo, e que portanto estão mortos para a lei e mortos para o pecado?" "Como viveremos para o pecado, nós os que para ele morremos?" Essa é a forma que Paulo o expressa. Esse também é o argumento de Pedro. Precisamos compreender isso, e é um extraordinário encorajamento ao enfrentarmos a batalha da fé.

No entanto, não devemos parar aí. O apóstolo diz que também devemos compreender que somente fazendo estas coisas é que tere­mos grande alegria e felicidade no presente. "Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição". E vocês podem tornar firme a sua vocação fazendo estas coisas. Nunca serão felizes de outra forma. Não basta dizer: "A Palavra de Deus diz — todo aquele que nele crê — eu creio, portanto. . ." Isso é verdade, mas nem sempre satisfaz. Está correto racionarmos assim, e faz parte da nossa segurança, porém se pensarmos que nossa segurança se limita a isso, estaremos cometendo um grande engano. Se quisermos tornar firme a nossa vocação e eleição, de­vemos ser diligentes em todas estas coisas que o apóstolo men­ciona, e se o fizermos, teremos grande alegria, paz e felicidade. Saberemos qual é nossa posição, e colheremos os primeiros frutos da glória que nos aguarda.

"Fazendo isto, nunca jamais tropeçareis". Nada é mais desa­nimador do que nossas quedas e tropeços. Tropeçamos, e então nos sentimos miseráveis e infelizes, e lá vem a depressão que faz com que nos sintamos totalmente sem esperança a respeito de tudo. Bem, o que devemos fazer é evitar as quedas, os tropeços — e se fizermos essas coisas, jamais tropeçaremos. Isso não significa que estamos sendo guardados, sem fazer coisa alguma. Ele diz: "Façam estas coisas, e vocês não tropeçarão". Então, reunam toda a dili­gência para fazer estas coisas, e não tropeçarão.

E finalmente — e como isso é glorioso ! — "porque assim", ele diz, "vos será amplamente concedida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo". Ele não está falando sobre salvação aqui, porque estas pessoas já são salvas; ele fala sobre a entrada para a glória. Observem a palavra "concedida". Ele diz que a entrada será concedida a nós. Essa é exatamente a mesma palavra que anteriormente foi traduzida como "acrescen­tar". Vocês "concedera" essas coisas à sua fé, e a entrada será concedida a vocês. Isso funciona reciprocamente. Em outras pala­vras, "se fizerem estas coisas", Pedro diz, "se disciplinarem as suas vidas, se organizarem as suas vidas e guarnecerem a sua fé dessa maneira e com todas essas várias qualidades, vocês não tropeçarão no presente, e terão grande alegria e felicidade resul­tantes de sua segurança, e quando o fim chegar, deixarão esta vida com suas velos cheias pelas gloriosas brisas celestes. Não haverá nenhuma hesitação em sua entrada, não será feita com velas ras­gadas; será uma entrada ampla a que será concedida a vocês. Não precisarão dizer, como Lord Tennyson:

E que não haja ranger do madeirame Quando em me fizer ao mar.

Porque não será uma saída para um mar desconhecido, mas antes, um fim das tormentas da vida e uma entrada triunfante no porto do nosso eterno descanso e glória na presença de Deus.

Se somos cristãos infelizes e deprimidos, é muito provável que seja devido a essa falta de disciplina. Portanto, vamos ser posi­tivos e ativos, pondo toda diligência, vamos suplementar a nossa fé, sem termos medo. Vamos esclarecer as nossas idéias e então colocá-las em prática, e complementar a nossa fé com esta força e vigor, com este conhecimento, com esta temperança, com esta paciência, piedade, amor fraternal e caridade. Vamos começar a desfrutar da nossa vida cristã e ser úteis aos outros. Vamos crescer na graça e no conhecimento, e assim atrairemos todos que nos conhecem, para que se unam a nós nesta fé preciosa, e para que experimentem a bem-aventurança destas grandes e preciosas pro­messas que nunca falham.

 

16. PROVAÇÕES

"Em que vós grandemente vos alegrais, ainda que agora importa, sendo necessário, que estejais por um pouco contristados com várias tentações, para que a prova da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro que perece e é provado pelo fogo, se ache em louvor, e honra, e glória na revelação de Jesus Cristo".

I Pedro 1:6-7

Havendo considerado várias razões por que um cristão sofre de depressão espiritual, vamos agora examinar a causa específica que o apóstolo Pedro trata nesta passagem. Não há dúvida de que o seu objetivo ao escrever esta carta, era lidar exatamente com este problema. Ele começa por lembrar estas pessoas de certas coisas, e então vai direto ao assunto. Ele o apresenta falando sobre a grande salvação: "Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança incorruptível, incontaminável, e que se não pode murchar. . . Em que vós", ele diz, "grandemente vos alegrais, ainda que agora importa, sendo necessário, que estejais por um pouco contristados com várias tentações". Essa é sua descri­ção destas pessoas. Elas "grandemente se alegravam" nessa bendita esperança, e no entanto estavam "por um pouco contristados com várias tentações". Aqui novamente, como já vimos em várias ins­tâncias anteriores, a descrição parece ser bastante contraditória. Ele está descrevendo pessoas que ao mesmo tempo se alegram, e estão contristadas. Mas também já vimos que não há nada de contraditó­rio nisso. Podemos, se quisermos, chamar isso de paradoxal, mas não é contraditório. Na verdade, a condição do cristão como é descrita no Novo Testamento parece conter sempre esses dois elementos; estes cristãos a quem o apóstolo escreve estavam ao mesmo tempo "se alegrando grandemente" e também "contristados".

Este é um ponto que devemos esclarecer muito bem, antes de prosseguirmos. Existe uma visão superficial do cristianismo que con­sideraria isso impossível; é a perspectiva a respeito da vida cristã que simplesmente declara que todos os problemas se foram e que agora "sou feliz o tempo todo". Tais pessoas não conseguem aceitar a descrição de Pedro, nem por um momento sequer, e duvidam que qualquer cristão que está "contristado" seja realmente um cristão. Existe uma linha de pensamento a respeito da vida cristã que dá a impressão de que, uma vez tomada a decisão, ou uma vez conver­tido, não há mais ondas nem tempestades no mar da vida. Tudo vai ser perfeito, sem qualquer problema daí para a frente. Bem, a simples resposta a essa visão do cristianismo, é que isso não é o cristianismo do Novo Testamento. Esse é o tipo de coisa que as seitas sempre ofereceram, e que a psicologia moderna está ofere­cendo. Não há nada por que devemos agradecer mais a Deus, do que a honestidade das Escrituras. Elas nos dão a verdade a respeito de nós mesmos e a respeito da vida neste mundo.

Temos que começar, portanto, por compreender que isto é algo estipulado sobre o cristão. Ora, não vamos nos enganar quanto ao significado dessa palavra "contristado". Contristado significa estar entristecido; significa que estamos perturbados. Não significa ape­nas que temos que sofrer certas coisas, mas que esse sofrimento nos entristece. Essas coisas nos perturbam e realmente nos tornam infelizes. Pedro então descreve estas pessoas como apresentando estas duas características ao mesmo tempo, alegres e no entanto contristadas. Encontramos isso frequentemente nas Escrituras. To­memos como exemplo perfeito disso a série de paradoxos que o apóstolo Paulo usa para descrever a si mesmo em II Coríntios capítulo quatro: "Em tudo somos atribulados mas não angustiados;. perplexos, mas não desanimados; perseguidos mas não desampa­rados; abatidos, mas não destruídos; trazendo sempre por toda a parte a mortificação do Senhor Jesus" — e assim por diante. Tais afirmações parecem ser mutuamente exclusivas a princípio, mas não são. Apenas fazem parte do paradoxo da vida cristã. Isto é o mais espantoso no cristão, que ele pode experimentar estas duas coisas ao mesmo tempo. "Se isso é verdade", alguém dirá, "onde está o problema?" O problema está em que falhamos em manter o equilíbrio, e temos a tendência de permitir que essa tristeza nos oprima e realmente nos desanime. O perigo não está em ficarmos temporariamente perturbados com isso, mas em que isso se torne uma atitude predominante da qual não nos consigamos livrar, e que, como resultado, leve as pessoas que nos observam a perceber mais o lado de tristeza em nós do que a atitude de alegria. O que estamos realmente dizendo, e o que precisamos com­preender e lembrar, é que o cristão não é alguém que se tornou imune ao que está acontecendo à sua volta. É necessário enfatizar esta verdade porque há pessoas cuja noção e concepção da vida cristã torna o cristão um ser um tanto inatural. Tristeza e aflição são coisas às quais o cristão está sujeito, e estou pronto a defender o argumento que a ausência de um sentimento de tristeza no cristão em certas circunstâncias não é uma recomendação para a fé cristã. Não é natural, não vem do Novo Testamento, e é uma característica produzida mais pelo estoicismo, ou um estado psicológico produzido por certas seitas, do que pelo cristianismo. Não há nada mais instrutivo ou encorajador, ao ler as Escrituras, do que observar que os santos de Deus estão sujeitos às fraquezas humanas. Conhe­cem a dor e a tristeza, sabem o que é sentir solidão e desaponta­mento.  Temos  exemplos  abundantes  disso  nas  Escrituras;   e  o vemos na vida do apóstolo Paulo, talvez mais do que em qualquer outro. Ele estava sujeito a estas coisas, e não escondia o fato. Ele ainda era muito humano, apesar da sua extraordinária fé e das notáveis experiências que teve em sua comunhão com o Senhor. Pois bem, estas coisas podem ser encontradas ao mesmo tempo, e o cristão jamais deve considerar-se como alguém que está isento de sentimentos naturais. Ele tem algo em si que lhe permite elevar-se acima de todas essas coisas; mas a glória da vida cristã é justa­mente que podemos viver acima destas coisas, ainda que as sintamos. Não é uma ausência de sentimentos ou emoções. Esta é uma linha divisória de extrema importância.

Tendo demonstrado isso, vamos agora considerar por que um cristão se acharia nesta condição de tristeza, "contristado". A res­posta, é claro, está nas "várias tentações". A palavra traduzida como "tentações" realmente significa "provações". Estas pessoas estavam nesse estado de espírito porque estavam enfrentando várias provações. Ora, essa é uma palavra grega muito interessante, tradu­zida aqui como "várias". Obviamente é uma das palavras preferidas do apóstolo Pedro, e ele a usa mais adiante para descrever a graça de Deus, traduzida então como "multiforme". Significa "de muitas cores", como as várias cores do arco-íris. O poeta Shelley tinha isso em mente quando escreveu:

A vida, como um domo de vitrais coloridos, Marca a radiância branca da eternidade.

Esse é o sentido da palavra usada aqui, e o apóstolo diz que eles estavam perturbados porque atravessavam estas várias tentações ou provações. Elas vêm de diferentes formas e cores, em modelos e tamanhos diferentes, e sua variedade não tem fim.

O que são estas provações? Em sua epístola, Pedro deixa bem claro o que tem em mente. Muitos destes cristãos estavam sendo perseguidos. No segundo capítulo lemos: "Amados, peço-vos, como a peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais das concupiscências carnais que combatem contra a alma; tendo o vosso viver honesto entre os gentios; para que, naquilo em que falam mal de vós, como de malfeitores, glorifiquem a Deus no dia da visitação pelas boas obras que em vós observem." O cristão, por ser cristão, está sujeito a estas coisas no mundo. Porque ele é um novo homem, porque ele nasceu de novo, está inevitavelmente destinado a ser mal-compreendido. Ele é um peregrino, e é como um estrangeiro numa terra estranha. Vive um tipo de vida diferente, tem idéias e costumes diferentes. As pessoas que o observam notam a diferença e não gostam dela; de fato, deixam bem claro que a detestam. Aqueles cristãos primitivos estavam sujeitos a perseguições e pro­vações que os assaltavam dessa maneira.

Temos vários relatos destas provações na Bíblia, e os santos de Deus sempre tiveram que enfrentar esse tipo de coisas. Na verdade, o apóstolo Paulo, escrevendo a Timóteo (II Timóteo 3:12), vai ao ponto de dizer: "E também todos os que piamente querem viver em Cristo Jesus padecerão perseguições". De acordo com as Escrituras, é uma lei que, quanto mais nos aproximamos do Senhor Jesus em nossa vida e nosso estilo de viver, mais proba­bilidades teremos de enfrentar problemas neste mundo. Olhem para Ele — que não cometeu mal algum, nem dolo se achou em Sua boca. Passou Sua vida curando as pessoas, fazendo o bem e pregan­do; e no entanto, vejam a oposição e as provações que teve de enfrentar. Por quê? Porque Ele era quem era. O mundo, no fundo do seu coração, odeia Cristo e odeia os cristãos, porque uma vida santa o condena. O homem do mundo não gosta disso porque o incomoda. O apóstolo sabia o que essas pessoas estavam experi­mentando nas mãos dos perversos, e ele continua no quarto capítulo, expressando-o ainda mais especificamente: "Porque é bastante que no tempo passado da vida fizéssemos a vontade dos gentios, andando em dissoluções, concupiscências, borrachices, glutonarias, bebedices e abomináveis idolatrias; e achando estranho não correrdes com eles no mesmo desenfreamento de dissolução, blasfemando de vós". O mundo estava aborrecido com essas pessoas porque elas tinham abandonado aquele tipo de vida e estavam vivendo a vida cristã. Assim que se tornaram cristãs, passaram a ter problemas com o mundo. Pessoas que antes eram amigáveis começaram a criticá-las, ignorá-las, ou a falar mal delas aos outros.

Essa era uma das coisas que lhes estava causando tristeza. Estavam contristados por causa disso, e é algo que os cristãos têm sido obrigados a suportar através dos séculos. Nada é mais penoso do que este mal-entendido da parte de outras pessoas, e se torna ainda mais difícil se acontece ser alguém muito chegado a nós. Como é difícil quando alguém é o único cristão da família. Este tipo de provação acontece, e se um cristão nunca enfrenta algum tipo de provação, isso sugere que há algo radicalmente errado com seu cristianismo. O apóstolo Paulo experimentou isto constan­temente.  Lembram-se  que  ele  disse:   "Demas  me  abandonou"? Aquilo não foi fácil para Paulo; realmente o perturbou. Teve que enfrentar  seu  julgamento  completamente  sozinho;   pessoas  com quem pensou que podia contar, de repente o abandonaram, e ali estava ele completamente só. "Todos me desampararam". Esse é o tipo de coisa que entristece o cristão, e basta lermos as biografias dos santos de Deus, para encontrarmos isso constantemente. Leiam os diários de John Wesley e descobrirão que ele estava frequente­mente neste estado por causa de mal-entendidos. Isso também é encontrado em larga escala na vida de Charles Haddon Spurgeon, em conexão com uma grande controvérsia na qual ele se achou envolvido. Homens a quem ele tinha considerado amigos, e alguns a quem ele havia instruído às suas próprias custas na faculdade, de repente se afastaram dele. Basta ler seu relato para perceber como ele foi machucado e entristecido. Estava contristado porque homens nos quais pensava poder confiar de repente lhe falharam. Isso sem dúvida encurtou a sua vida. Li nos diários de George Whitefield  recentecente  algo  muito  parecido.  Whitefield  havia experimentado uma época de excepcional proximidade de Cristo e estava se regozijando nisso, mas faz uma observação em seu diário, lembrando que de uma forma estranha tais experiências muitas  vezes  eram  seguidas  por provações  muito  duras,  e  ele escreve: "Sem dúvida estarei sujeito a isso novamente". Ele sabia, era sua experiência; é uma lei quase inevitável na vida do homem de. Deus num mundo de pecado.

Aqui, pois, estavam esses cristãos, sofrendo múltiplas provações. O termo é amplo, e significa qualquer coisa em nossa vida que tende a nos perturbar, algo que nos toca nas áreas mais delicadas e sensíveis do nosso ser, nosso coração, nossa mente, as coisas que tendem a nos abater. Como o apóstolo trata dessa situação? É muito interessante, e é o que devemos fazer se queremos manter esse aspecto duplo da nossa vida cristã. Se vamos continuar nos regozijando, apesar das coisas que nos entristecem, devemos enfren­tá-las da maneira que o apóstolo nos instrui. Qual é seu ensino? A primeira coisa que ele faz é apresentar um grande princípio, e é que devemos compreender por que estas coisas nos acontecem. Essa é a primeira coisa, e quantas vezes precisamos dizer isso a nós mesmos e uns aos outros! Às vezes penso que toda a arte da vida cristã é a arte de fazer perguntas. O perigo que corremos é de permitir que estas coisas nos aconteçam, sem proferir coisa alguma além de, talvez, um gemido, lamento ou reclamação. O que precisa­mos fazer, porém, é descobrir, se pudermos, por que estas coisas estão acontecendo; tentar descobrir a explicação, e em conexão com isto o apóstolo usa os seguintes termos: "Em que vós grandemente vos alegrais, ainda que agora importa, sendo necessário..." "Sendo necessário"! Ah, esse é o segredo. O que ele quer dizer com essa frase? Não há nenhuma dúvida quanto à resposta a essa pergunta. É uma declaração condicional, que podemos traduzir assim: "Por breve tempo, caso isso for necessário". "Se isso for necessário"! Não é apenas uma declaração geral de que num mundo como o nosso tais coisas têm que acontecer. Significa muito mais do que isso. Ele não diz: "Bem, vocês estão se regozijando nessa bendita esperança, ainda que num mundo como este tenham que suportar certas coisas". Isso está correto, é uma grande verdade; mas o apóstolo não encerra o assunto aí. Sua declaração é positiva. Ele diz: "Vocês estão enfrentando essa provação, porque isso é neces­sário no momento". Aqui, então, está nosso princípio: há um propósito definido em tudo isso. Nada disto acontece acidental­mente, nem é algo que ocorre simplesmente por causa de toda a organização da vida. Isso está incluído, mas não é a razão principal. Estas coisas acontecem, diz o apóstolo, porque são boas para nós, porque fazem parte da nossa disciplina nesta vida, e neste mundo, e porque — vamos deixar isso bem claro — Deus assim o deter­minou.

Essa é a doutrina do apóstolo, e é doutrina de todo o Novo Testamento, e certamente é a doutrina dos santos através dos séculos. Em outras palavras, devemos olhar para a vida cristã desta maneira. Estamos andando através deste mundo sob o olhar do nosso Pai celestial. Essa é a coisa fundamental;  o cristão deve pensar em si mesmo como alguém que está envolvido num rela­cionamento peculiar com Deus. Isso não pode ser dito de alguém que não é cristão. Há um plano e propósito muito definido para a minha vida; Deus me adotou e me colocou em Sua família. Para quê? Para que possa me levar à perfeição. Esse é Seu objetivo — "para sermos (mais e mais) conformes à imagem do Seu amado Filho". É isso que Ele está fazendo. O Senhor Jesus Cristo está trazendo muitos filhos a Deus, dizendo: "Eis-me aqui, e os filhos que me deste". Se não começarmos com esse conceito fundamental de nós mesmos como cristãos, iremos nos desviar, e certamente não entenderemos estas coisas.

A doutrina das Escrituras é, no mínimo, que Deus permite que estas coisas aconteçam conosco. Digo mais:  Deus às vezes determina que estas coisas aconteçam para o nosso bem. Ele às vezes o faz para nos disciplinar. Ele nos disciplina devido aos nossos fracassos ou à nossa irresponsabilidade. Examinamos no capítulo anterior a falha de muitos cristãos em disciplinar a si mesmos. Pedro exorta os cristãos a se disciplinarem, a "acrescenta­rem à sua fé", a guarnecê-la, a não se contentarem simplesmente com o mínimo, mas permitir que sua fé se expanda em todas as direções. Pode ser que não prestamos atenção a essa exortação, persistindo em nossa frouxidão e indolência. Bem, pela maneira que compreendo  a  doutrina  do  Novo  Testamento,  se fizermos isso, não devemos nos surpreender se certas coisas começarem a nos acontecer. Não devemos nos surpreender se Deus começar a nos disciplinar. Vejam a força do argumento de Hebreus, capítulo 12: "Porque o Senhor corrige o que ama". Se vocês nunca foram corrigidos pelo Senhor, eu até mesmo duvido que sejam realmente cristãos. Se podem dizer que, desde que creram, nunca tiveram qualquer problema, sua experiência provavelmente é psicológica e não espiritual. Há um realismo no cristianismo, como eu já disse, e vai ao ponto de ensinar que Deus — para o nosso próprio bem — nos corrigirá se não prestarmos atenção às exortações e aos apelos das Escrituras. Deus também tem outros métodos. Ele não faz estas coisas com aqueles que estão fora da família, mas se são Seus filhos, Ele os corrigirá para o seu próprio bem. Então talvez estejamos enfrentando várias provações como parte da disci­plina de Deus. Não estou dizendo que é inevitável — estou dizendo que pode ser assim.

Mas às vezes Deus faz isso conosco com o objetivo de nos preparar para algo. É uma regra das Escrituras, uma regra que é confirmada e exemplificada pela longa história da Igreja e seus santos, que quando Deus tem uma tarefa particularmente grande ou difícil para um homem, Ele geralmente o prova. Não importa que biografia escolhamos, podemos examinar a vida de qualquer homem que foi usado por Deus de forma notável, e descobriremos que houve um período de severos testes e provações em sua expe­riência. É como se Deus não Se arriscasse a usar um homem assim sem primeiro estar certo e seguro ao seu respeito. Então, alguém talvez tenha que passar por este tipo de experiência devido a uma tarefa especial que está à sua frente. Observem José e as coisas que aconteceram com ele. Poderiam imaginar um tipo de vida mais triste e desalentador? Todos pareciam estar contra ele. Seus próprios irmãos lhe tinham inveja e tentaram se livrar dele. Foi levado ao Egito, e lá as pessoas se voltaram contra ele. Nada fez de errado, mas por ser o que era, tudo se voltou contra ele. Mas em tudo isso Deus estava apenas preparando Seu servo para a grande posição que tinha para ele. E foi assim com todos os grandes homens da Bíblia. Vejam o sofrimento de um homem como David. Digo mais: olhem para a vida de qualquer um deles e descobrirão que foi cheia de provações e dificuldades. O apóstolo Paulo não foi exceção. Observem a lista de seus sofrimentos e provações em Sua Segunda Epístola aos Coríntios, capítulos onze e doze. Sempre tem sido assim.

Parece também, a julgar pelos ensinamentos das Escrituras e as vidas dos santos, que Deus às vezes prepara um homem para uma grande provação desta maneira. Quero dizer que Ele o prepara para uma grande provação através de provações menores. É nisso que posso ver o amor de Deus brilhando gloriosamente. Há certas grandes provações que surgem na vida, e seria terrível para alguém ser lançado nelas repentinamente, de uma vida calma e tranquila. Então Deus, às vezes, em Sua ternura e amor, envia provações menores para nos preparar para as maiores. "Sendo necessário": se se provar necessário, se Deus, olhando para nós como nosso Pai, perceber que isso é justamente o que necessitamos no momento. Assim começamos com esse grande princípio, que Deus sabe o que é melhor para nós, e o que é necessário. Nós não podemos ver, mas Deus sempre vê, e, como nosso Pai celestial, Ele vê a necessidade e prescreve a provação adequada, que irá resultar para o nosso bem.

Agora vamos passar para o segundo princípio, que é o precioso caráter da fé. Pedro diz no sétimo versículo que essas coisas aconte­ceram — essas "várias tentações" — para que "a prova da Vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro que perece e é provado pelo fogo, se ache em louvor, e honra, e glória na revelação de Jesus Cristo". Como isso é importante — o precioso caráter da fé! Ele ressalta isso em sua comparação com o ouro. "Olhem para o ouro", ele diz. "O ouro é precioso, mas não tão precioso quanto a fé". Como ele estabelece isso? Ele mostra que o ouro é algo que um dia vai desaparecer. É apenas temporário, não há nada de permanente nele, ainda que seja maravilhoso e de muito valor. Mas a fé é eterna. O ouro vai perecer, mas a fé permanecerá. A. fé é algo que é duradouro e eterno. Aquilo através do que vivemos, diz o apóstolo, é o que é responsável por estarmos na vida cristã. Vocês estão nesta posição de fé, ele diz, e não percebem como isto é maravilhoso e admirável. Andamos pela fé, toda a nossa vida é uma questão de fé, e aos olhos de Deus isso é tão precioso, tão maravilhoso, que Deus quer que seja absolutamente puro. Purifica­mos o ouro através do fogo. Eliminamos todas as impurezas ao colocar o ouro no crisol, ou na fundição, submetendo-o a um alto grau de calor; assim tudo que é impuro é removido, permanecendo apenas o ouro. Seu argumento, então, é que se fazemos isso com o ouro que perece, quanto mais precisa ser feito com a fé. Fé é esse princípio extraordinário que liga o homem a Deus; é o que livra o homem do inferno e o leva para o céu; é a conexão entre este mundo e o mundo por vir; a fé é esse elemento místico e admirável que pode tomar um homem morto em delitos e pecados, e fazer dele uma nova criatura, um novo homem em Cristo Jesus. É por isso que é tão preciosa. É tão preciosa que Deus quer que seja absoluta­mente perfeita. Esse é o argumento do apóstolo. Então, enfrentamos essas várias tentações e provações por causa do caráter da fé.

Quero expressar isso de forma um pouco diferente. Vimos que nossa fé precisa ser aperfeiçoada. Portanto, devem existir níveis de fé. Há diferenças na qualidade da fé. A fé é multiforme. No princípio, em geral temos muita mistura no que chamamos de nossa fé; há muito da carne nela, ainda que não tenhamos cons­ciência disso. E à medida que aprendemos essas coisas, e progre­dimos nesse processo, Deus nos faz passar por períodos de testes. Ele nos testa através de provações, como se fosse pelo fogo, para que as coisas que não pertencem à essência da fé sejam eliminadas. Podemos achar que a nossa fé é perfeita, e que podemos enfrentar qualquer coisa. Mas de repente surge uma provação, e nós falhamos. Por quê? Bem, isso é uma indicação de que o elemento de confiança em nossa fé precisa ser desenvolvido; e Deus desenvolve a confiança em nossa fé mediante essas provações. Quanto mais enfrentamos estas coisas, mais aprendemos a confiar em Deus. Nós confiamos nEle naturalmente quando tudo vai bem, mas chega o dia quando as nuvens escurecem os céus, e começamos a questionar se Deus ainda nos ama e se a vida cristã é realmente o que imaginávamos. Ah, nossa fé ainda não tinha desenvolvido o elemento da confiança, e por isso Deus trata conosco nesta vida de forma a nos levar a confiar nEle nas trevas, quando não podemos ver luz alguma, e cara nos levar ao ponto em que possamos dizer com confiança:

Quando tudo parece estar contra nós, Para nos levar ao desespero, Sabemos que há uma porta aberta, E um ouvido que escuta nossa oração.

Isso é verdadeira fé, isso é confiança real. Observem um homem como Abraão. Deus tratou com ele de tal forma que ele pôde "esperar contra a esperança", Ele confiou em Deus de forma total e absoluta, quando todas as aparências indicavam o contrário. E isso precisa ser desenvolvido em nós. Não começamos assim, mas ao atravessarmos essas experiências descobrimos que "por trás de uma providência carrancuda, Ele esconde o rosto de um Pai", e quando as provações voltam, permanecemos calmos e controlados. Podemos dizer: "Sim, eu sei que não posso ver o sol, mas sei que ele está lá. Sei que atrás das nuvens o rosto de Deus está voltado para mim". É por meio dessas provações que esse elemento de confiança é desenvolvido em nós.

É exatamente o mesmo com o elemento de paciência, ou perse­verança, a capacidade de perseverar e ir em frente apesar de desâ­nimo e abatimento. Esse é um dos maiores testes que um cristão pode enfrentar. Não somos pacientes por natureza. Começamos a vida cristã como crianças, querendo tudo de uma vez; e se não o recebemos, ficamos impacientes e começamos a resmungar, recla­mamos e ficamos emburrados como crianças. Isso é porque nos falta paciência e perseverança. Não há nada que as epístolas do Novo Testamento enfatizem mais do que esta qualidade de perseverar, quer as coisas estejam indo bem ou não. Devemos perseverar dizendo: "Deus sabe o que é melhor para mim. Vou confiar nEle". "Ainda que ele me mate, nele esperarei". Isso é perseverança, e é à medida que somos testados e provados que todos esses outros elementos que devem "guarnecer" a nossa fé se desenvolvem e são aperfeiçoados.

Quero então expressá-lo num princípio final e geral, desta forma. Estas provações são essenciais, diz Pedro, para demonstrar a autenticidade da nossa fé. A frase que ele usa é: "Para que a prova da vossa fé". Ora, a palavra "prova" aqui tem o sentido de "a confirmação dela". O quadro que ele tem em mente, é o de um teste aplicado a algo, e depois que o produto é testado, recebe um certificado. Por exemplo, o veredito de um anel pode ser: "Sim, é ouro 18 quilates". É esse o sentido de "provação". Ele não está interessado no processo em si; a provação é o certificado de confirmação, declarando a autenticidade da nossa fé. O caráter aprovado da nossa fé se manifesta dessa maneira. É por isso que tais coisas acontecem conosco.

Certamente isto é bastante óbvio. É a maneira que enfrentamos as provações que realmente atesta a nossa fé. Vocês se lembram como o Senhor, na parábola do semeador, descreve a semente que cai entre os espinhos? Parecia prometer uma grande colheita, mas esta não se concretizou porque outras coisas sufocaram a Palavra. O Senhor interpretou isso como sendo comparável à maneira como as provações vêm e esmagam e sufocam a Palavra, de forma que nunca venha a frutificar. A princípio parece maravilhoso, mas não perdura. As provações mostram que era uma fé espúria, que não era real nem genuína. Não há nada que confirme a auten­ticidade da fé mais do que a paciência e perseverança da pessoa, sua capacidade de prosseguir apesar de tudo. Esse é o ensino de nosso Senhor, e é o ensino de todo o Novo Testamento.

Não há nada que seja mais maravilhoso na vida dos maiores cristãos, do que isso — a maneira como eles permaneceram firmes como rochas quando todos à sua volta sucumbiam. É a gloriosa história dos mártires e dos grandes proclamadores do cristianismo. Eles enfrentaram provações, mas ficaram firmes no que sabiam ser a verdade de Deus, sem se importar com as consequências, e prosseguiram com sua fé brilhando gloriosamente. Ora, estas coisas estão acontecendo com vocês, diz Pedro, para que a autenticidade da sua fé seja evidente a todos. Cristãos que desistem não são uma boa recomendação à fé cristã; quem começa bem mas não prossegue, torna-se uma desgraça para a fé. O que revela a diferença entre o falso e o verdadeiro, o espúrio e o real, é a capacidade de suportar o teste. "Nem tudo que brilha é ouro". Como provamos ouro? Colocando-o no crisol e acendendo o fogo debaixo dele. Veremos que as impurezas serão eliminadas enquanto o ouro per­manece, muito mais puro do que antes. Estas coisas acontecem conosco para que a autenticidade da nossa fé seja revelada. E essa é, no final das contas, a coisa mais importante de todas!

Permitam-me acrescentar mais uma palavra sobre o que Pedro diz para nosso encorajamento. Qual é a consolação? É que, ainda que essas coisas aconteçam conosco, elas apenas acontecem "por um pouco". "Em que vós grandemente vos alegrais, ainda que agora importa, sendo necessário..." Não pensem que estou ensinando que esta condição de testes e provações seja algo permanente para o cristão. Não é. Estas coisas vêm e vão, de acordo com o propósito de Deus. Nunca seremos provados e testados a não ser para o nosso próprio bem, e à medida que respondemos à lição, Deus decreta o fim do teste. Ele não nos mantém permanentemente sob provações. Como Whitefield disse, estas coisas se alternam, e Deus sabe exatamente como enviá-las, e quando. E podemos ter certeza, como o apóstolo Paulo, que "não veio sobre vós tentação, senão humana: mas fiel é Deus, que não vos deixará tentar acima do que podeis, antes com a tentação dará também o escape, para que a possais suportar" (I Coríntios 10:13). Ele é o nosso Pai amoroso, e sabe quanto podemos suportar e enfrentar. Ele nunca nos enviará algo que seja demais para nós; pois sabe a quantidade certa, e permitirá apenas a quantidade certa, e quando tivermos aprendido, decretará um fim à provação. É apenas "por um pouco". Será que estas palavras estão chegando a um. cristão aqui abatido e sobrecarregado? Tudo lhe parece ser escuridão e trevas? Você, meu irmão, não tem a liberdade em oração que já teve um dia? Sente que quase perdeu sua fé? Não fique perturbado. Você está nas mãos do seu Pai. Talvez um período maravilhoso esteja para começar em sua vida; Ele talvez tenha uma bênção muito especial para você, ou uma tarefa extraordinária para você realizar. Não fique abatido — é apenas "por um pouco". Você está nas mãos do seu Pai amoroso, então confie nEle e vá em frente. Prossiga, dizendo: "Eu me contento em estar nas Tuas mãos. Fazer a Tua vontade, é toda a minha vontade".

A segunda coisa é esta. Ao atravessar este período de tristeza, lembrem-se das coisas nas quais vocês exultar!. Isso é algo que todos devemos fazer. O problema é que, quando essas provações nos sobrevêm, nossa tendência é ver somente as provações, nada mais senão nuvens. Em períodos assim, devemos nos lembrar do terceiro versículo deste capítulo. Quando não podemos ver coisa alguma, devemos abrir as Escrituras e começar a ler isto. Ainda que não vejam nada senão trevas no momento, devem lembrar-se disso, e dizer: "Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo" — isso sabemos que é sempre verdade; "que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança incorruptível, incontaminável, e que se não pode murchar, guar­dada nos céus para vós, que mediante a fé estais guardados pelo poder de Deus para a salvação, já prestes para se revelar no último tempo". Devemos nos lembrar disso, e dizer: "Sim, estas coisas estão acontecendo, estas provações estão me acometendo de todo lado. Estão vindo de todas as direções, mas não vou me abater debaixo delas, nem me lamentar. Não; em vez disso, direi — eu sei que Deus é bom, sei que Cristo morreu por mim, sei que pertenço a Deus, sei que minha herança está no céu; não posso vê-la, mas sei que está lá; sei que Deus a está guardando, e ninguém jamais a tirará de Suas poderosas mãos". Digam isso a si mesmos. Lembrem-se das coisas em que vocês se regozijam —• ainda que agora, por um pouco, se necessário, vocês estejam enfrentando várias tentações.

Vamos então considerar a declaração final, que é esta: "Para que a prova da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro que perece e é provado pelo fogo, se ache em louvor, e honra, e glória na revelação de Jesus Cristo." Ele virá; não sei quando, mas sei que virá — "o dia de Jesus Cristo" — e eu estarei lá. Sei, portanto, que tudo que acontece em minha vida e neste mundo tem isso como objetivo final. Vai ser um grande dia! Lembrem-se do que Paulo diz, ao escrever sobre pregadores. Ele falou de si mesmo, e de Apolo e outros, em I Coríntios, capítulo 3, e declarou que todo homem edifica sobre um fundamento. Alguns edificam com feno, madeira e palha; outros edificam cuidadosamente, com materiais sólidos, e Paulo diz que "o dia a declarará". A obra de todo homem será provada, e provada pelo fogo. E há muita coisa que vai se desfazer em fumaça. "O dia a declarará". "O dia" vai declarar quem edificou solidamente, e quem edificou apressadamente ou com o material inferior. "Todavia", diz Paulo, "a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por algum juízo humano; nem eu tão pouco a mim mesmo me julgo." Ele confiara todo julgamento a Deus, e sabia que uma declaração seria feita no dia da revelação de Jesus Cristo (I Coríntios 4: 1-5).

Isso, diz Pedro, é o que devem aguardar. Quando o grande dia chegar, a autenticidade da sua fé vai se manifestar. Haverá louvor e honra e glória. Essa sua pequena fé, a fé que vocês pensam ser tão ínfima, vai se revelar como algo tremendo. Ela resistiu ao teste, e irá ministrar para louvor, e honra, e glória. Honra, louvor e glória de quem? Em primeiro lugar e antes de tudo, dEle. Já citei esta passagem antes. O Senhor Jesus Cristo diz: "Eis aqui estou, e os filhos que me deste". Ele olhará naquele grande dia com satisfação para os cristãos, aqueles a quem Ele chamou. Eles passa­ram por grandes tribulações, mas resistiram ao teste, e não falharam. Ele olhará para eles, e terá orgulho deles. Eles serão Sua glória, louvor e honra no grande dia que está por vir.

Outrossim, será também para a nossa honra, e louvor, e glória sua e minha. Vamos participar dessa glória, e vamos ouví-lO dizendo: "Bem está, servo bom e fiel; entra no gozo do teu Senhor". Ele nos revestirá com a Sua glória, e passaremos a eternidade usufruindo-a com Ele; e quanto maior e mais genuína a nossa fé, maior será a nossa glória. "Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal" (II Coríntios 5:10). Haverá um julgamento de recompensas, e será de acordo com a nossa fé e a maneira como resistimos aos testes que seremos recompensados.

Podemos estar contristados por muitas tentações e provações no tempo presente, chorando enquanto prosseguimos. Mas não importa. Temos a promessa de que o dia vai chegar quando "o Cordeiro que está no meio do trono. . . nos guiará às fontes de águas vivas" e que Deus mesmo "enxugará as lágrimas dos nossos olhos", e estaremos com Ele em glória eterna.

Essa é a maneira cristã de enfrentar provações. Graças a Deus que estamos em Suas mãos. É o Seu caminho de salvação, e não o nosso. Vamos nos submeter a Deus, contentando-nos em estar em Suas mãos, e dizendo a Ele: "Mande o que quiseres, nossa única preocupação é que sejamos sempre agradáveis aos Teus olhos".

 

17. CORREÇÃO

"E já vos esquecestes da exortação que argumenta convosco como filhos: Filho meu, não desprezes a correção do Senhor, e não des­maies quando por ele fores repreendido; porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer um que recebe por filho. Se su­portais a correção, Deus vos trata como filhos; porque, que filho há a quem o pai não corrija? Mas, se estais sem disciplina, da qual todos são feitos participantes, sois então bastardos, e não filhos. Além do que tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos: não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos? Porque aqueles, na ver­dade, por um pouco de tempo nos corrigiam como bem lhes pare­cia; mas este, para nosso proveito, para sermos participantes da sua santidade. E, na verdade, toda a correção, ao presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas depois produz um fruto pacífico de justiça nos exercitados por ela".

Hebreus 12:5-11

Uma das causas mais prolíficas deste estado de depressão espiritual é a falha em, compreender que Deus usa muitos métodos no processo da nossa santificação. Ele é nosso Pai, que "nos amou com um amor eterno". Seu grande propósito para nós é nossa santificação — "Porque esta é a vontade de Deus, a vossa santi­ficação" (I Tessalonicenses 4:3), e "para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em caridade" (Efésios 1:4). A grande preocupação de Deus por nós é, primariamente, não a nossa felici­dade, mas nossa santidade. Em Seu grande amor por nós, Ele está decidido a nos levar a isso, e emprega muitos métodos diferentes para atingir esse fim.

O fato de não compreendermos isso muitas vezes nos leva a tropeçar e, em nosso pecado e insensatez, até mesmo a compreender de maneira completamente errada o modo como Deus nos trata. Como crianças insensatas, achamos que nosso Pai celestial não está sendo amoroso para conosco, e sentimos pena de nós mesmos, achando que Ele está nos tratando com rudeza. Isso, é claro, leva à depressão, e é tudo devido à nossa falha em compreender os gloriosos propósitos de Deus para conosco.

Esta é a questão tratada de maneira tão extraordinária e perfeita no capítulo doze de Hebreus, onde o tema é que Deus às vezes opera santificação na vida de Seus filhos através da corre­ção, e especialmente capacitando-os a compreender o significado da correção. Esse é o tema para o qual quero chamar a sua atenção. Talvez não haja outra área em que vejamos mais claramente o fato de que santificação é uma obra de Deus, do que em conexão com este assunto da correção. "Vejam as coisas que vocês estão sofrendo", diz o autor. "Por que estão sofrendo tudo isso?" A resposta é que eles estão sofrendo estas coisas porque são filhos de Deus. Ele declara que Deus está fazendo isso para o seu bem — "Porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho". E então observemos que, não satisfeito em colo­cá-lo assim, ele o expressa negativamente também, dizendo: "Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque, que filho há a quem o pai não corrija? Mas, se estais sem disciplina, da qual todos são feitos participantes, sois então bastardos" — vocês não são verdadeiramente membros' da família, não são filhos. Essa é uma declaração muito significativa. Quero expressá-la na forma de um princípio. O que este homem realmente está dizendo é que a salvação toda é obra de Deus, do começo ao fim, e que Deus tem Seus métodos e meios de produzi-la. Uma vez que Deus começa uma obra, Ele a completa: "Aquele que em vós começou a boa obra, a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo". Deus jamais começa uma obra para desistir dela ou deixá-la numa situação incompleta — quando Deus começa Sua obra em Seus filhos, Ele vai completar essa obra. Deus tem um propósito e objetivo final para eles: que passem a eternidade com Ele na glória. Muito do que acontece conosco neste mundo deve ser entendido e explicado à luz desse fato; e é um fato bem definido, de acordo com o argumento do autor, que Deus vai nos trazer a essa condição, e nada vai impedir que isso aconteça.

Ora, Deus tem vários meios de fazer isso. Um deles, é dar-nos instrução através das grandes doutrinas e dos princípios ensinados na Bíblia. Ele nos deu Sua Palavra. Ele inspirou homens a escrever essas palavras pelo Espírito Santo para nossa instrução, a fim de sermos preparados e aperfeiçoados. Mas se nos tornarmos recalci­trantes, se não aprendermos as lições que nos são apresentadas positivamente na Palavra, então Deus, como nosso Pai, tendo em vista o grande objetivo de nos aperfeiçoar e preparar para a glória, adotará outros métodos. E um desses outros métodos que Ele usa, é este método da correção. Pais terrenos que são dignos desse nome — e estamos vivendo em dias de tanta-indulgência e frou­xidão, que mal podemos usar este argumento da forma que o autor de Hebreus o usou — mas pais dignos desse nome fazem isso. Eles corrigem seus filhos para o seu próprio bem; se a criança não está se comportando de maneira apropriada como resultado de instrução positiva, então a correção deve ser aplicada, a disciplina deve ser exercida. É doloroso, mas necessário, e um bom pai não negligencia isso. E este homem diz que Deus é assim, e infinita­mente mais. Se, portanto, não somos obedientes às lições e instru­ções positivas da Palavra de Deus, não devemos nos surpreender se outras coisas começarem a nos acontecer. Não devemos nos sur­preender se tivermos que enfrentar certas coisas que são dolorosas. Tais coisas nos são enviadas deliberadamente por Deus, diz este homem, como parte do processo da santificação. Observem como ele enfatiza isso. Diz que devemos nos examinar a nós mesmos para descobrir se estamos experimentando isso em nossa vida, porque, ele diz de forma muito clara, se não temos experiência desse tipo de tratamento, então é de duvidar que realmente seja­mos filhos. Se nada conhecemos desse processo, não somos filhos, somos ilegítimos, não pertencemos a Deus, pois "o Senhor corrige o que ama". De certa forma, então, podemos dizer que a pessoa que devia se sentir mais infeliz consigo mesma é aquele cristão (ou que professa ser cristão) que não tem consciência desse tipo de experiência em sua vida. Devíamos ficar alarmados com isso. Longe de ficarmos aborrecidos com o processo, devíamos agradecer a Deus por ele, pois Ele está nos dando provas de que somos Seus filhos, e está nos tratando como tal. Está nos corrigindo e disciplinando para nos conformar ao padrão e nos tornar dignos daquele que é nosso Pai.

Isso é algo que está constantemente acontecendo na vida e na experiência dos filhos de Deus. Também é algo ensinado através de todas as Escrituras. Existem exemplos e ilustrações sem fim que poderiam ser citadas. É a grande mensagem do Salmo 73. É a grande mensagem do livro de Jó. E o apóstolo Paulo trata do assunto no quinto capítulo da Epístola aos Romanos, onde fala sobre regozijo em meio às tribulações, etc. Também faz parte do argumento do capítulo oito de Romanos. É encontrado novamente na Primeira Epístola aos Coríntios, no capítulo onze, na secção que trata da Ceia do Senhor. O apóstolo ensina que havia membros da igreja que estavam doentes e enfermos porque não estavam vivendo a vida cristã: "Por causa disto há entre vós muitos fracos e doentes". Na verdade, muitos até mesmo tinham morrido por causa disso: "E (há) muitos que dormem". Então, leiam o pri­meiro capítulo da Segunda Epístola aos Coríntios e encontrarão o apóstolo descrevendo a experiência que tinha acontecido com ele. Ele afirma que aconteceu para que aprendesse a não confiar em si mesmo, e sim no Deus vivo. Outra grande declaração clássica deste ensino pode ser encontrada no capítulo doze da Segunda Epístola aos Coríntios, onde Paulo fala sobre o "espinho na carne" que lhe fora dado; o propósito disso tudo, ele diz, era mantê-lo numa condição espiritual correta, para que não se exaltasse. Foi-lhe dado um espinho na carne, e embora tivesse orado, pedindo a Deus três vezes que o removesse, Deus não fez isso, e ele final­mente aprendeu sua lição. Portanto, aquilo promoveu sua santifi­cação. No primeiro capítulo da Epístola de Tiago, lemos: "Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em várias tentações". É algo em que devemos nos regozijar. E então encontramos tudo isso resumido na palavra do próprio Senhor ressuscitado, no ter­ceiro capítulo de Apocalipse, no versículo 19: "Eu repreendo e castigo a todos quantos amo".

Encontramos, então, esta grande doutrina através de toda a Bíblia. Na verdade, todo o tratamento de Deus com os filhos de Israel sob a velha dispensação é um grande comentário disso. Ele tratou com eles daquela maneira porque eram Seus filhos. "De todas as famílias da terra a vós somente conheci; portanto, todas as vossas injustiças visitarei sobre vós" (Amos 3:2). Ele os tratou daquela maneira porque eram Seus filhos.

A pergunta óbvia que vem à nossa mente, então, é: o que é correção? O que significa'? Significa treinar. O sentido básico da palavra é esse. É o treinamento ministrado à criança, ou o método de treinar uma criança. Temos a tendência de confundir correção com a palavra castigo. É certo que inclui disciplina, mas também inclui instrução; inclui repreensão, e na verdade pode incluir um considerável grau de castigo; mas o objetivo essencial da correção é treinar e desenvolver a criança para que se torne uma pessoa adulta. Bem, se esse é o sentido de correção, vamos considerar por um momento os meios pelos quais Deus nos corrige.

Como Deus corrige Seus filhos? Ele o faz especialmente atra­vés das circunstâncias — todo tipo de circunstâncias. Nada é mais importante na vida cristã do que compreender que tudo o que nos acontece tem um sentido, se tão somente o buscarmos. Nada nos acontece por acaso — um pardal "não cairá por terra sem a von­tade do nosso Pai", diz o Senhor, e se isso é verdade a respeito do pardal, quanto mais o será a nosso respeito! Nada pode nos acontecer sem o consentimento do nosso Pai. As circunstâncias estão constantemente nos afetando, e seu propósito é operar a nossa santificação — tanto as circunstâncias agradáveis como as desagradáveis. Devemos portanto ser observadores, sempre bus­cando lições e fazendo perguntas.

Quero agora ser mais específico. A Bíblia ensina muito clara­mente que uma circunstância particular que Deus muitas vezes usa no que toca a essa área, é uma perda financeira, ou mudança na posição material da pessoa, perda de bens, perda de possessões ou de dinheiro. Tais coisas são muitas vezes usadas por Deus. Vemos descrições disso no Velho Testamento, e aconteceu muitas vezes na história subsequente do povo de Deus na Igreja, que através de uma perda no sentido material e temporal, Deus ensinou uma lição a alguém que a pessoa não poderia ter aprendido de outra forma.

Então vamos pensar na questão da saúde. Já mencionei a Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo onze. O apóstolo ensina especificamente que havia algumas pessoas que estavam doentes e fracas porque Deus permitira isso para ensiná-las e treiná-las. "Examine-se pois o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice. Porque o que come e bebe indignamente, come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor. Por causa disto, há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos  que  dormem".  Este  é um método  que Deus empregou muitas vezes, de modo que aqueles que dizem nunca ser a von­tade de Deus que sejamos doentes ou fracos, estão simplesmente negando as Escrituras. Contudo, que ninguém caia na armadilha de dizer:  "Você está afirmando que toda doença é um castigo enviado por Deus?" Claro que não; estou simplesmente dizendo que Deus às vezes usa esse método para corrigir Seus filhos. É "por causa disto" que muitos estão "doentes e fracos";  é uma obra de Deus. Deus permitiu que aquilo lhes acontecesse, ou talvez Deus mandou aquilo às suas vidas, para seu próprio bem. A von­tade de Deus é mais importante que a saúde do corpo da pessoa, e se ela não se submete e se sujeita à instrução positiva da Palavra de Deus, então Ele certamente vai tratar com essa pessoa, e talvez envie uma doença para fazê-la parar e pensar. Gostaria de men­cionar que o grande Dr. Thomas Chalmers sempre dizia que o que realmente o levou a entender o evangelho, sob a direção de Deus, foi uma doença que o confinou a um quarto por quase um ano. Ele tinha sido um pregador brilhante, muito "científico" e "intelectual", mas saiu daquele quarto de doença como um pre­gador do evangelho, e agradeceu a Deus por aquela visitação. Encontramos um paralelo disso na Segunda Epístola de Paulo aos Coríntios, no capítulo primeiro, versículo nove, onde ele nos diz que "já tinha a sentença de morte em si". Então temos também a clássica declaração sobre o espinho na carne no capítulo doze. Deus não removeu aquele espinho porque queria ensinar o após­tolo a dizer: "Quando sou fraco, então sou forte", e se regozijar na enfermidade, em vez de na saúde, para que a glória de Deus fosse promovida. Não há dúvida que Deus permitiu aquilo, talvez até mesmo o tenha causado, a fim de corrigir e treinar Seu servo daquela forma particular.

Da mesma forma, Deus permitiu perseguição. Estes cristãos hebreus estavam sendo perseguidos. Por isso estavam tão infelizes. Seus bens haviam sido roubados, suas casas destruídas, porque eles eram cristãos, e estavam perguntando: "Por que estamos rece­bendo esse tipo de tratamento? Pensamos que, se crêssemos no evangelho, tudo acabaria bem, mas estamos cheios de problemas, enquanto que aqueles que não são cristãos parecem estar se dando muito bem e tendo sucesso em tudo. Por que isso?" E a resposta à pergunta deles esta nesse capítulo doze da carta aos Hebreus.

A doutrina, todavia, vai além, vai ao ponto de afirmar que Deus às vezes emprega a morte dessa forma: "Há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que dormem". É um mistério que nin­guém pode entender, mas é um ensino claro das Escrituras, e por isso digo que precisamos compreender que todas estas coisas têm um significado. Através das circunstâncias, das coisas que aconte­cem em nossa vida e neste mundo, em nossa carreira, em nossos estudos e exames, pela doença ou saúde, por todas essas coisas, Deus está realizando Seu propósito para nós. Se somos filhos de Deus, todas essas coisas têm um significado, e precisamos aprender a examiná-las, para descobrir sua mensagem. E mediante isso será promovida a nossa santificação.

Outra maneira de Deus nos corrigir, e preciso colocá-la numa categoria à parte, é esta: Deus às vezes, sem dúvida, parece afastar Sua presença e esconder Sua face de nós para alcançar esse propó­sito. É evidente que este é o grande tema do livro de Jó. É encon­trado novamente no livro de Oséias, nos capítulos cinco e seis..

Deus até mesmo diz ao povo ali: "Irei, e voltarei para o meu lugar, até que se reconheçam culpados e busquem a minha face". Deus Se afastou, e afastou Sua presença e Suas bênçãos para levá-los ao arrependimento; isso é uma parte da santificação.

Por outro lado, também sabemos que há variações de senti­mentos e emoções na vida cristã. Essa é uma questão que muitas vezes deixa o povo de Deus confuso e perplexo. Todos já tivemos alguma experiência nesse sentido. Descobrimos que, por alguma razão, a experiência que vínhamos tendo de repente chegou ao fim, e dizemos com Jó: "Ah! se eu soubesse que o poderia achar!" Não temos consciência de nada que tenhamos feito de errado, mas Deus parece ter Se retirado, e temos a sensação de que nos aban­donou. Essas "deserções" do Espírito, que parecem acontecer de tempos em tempos, são também parte do método de Deus de disci­plinar e corrigir Seus filhos; são parte de Seu grande processo de nos treinar e preparar para o grande propósito e objetivo que Ele tem para nós.

Isso então me leva à minha próxima pergunta. Por que Deus corrige? Já vimos o que é correção, e vimos como Deus corrige, e agora fazemos a grande pergunta — por que Deus faz isso? Encontramos abundantes respostas a essa pergunta nesta passagem da Sua Palavra. Do versículo cinco ao versículo quinze, neste capí­tulo doze da Epístola aos Hebreus, o assunto é nada mais que uma ampla resposta a isso. É porque Deus nos ama: "Porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho". Essa é a resposta fundamental. É tudo por causa do amor de Deus. É porque Deus nos ama que Ele às vezes parece ser "cruelmente amoroso". Tudo é feito para o nosso bem; essa é a verdade da qual devemos nos apropriar — é sempre para o nosso bem. Agora vamos observar a declaração do versículo sete. A tradução Revista e Corrigida da Bíblia diz: "Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos". Mas a tradução Revista e Atualizada sem dúvida traduz este texto de forma muito melhor. Em vez de "se suportais a correção", o sentido do texto na verdade é este: "É para disci­plina que perseverais (Deus vos trata como a filhos)". Por que vocês estão perseverando? Essa é a pergunta que esses cristãos hebreus estavam fazendo. "Se somos cristãos, por que estamos suportanto?" E a resposta é que estão suportando porque são cristãos, estão aguentando para sua correção, para sua disciplina. Em outras palavras, o propósito de perseverarem, ou suportarem, é o seu crescimento, seu treinamento, seu desenvolvimento;  as coisas que estão suportando são parte da sua correção. O que é correção? É treinamento. Então temos que nos apropriar firme­mente deste fato, que todo sofrimento e provação e infelicidade tem esse grande propósito em vista, ou seja, nossa preparação e treinamento. E o autor repete isso — observem como ele repete esses conceitos — no versículo dez. "Porque aqueles (nossos pais terrenos), na verdade, por um pouco de tempo, nos corrigiam como bem lhes parecia; mas este, para nosso proveito, para sermos participantes da sua santidade." Ora, ai está o conceito, expresso da maneira mais clara; definitivamente o ensino é que Deus nos corrige para que possamos ser participantes da Sua santidade, a fim de que sejamos santificados. Tudo é feito, ele diz, "para o nosso proveito", e o proveito é a santificação. Deus nos santifica pela verdade fazendo estas coisas e então, através da Sua Palavra, esclarecendo o que Ele está fazendo.

Se esse é o objetivo geral que Deus tem em vista ao nos corrigir desta maneira, vamos agora examinar algumas das razões particulares que Ele tem para fazer isso. Uma é que há certas imperfeições em nós, em todos nós, que precisam ser corrigidas. Há certos perigos que confrontam a todos nós na vida cristã, contra os quais precisamos ser protegidos. O fato de alguém ser cristão não significa que essa pessoa é perfeita. Não alcançamos imediatamente um estado de perfeição no momento que cremos no Senhor Jesus Cristo. Na verdade, não alcançamos esse estado de perfeição nesta vida; sempre haverá imperfeição enquanto o "velho homem" existir. Em consequência disso, sempre há certas coisas em nossa vida que precisam ser tratadas; e as Escrituras nos mos­tram muito claramente como Deus usa a correção para tratar de alguns desses problemas. Quais são eles? Um deles é orgulho espi­ritual, exaltação espiritual num sentido errado e perigoso. Quero expressá-lo com as clássicas palavras que mostram isso com tanta perfeição, e não necessitam de qualquer exposição. O apóstolo Paulo, no capítulo doze da Segunda Epístola aos Coríntios diz: "Conheço um homem em Cristo. . . e sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis, de que ao homem não é lícito falar. De um assim me gloriarei eu, mas de mim mesmo não me gloriarei, senão nas minhas fraquezas. Porque, se quiser gloriar-me, não serei néscio, porque direi a verdade; mas deixo isto, para que ninguém cuide de mim mais do que em mim vê ou de mim ouve"; e observem: "E para que me não exaltasse pelas excelências das revelações, foi-me dado um espinho na carne, a saber, um mensa­geiro de Satanás para me esbofetear, a fim de me não exaltar". Ai está, com perfeição. O apóstolo recebera uma experiência muito rara, extraordinária e notável, tinha sido arrebatado ao terceiro céu, e havia visto e ouvido e sentido coisas maravilhosas, e corria o risco de cair em orgulho espiritual, exaltando-se a si mesmo. E ele nos diz que lhe foi enviado um espinho na carne — enviado a ele deliberadamente — para resguardá-lo. Orgulho espiritual é um perigo terrível, e é um perigo que persiste. Se Deus, em Sua mise­ricórdia e amor, nos conceder uma experiência incomum, isso nos coloca numa posição em que o diabo pode nos explorar e preju­dicar; e com frequência homens que tiveram tais experiências também tiveram que sofrer correção para mantê-los numa posição segura e correta.

Outro perigo é o perigo da auto-confiança. Deus deu dons aos homens, e o perigo é que passemos a confiar em nós mesmos e em nossos dons, passando a sentir, de certa forma, que não precisamos mais de Deus. Orgulho e auto-confiança são um perigo constante. Não são pecados da carne em si, são perigos espirituais, e são, portanto, ainda mais perigosos e sutis.

E então sempre há o perigo de sermos atraídos pelo mundo, suas perspectiva e seus caminhos. Um ponto enfatizado muitas vezes nas Escrituras é que estas coisas são muito sutis. A pessoa não decide, deliberadamente, que vai voltar ao mundo. É algo que acontece quase imperceptivelmente. O mundo e suas atrações estão sempre presentes, e a pessoa cai nelas quase sem saber. Ela então precisa ser corrigida, para que não passe a amar as coisas do mundo. Ainda um outro perigo é o de nos acomodar — o perigo de nos satisfazer com a posição que alcançamos na vida cristã — presunção, auto-satisfação. Não somos modernistas, não cremos em todas essas coisas em que muitos crêem hoje em dia, somos orto­doxos, cessamos de fazer certas coisas que sabemos ser obviamente erradas. Cremos ser perfeitos em nossa fé, e que nossas vidas estão acima de reprovação, e assim nos tornamos presunçosos e satis­feitos conosco mesmos. Acomodamo-nos, e assim paramos de cres­cer. Se nos compararmos com o que éramos dez anos atrás, real­mente não há diferença. Não conhecemos a Deus mais intimamente, não avançamos um passo sequer, não crescemos "na graça e no conhecimento do Senhor". Descansamos num estado de auto-satis­fação. Talvez eu possa resumi-lo dizendo que é o terrível perigo de esquecer Deus, e não buscá-10, não buscar comunhão com Ele.

É o perigo sério de pensar em nós mesmos em termos de expe­riência, em vez de pensar, constantemente, em termos do nosso conhecimento direto e imediato dEle, e de nosso relacionamento com Ele. À medida que prosseguimos na vida cristã, devíamos ser capazes de dizer que conhecemos a Deus melhor do que conhecía­mos, e que O amamos mais do que O amávamos há anos atrás. Quanto mais conhecemos uma pessoa boa, mais amamos essa pessoa. Multipliquem isso pelo infinito, e aí está nosso relaciona­mento com Deus. Conhecemos melhor a Deus, estamos buscando-O mais e mais? Deus sabe, o perigo é o de nos esquecermos dEle porque estamos mais interessados em nós mesmos e nossas expe­riências. E assim Deus, em Seu amor infinito, corrige-nos para nos fazer compreender estas coisas, a fim de nos levar de volta para Si mesmo e nos resguardar destes terríveis perigos que estão cons­tantemente nos ameaçando e nos cercando. Quero relacionar isso com sua experiência. Acaso, podem dizer que agradecem a Deus por coisas que acontecem contra vocês? Esse é um excelente teste da nossa profissão de fé! Vocês conseguem olhar para trás, para certas coisas — que foram desagradáveis, e que os tornaram infe­lizes na época em que aconteceram — e dizer como o salmista no Salmo 119:71: "Foi-me bom ter sido afligido, para que apren­desse os teus estatutos"?

Digo, então, que Deus nos corrige por estas razões particulares. Mas quero agora pô-lo de forma positiva. Ser santificado significa que exibimos certas qualidades positivas. Significa ser o tipo de pessoa que exemplifica as bem-aventuranças e o sermão do monte em sua vida, ser o tipo de pessoa que demonstra o fruto do Espírito — amor, alegria, paz, etc. É isso que significa santificação. Deus, ao nos santificar, está nos trazendo mais e mais a uma con­formidade com essa condição. E é bem evidente que, para nos levar a esse ponto, não é suficiente que recebamos a instrução positiva da Palavra; o elemento de correção também é necessário. A Palavra nos exorta a "olharmos para Jesus". Observem que faz isso logo antes de abordar o assunto da correção. A exortação do autor é: "Corramos com paciência a carreira que nos está pro­posta: olhando para Jesus..." Se fizéssemos isso sempre, nada mais seria necessário; se mantivéssemos sempre os olhos nEle, tentando nos conformar a Ele, tudo estaria bem. Mas não fazemos isso, e portanto a disciplina se torna necessária. E é necessária a fim de produzir certas qualidades em nós. A primeira delas é a humildade. Ela é, em muitos sentidos, a virtude suprema. Humildade, a mais inestimável de todas as jóias, uma das mais gloriosas de todas as manifestações do fruto do Espírito - humildade. Era a suprema característica do próprio Senhor. Ele era manso e hu­milde de coração. "A cana trilhada não quebrará, nem apagará o pavio que fumega". É o último ponto que alcançamos, e Deus sabe que todos precisamos ser humilhados para nos tornarmos humildes. O fracasso pode ser muito' proveitoso para nós nesse sentido. É muito difícil sermos humildes se somos sempre bem sucedidos; então Deus nos corrige através do fracasso, às vezes, para nos humilhar e assim nos manter humildes. Examinem suas vidas e vejam esse tipo de coisa acontecendo.

Vejam em seguida a devoção. O cristão deve ser devoto, deve ter seus olhos fixos nas coisas de cima. Seus interesses devem estar concentrados lá, e não aqui. Mas como é difícil ter essa atitude, e buscar "as coisas lá do alto", e "pensar nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra". Quantas vezes tem sido necessário que Deus nos corrija, para voltar nossos olhos para o alto. Tendemos a nos apegar tanto ao mundo que Deus tem que fazer algo para nos mostrar claramente que as coisas que nos prendem a este mundo são frágeis e podem se desfazer num se­gundo. E assim despertamos subitamente para o fato de que somos apenas peregrinos neste mundo, e fomos feitos para pensar no céu e na eternidade.

Mansidão] Quão difícil é ser manso em nossa atitude para com os outros e em nosso relacionamento com eles — amar os outros, ter empatia para com eles. Há um certo sentido, eu creio, em que é quase impossível sentirmos empatia, se não conhecemos algo da mesma experiência. Sei muito bem, em meu trabalho como pastor, que nunca teria sido capaz de verdadeira compreensão e simpatia para com certas pessoas, se não tivesse passado pelo mesmo tipo de experiência. Deus às vezes precisa tratar conosco com o propósito de nos lembrar a nossa necessidade de paciência. Ele diz, na verdade: "Você sabe que Eu sou paciente com você; seja paciente com essa outra pessoa!"

Estas, então, são algumas das coisas que nos mostram clara­mente a necessidade de correção. Deus, porque nos ama, porque somos Seus filhos, nos corrige para que eventualmente seja pro­duzido em nós o maravilhoso e incomparável "fruto pacífico de justiça".

Até aqui examinamos o assunto em princípio. No capítulo seguinte espero demonstrar como esta passagem aplica todo esse ensino, e como devemos aplicá-lo a nós mesmos. O grande prin­cípio é que Deus nos corrige porque somos Seus filhos. Se, por­tanto, vocês não estão conscientes desse tipo de tratamento em suas vidas, eu os exorto a examinarem-se a si mesmos, certifican­do-se de que realmente são cristãos, porque: "O Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho". Bendito seja Deus, que Se incumbiu da nossa salvação e do nosso aperfei­çoamento, e que, havendo começado a obra, irá completá-la, e que nos ama tanto que, se não aprendermos as lições voluntaria­mente, nos corrigirá para nos trazer à conformidade com a imagem do Seu amado Filho.

 

18. NO "GINÁSIO" DE DEUS

"E já vos esquecestes da exortação que argumenta convosco como filhos: Filho meu, não desprezes a correção do Senhor, e não des­maies quando por ele fores repreendido; porque o Senhor corrige o que ama, e açoita qualquer que recebe por filho. Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque, que filho há a quem o pai não corrija? Mas, se estais sem disciplina, da qual todos são feitos participantes, sois então bastardos, e não filhos. Além do que tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos? Porque aqueles, na verdade, por um pouco de tempo nos corrigiam como bem lhes parecia; mas este, para nosso proveito, para sermos participantes da sua santidade. E, na verdade, toda a correção, ao presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas depois produz um fruto pacífico de justiça nos exercitados por ela".

Hebreus 12:1-5

Passemos agora a algumas considerações adicionais sobre o ensino bíblico de que Deus produz e promove nossa santificação em parte através de várias coisas que Ele opera em nossas vidas. Acima e além da instrução positiva que Ele nos dá nas Escrituras, Deus trata conosco também de outros modos. Se não respondemos ao ensino, Deus vai tratar conosco em correção e disciplina, se somos Seu povo — e porque somos Seu povo. Em relação a isso, já vimos que há muitas passagens nas Escrituras onde essa doutrina é apresentada e ensinada de forma clara. Mas creio, que de forma geral todos concordam que não há apresentação mais clara disso do que a que encontramos neste capítulo doze da Epístola aos Hebreus, especialmente nos versículos cinco a quinze. Na verdade, pode ser dito que toda a Epístola aos Hebreus é uma exposição ampliada desta grande doutrina dos propósitos de Deus com respeito ao Seu povo, revelados por meio da correção. Já vimos, em nossa consideração geral do assunto, que Deus sem dúvida usa este método particular. De fato, o argumento principal destes versículos é que se experimentamos este tratamento, isso é prova de que somos filhos de Deus; mas se não é assim, então, no mínimo ,isso lança dúvidas se realmente somos Seus filhos. Também consideramos a razão por que Deus nos corrige, e chegamos à conclusão que Ele o faz para nos resguardar de certas tentações que estão sempre nos ameaçando. Há certos perigos à nossa volta nesta vida terrena e precisamos ser protegidos deles — o perigo do orgulho, da auto-satisfação, da presunção, o perigo de nos afastarmos e nos tornarmos mundanos sem o preceber, esses perigos horríveis que estão sempre ameaçando o cristão nesta vida e neste mundo. No lado positivo, vimos que Ele o faz para estimular em nós o crescimento do fruto do Espírito. Não há nada melhor para o desenvolvimento da humil­dade do que a correção, e precisamos dela se vamos ser humildes e mansos. O ensino é que Deus, como nosso Pai, em Sua infinita graça e misericórdia, nos disciplina assim porque Ele "açoita todo o que recebe por filho" e porque "o Senhor corrige o que ama". Essa é a doutrina, esse é o ensino.

Tendo estabelecido esse princípio, vamos continuar nossa con­sideração desta passagem, porque isso não é tudo, não é suficiente. Na verdade, entendo que o argumento deste homem no capítulo doze de Hebreus pode ser colocado assim: a correção, até mesmo a correção aplicada por Deus, não opera em nós automaticamente. O simples fato de sermos corrigidos não significa necessariamente que a correção nos será benéfica. O argumento do autor é que somente derivamos algum benefício da correção quando entendemos o ensino e o aplicamos da maneira correta à nossa vida. Ora, esse, obviamente, é um ponto extremamente importante, porque se pen­samos que nossa santificação é algo que acontece quase automati­camente enquanto permanecemos numa condição totalmente passiva, então estaremos negando a própria essência do argumento deste homem. A correção não opera automaticamente, não é algo mecâ­nico, mesmo quando seus benefícios nos vêm, em última análise, "pela Palavra". A santificação se processa, como disse o Senhor em João, capítulo 17, "pela verdade", é pela aplicação da Palavra em cada passo, em cada aspecto. E isso é verdade particularmente no que se refere a esta questão da correção.

Quero então colocar o argumento, conforme desenvolvido aqui, da seguinte forma. Há uma forma errada de encarar a correção, e há uma forma errada de reagir à correção. Lembrem-se de que vimos que a correção pode vir de muitas maneiras. Pode vir através das circunstâncias, pode assumir a forma de uma perda financeira ou algum problema em nossos negócios ou profissão; pode vir como algo que nos abate e nos deixa perturbados e perplexos; pode vir mediante um desapontamento ou decepção pessoal — a traição de um amigo ou o desmoronamento de alguma profunda esperança que tivemos em nossa vida. Pode vir por meio de doença. Todavia, aqui devo repetir e enfatizar que não estou dizendo que todas essas coisas são necessariamente sempre produzidas por Deus. Não estou dizendo isso. A Bíblia não ensina que tudo que as pessoas sofrem é enviado por Deus; ela ensina que a doença pode ser enviada por Deus, e que Deus às vezes nos corrige por meio dela, bem como através dessas várias outras circunstâncias. Quero deixar isso bem claro. Deus pode usar qualquer uma dessas coisas, mas elas obviamente acontecem com todos, e portanto nunca devemos dizer que qualquer acontecimento desagradável é necessariamente uma correção de Deus.

Há, então, maneiras erradas de se reagir a provações, tribula­ções e correções. Quais são elas? O autor menciona três. A primeira é o perigo de desprezar. Encontramos isso no quinto versículo: "Filho meu, não deprezes a correção do Senhor". Essa é a primeira forma errada de reagir à correção — é encará-la de forma leviana, não lhe dando atenção; colocá-la de lado como algo sem importância, não a levando a sério — apresentando uma fachada de coragem, por assim dizer, não permitindo que a correção nos afete. Vamos pela vida, de forma às vezes descuidada, quando uma dessas coisas nos acontece, mas em vez de analisá-la e considerá-la, permitindo que faça a sua obra em nós, fazemos o possível para ignorá-la, livrar-nos dela ou encará-la com leviandade. Isso é certamente algo que não precisa ser enfatizado, pois é talvez a reação mais comum a provações e tribulações hoje em dia. Estamos vivendo numa época em que as pessoas têm medo de verdadeiras emoções. É uma era muito sentimental, mas há uma diferença fundamental entre senti­mentalismo e emoção. Uma dureza, um empedernimento penetrou na vida. Estamos sempre tentando "fortalecer" nossos nervos e emoções, e consideramos antiquado, ter emoções. O mundo se tornou duro, e todo o modo de vida hoje em dia mostra isso muito claramente. Muitas das coisas que estão desgraçando a vida hoje não poderiam acontecer se as pessoas fossem sensíveis — se tives­sem um mínimo de sensibilidade. Mas, nós nos comportamos de maneira estóica, e mostramos essa fachada de coragem, e o resultado é que quando as coisas não vão bem e Deus está nos corrigindo, não prestamos atenção. Encaramos a correção com leviandade, e em vez de prestarmos atenção, nós deliberadamente a ignoramos, não permitindo que nos perturbe. As Escrituras nos advertem a respeito disso de forma muito definida e solene. Não há nada mais perigoso para a alma do que cultivar essa atitude impessoal a respeito da vida, que é tão comum hoje em dia. É por causa disso que as pessoas hoje têm um apego tão frágil ao marido ou à esposa, um apego tão tênue à família. É por causa disso que podem abandonar suas responsabilidades e pisotear as coisas sagradas. Essa atitude impessoal para com a vida é ensinada e incentivada deliberada­mente, é considerada a marca de um verdadeiro cavalheiro ou uma verdadeira madame — o tipo de pessoa que é cercada por uma concha de aço, que nunca expressa qualquer emoção, e que parece não ter uma verdadeira sensibilidade. E essa atitude pode penetrar a vida cristã e levar pessoas a desprezar até mesmo a correção do Senhor. Elas a encaram com leviandade, recusam-se a dar-lhe atenção ou então a ignoram.

A segunda reação falsa à correção é esta: "E não desmaies quando por ele fores repreendido", ainda no quinto versículo. Esta é uma citação do Velho Testamento, do livro de Provérbios, e se refere ao perigo de ficar desanimado com a correção, o perigo de desmaiar por causa dela, o perigo de desistir e se entregar, o perigo de se sentir desesperançado. Todos estamos familiarizados com isso. Algo acontece conosco e dizemos: "Eu não posso suportar isto". O coração desanima, e aquilo nos esmaga. Nós desistimos e nos entregamos; desmaiamos por causa da correção e ficamos com­pletamente desanimados. Isso, por sua vez, nos leva à tendência de questionar por que aquilo aconteceu, e se Deus está sendo justo. Nós reclamamos, resmungamos e ficamos ressentidos. Essa era a condição destes hebreus cristãos. Diziam: "Nós pensávamos que quando nos tornamos cristãos, íamos passar a ter uma vida maravilhosa, mas vejam o que nos está acontecendo! Por que estas coisas acontecem conosco? Estaria certo? Será que essa fé cristã é verdadeira?" E eles estavam começando a voltar à sua velha religião. Essa é a razão porque esta epístola foi escrita — porque eles estavam desanimados por causa das suas provações. Estavam desmaiando porque o Senhor os tinha provado. "Não desmaiem" — "não desmaies quando por ele fores repreendido". Esse sentimento de desespero tende a se infiltrar, e dizemos: "Tudo isto realmente é demais para mim. Não posso continuar. Ah, quem me dera asas como de pomba! voaria, e estaria em descanso". Todos conhecemos esse sentimento; reagimos assim com demasiada frequência à cor­reção do Senhor, em vez de enfrentá-la da forma como este homem nos aconselha a fazer. Somos muito rápidos em erguer as mãos para o alto e dizer: "Não, não posso, isto é demais. Por que, por que sou tratado desta maneira?" No entanto, não somos os primeiros a sentir isso. Leiam os Salmos e verão que o salmista atravessou essa fase muitas vezes. Mas é completamente errado, uma reação muito falsa à correção e disciplina do Senhor, e à maneira paternal como Ele nos trata.

A terceira reação errada é mencionada no versículo quinze: "E que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e por ela muitos se contaminem". Esta é uma outra reação que, infeliz­mente, todos conhecemos muito bem. Há pessoas que reagem às provações, testes e correções da vida, ficando amarguradas. Não conheço nada mais triste na vida, e certamente não há nada mais triste na minha vida e obra e experiência como um ministro de Deus, do que observar os efeitos das tribulações e provações na vida de certas pessoas. Tenho conhecido pessoas que, antes de serem assaltadas por infortúnios, pareciam muito amigáveis e sim­páticas, mas observei que quando tais coisas lhes aconteceram, tornaram-se amargas, egocêntricas, difíceis — até mesmo para com aqueles que tentaram ajudá-las e estavam ansiosos por fazê-lo. Elas se voltaram para si mesmas, sentindo que o mundo todo estava contra elas. Tais pessoas não podem ser ajudadas; a amargura entra em suas almas, aparece em seus rostos, e até mesmo em suas apa­rências. Uma completa mudança parece se dar com elas. Muitas vezes nós inconscientemente proclamamos o que somos pela maneira como reagimos às coisas que nos acontecem. Estas coisas que nos acontecem na vida provam-nos no mais profundo do nosso ser, e revelam se realmente somos filhos de Deus ou não. Aqueles que não são filhos de Deus geralmente ficam amargurados quando lhes sobrevêm infortúnios. Às vezes, temporariamente, até mesmo os filhos de Deus reagem assim, e precisam ser advertidos a respeito desta reação à disciplina e provação — a respeito, do perigo desta raiz de amargura.

Se somos culpados de qualquer uma destas três reações, as coisas que nos acontecem não nos ajudarão. Até mesmo as çorreções do Senhor não poderão nos ajudar se reagirmos dessa forma. Se as ignorarmos, se desmaiarmos sob seu peso, ou ficarmos amargurados por causa delas, não seremos beneficiados. A própria correção que nos foi enviada por Deus, e que foi medida pelo próprio Deus para o nosso bem, não nos beneficiará em nada.

É por isso que este homem exorta as pessoas a quem está escrevendo para que enfrentem estas coisas da maneira correta. E qual é a maneira correta? Vamos examinar a questão positiva­mente. A primeira coisa que ele nos diz é que devemos aprender a nos comportar como filhos, e não como crianças. Esta é uma distinção importante. O que ele realmente está dizendo é: "Vocês se esqueceram da exortação que argumenta com vocês como pessoas adultas — como filhos. Vocês já não são crianças". Nunca houve uma criança que não tenha encarado correção da forma errada. Quando somos crianças, sempre pensamos que estamos sendo trata­dos com excessiva severidade, que nossos pais não são justos, e que não merecemos aquilo. Essa é a reação da criança, e, espiritual­mente, muitos de nós permanecemos crianças. Mas este homem diz: "Lembrem-se de que não são crianças. Vocês são adultos, são filhos, são pessoas amadurecidas". E sua exortação é: "Tenham domínio próprio, não se comportem como crianças". Observem a sensatez das Escrituras, e a maneira como elas se dirigem a nós: "Vocês são pessoas adultas; então, parem de desmaiar, acabem com as lamúrias e o choro, parem de agir como crianças emburradas. Vocês dizem que são adultos, mas estão mostrando que ainda são bebés, ao se comportarem assim".

Que devemos fazer, então, se somos adultos? Encontramos uma série de exortações no versículo cinco. Ele começa com uma negativa, em forma de repreensão, dizendo: "Já vos esquecestes da exortação". Então, é óbvio que a coisa correta a fazer é lembrar a palavra de exortação. O autor, na verdade, está dizendo: "Vocês, cristãos hebreus, e todos os outros como vocês, estão caindo nessas arma­dilhas, mas não têm qualquer desculpa. Se os cristãos gentios fizessem isso, teriam certas desculpas; mas vocês não têm desculpa. Vocês têm o Velho Testamento; se tão somente lessem o livro de Provérbios, e realmente o considerassem e aplicassem, nunca rea­giriam da forma como estão reagindo — lembrem-se da palavra de exortação". E, aplicando isso a nós mesmos, podemos assumir que cada vez que alguma provação nos assalta nesta vida e neste mundo, nunca devemos olhar para a situação em si mesma. Como cristãos, devemos tomar tudo e colocá-lo imediatamente no contexto da Bíblia. "Lembrem-se da palavra de exortação". Em certo sentido essa é a grande diferença entre o incrédulo e o cristão. Quando alguma coisa errada acontece na vida do incrédulo, o que ele tem para sustentá-lo? Nada além da sabedoria do mundo e a forma como o mundo reage, e isso não ajuda. O cristão, todavia, está numa posição completamente diferente. Ele tem a Bíblia, e devia imediatamente colocar qualquer circunstância no contexto da Pala­vra de Deus. O cristão não reage às circunstâncias da forma que o mundo reage. Ele pergunta: "O que dizem as Escrituras sobre isso?" "A palavra de exortação". O cristão traz isso à cena, e o aplica. Coloca tudo nesse contexto. Que criaturas insensatas nós somos! Quantas vezes somos culpados de agir como o mundo age, em vez de agir como cristãos. Vamos lembrar que somos adultos, que somos filhos de Deus, que temos a Palavra de Deus. Avaliem a situação, qualquer que ela seja, no contexto da Palavra de Deus.

Que vem a seguir? A outra parte deste argumento, ainda no versículo cinco, é que devemos prestar atenção e seguir os argu­mentos da Palavra de Deus. "E já vos esquecestes da exortação que argumenta convosco como a filhos". Ora, essa palavra "argumentar" tem o sentido de "apresentar razões, persuadir". Isso é algo que me fascina e emociona. A Palavra de Deus não nos dá simplesmente uma consolação geral; ela sempre nos dá um argumento. Não há nada que eu abomino mais do que uma leitura sentimental das Escrituras. Há muitas pessoas que lêem a Bíblia de uma forma puramente sentimental. Estão enfrentando algum problema e não sabem o que fazer. Dizem: "Vou ler um Salmo. É tão repousante! O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará". Transformam-no em uma espécie de encantamento, e tomam os Salmos como outra pessoa tomaria uma droga. Essa não é a forma de se ler as Escrituras. "A palavra de exortação argumenta convosco" — ela apresenta razões, persuade. E devemos seguir essa lógica, e examinar as Escrituras de forma inteligente. Nunca aplicaremos inteligência demais à nossa leitura da Bíblia; ela não foi dada simplesmente para nos trazer conforto e alívio de uma forma geral. Analise o argumento; deixem que as Escrituras debatam com vocês.

A pergunta seguinte, obviamente, é: Qual é o argumento? Nem preciso me deter nisso porque, de certa forma, creio que já tratei da questão, mas vou resumi-la brevemente. O grande argumento é que Deus é quem está fazendo isso, e Ele está fazendo isso com vocês porque são Seus filhos. Isso é expresso aqui de várias formas, mas em nenhum outro lugar é colocado mais claramente do que nos versículos nove e dez: "Além do que tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos?" Deus é nosso Pai espiritual, o Pai da nova vida que está em nós, não a vida carnal e terrena, mas a vida espiritual. Deus, portanto, é quem está fazendo isso conosco, e está fazendo isso porque somos Seus filhos; Ele o está fazendo para o nosso bem, porque somos Seus filhos. Esse é o argumento, essa é a verdade que precisamos apreender. Por isso, não reagimos de forma geral, não desmaiamos nem tentamos ignorar ou rejeitar com leviandade a correção. Toda a nossa atitude mudou. Dizemos: "Deus está por trás disso, e está fazendo isso comigo porque sou Seu filho, porque não pertenço ao mundo, porque Ele enviou Seu Filho para morrer por mim, e Ele me destinou para o céu. Deus está por trás disso, e tudo está sendo feito para o meu bem".

É imperativo, todavia, que sigamos o argumento referente à forma como Deus trata conosco. Está no versículo onze: "E, na verdade, toda correção, no presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas depois produz um fruto pacífico de justiça..." Mas ele ainda não terminou. Acrescenta: "... nos exercitados por ela". O segredo está nesta expressão — "nos exercitados por ela". As únicas pessoas que serão beneficiadas pela correção, diz o autor, são aquelas que "são exercitadas por ela" — aquelas que se sub­metem ao tratamento de Deus. Se o ignorarmos, ou não lhe dermos atenção, o tratamento não nos fará qualquer bem; se desmaiarmos por causa dele, ou ficarmos amargurados, ele não nos trará nenhum proveito. Ele somente nos beneficiará se nos submetermos ao processo.

Qual é o processo? Nas palavras deste homem, o processo é este: ele nos diz que Deus fará estas coisas conosco, colocando-nos num ginásio. Esse é o sentido original da palavra que é traduzida como "exercitar", e apresenta um quadro maravilhoso. Dizem que a raiz desta palavra "ginásio" é uma palavra que significa "ser completamente desnudado". Então, o quadro que temos aqui é o de alguém que é levado para um ginásio e ali ordenam que se desnude completamente.

Por que devemos fazer isso? Por duas razões principais. Obvia­mente, a primeira é que possamos realizar os exercícios sem o impedimento de roupas. "Deixemos todo o embaraço, e o pecado que tão de perto nos rodeia". Mas há mais uma razão porque deve­mos nos desnudar. Nós não entramos nesse ginásio por conta própria para fazer os exercícios. O Instrutor nos leva, e Ele nos examina. Ele nos examina para verificar se há equilíbria e simetria em nossa forma física. Os gregos se interessavam muito por isso. Iam aos ginásios para cultivar o corpo, e a simetria das proporções físicas. Então o Instrutor nos desnuda para ver em que áreas pre­cisamos de um pouco de exercício extra para desenvolver certos músculos, ou corrigir um defeito de postura. Este é o quadro apre­sentado aqui. Estamos num ginásio, e o Instrutor está olhando para nós, dizendo o que devemos fazer e fazendo-nos passar pelos exercícios.

Sinto que há aqui uma espécie de quadro duplo; pelo menos podemos usar este quadro de duas formas diferentes. Podemos pensar nele simplesmente em termos de um homem que precisa de exercício. Ele foi negligente com seu corpo, foi indolente e frouxo num sentido físico, então o instrutor o leva para o ginásio e o faz passar pelos exercícios para que ele possa desenvolver uma forma física perfeita. Mas não posso deixar de sentir, à luz do contexto, que aqui há mais uma sugestão. Observem os versículos doze e treze: "Portanto tornai a levantar as mãos cansadas, e os joelhos desconjuntados, e fazei veredas direitas para os vossos pés, para que o que manqueja se não desvie inteiramente, antes seja sarado". Não posso deixar de visualizar aqui o quadro de uma pessoa que está sofrendo de alguma doença das articulações. Observem que menciona joelhos desconjuntados, e parece haver uma fraqueza geral. Esta pessoa ficou enferma, com problemas nas juntas; e quando este é o caso, em geral observamos que não só o joelho é fraco, mas os músculos à volta dele se tornam débeis. Vejo aqui, então, um quadro maravilhoso do que chamamos de fisioterapia. Não só é necessário tratar da enfermidade das juntas, mas também o paciente precisa submeter-se a vários exercícios e movimentos. Massagens apenas não são suficientes; é preciso levar o paciente a fazer a sua parte, movimentando-se ativamente.

Vamos manter estas duas idéias em mente, enquanto examina­mos o ensino em detalhe. Este homem diz que Deus, ao fazer as coisas que está fazendo conosco, está de certa forma nos colocando num ginásio espiritual. Ele nos desnuda, Ele nos examina, e sabe exatamente o que precisamos. Agora tudo que precisamos fazer é nos submeter a Ele e fazer exatamente o que Ele nos diz. Ouçam o Instrutor, façam os exercícios, e se fizerem isso, obterão o "fruto pacífico de justiça". O que significa tudo isto? Se for interpretado, significa que a primeira coisa que precisamos fazer é examinar a nós mesmos, ou nos submeter ao exame da Palavra de Deus. No momento em que uma adversidade nos sobrevêm, devemos dizer: "Estou no ginásio. Alguma coisa deve estar acontecendo. O que está errado? Qual é o problema?" Essa é a maneira em que o cristão sempre deveria reagir quando enfrenta uma adversidade — seja doença, acidente, fracasso, uma decepção, a morte de alguém. Não importa o que seja: na base deste ensino, a primeira coisa que devo dizer a mim mesmo é: 'Por que isso aconteceu comigo? Será que me desviei em algum ponto?" Se lermos o Salmo 119, encontraremos o salmista dizendo: "Foi-me bom ter sido afligido. . . Antes de ser afligido, andava errado; mas agora guardo a tua palavra". Ele não tinha percebido que estava se desviando, mas sua aflição o fez pensar, e ele diz: "Dou graças a Deus por isso, está sendo bom para mim, tornei-me uma pessoa melhor por causa disso; eu estava me desviando". Portanto, sempre devemos, antes de tudo, examinar a nós mesmos, e dizer: "Será que tenho sido negligente em minha vida espiritual, tenho me esquecido de Deus? Será que me tornei presunçoso e satisfeito comigo mesmo? Será que pequei, que fiz alguma coisa errada?" Devemos examinar a nós mesmos, profundamente, tentando descobrir a causa. Nada disso é motivo de alegria, como nos diz o autor, mas precisamos vasculhar a nossa vida, examinar as profundezas do nosso ser, por mais doloroso que seja, para ver se há algum ponto em que temos nos desviado sem o perceber. Precisamos enfrentar a situação com honestidade.

Segundo, precisamos reconhecê-lo e confessá-lo a Deus. Se discernirmos o pecado, se descobrirmos o problema, se encontrar­mos indolência ou qualquer outra coisa errada ou indigna, devemos imediatamente ir a Deus, confessando-o com sinceridade e de forma completa. Esta é uma parte vital dos exercícios, e nunca nos recupe­raremos, se não fizermos isso. Deus ordena que o façamos, então vamos fazê-lo. Vamos diretamente a Ele. Pode também incluir a necessidade de procurar outra pessoa; pode significar ter que pedir  perdão,  ou  confessar  alguma  coisa.   Nem  sempre  significa isso, mas se Deus nos mandar fazê-lo, precisamos fazê-lo. Devemos prestar ouvidos à voz em nosso espírito (a voz do Instrutor no ginásio) — a voz de Deus falando conosco; e ao nos examinarmos, devemos prestar atenção a ela e dizer: "Eu o farei, custe o que custar". Devemos realizar os exercícios nos mínimos detalhes. De­vemos reconhecer o erro, o fracasso, e confessar o pecado a Deus.

E depois? Bem, tendo feito o que podemos chamar uma espécie de processo de desprendimento, agora começamos a fazer exercícios positivos. Chegamos ao versículo doze: "Portanto" (obser­vem a lógica do argumento) "tornai a levantar as mãos cansadas, e os joelhos desconjuntados". Este é o Seu modo de nos dizer que devemos ter domínio próprio, que devemos ser firmes, andar eretos, ser vigorosos. Minha ilustração das juntas se prova muito útil neste ponto. Qualquer pessoa que já teve reumatismo em alguma forma sabe que todos instintivamente tendemos a proteger e cuidar de membros doloridos. Se sinto dor no meu joelho, evito dobrá-lo. Todos protegemos e resguardamos áreas doloridas. E fazemos exata­mente a mesma coisa espiritualmente. O que este homem nos exorta a fazer, portanto, no versículo doze, é parar de proteger nossas juntas doloridas! Movimento é a melhor coisa para elas num certo estágio. "Portanto tornai a levantar as mãos cansadas, e os joelhos desconjuntados". "Mas", diz alguém, "não tenho a força nem o poder para fazer isso". Não tem? Pois o Instrutor diz: "Erga-se, endireite-se, esteja pronto para se movimentar; quanto mais se mover, melhor será".

Isto é algo que é literalmente verdade na esfera física, e sempre vamos receber essa instrução de qualquer pessoa que realmente conhece o assunto. Mexam-se, não se deixem enrijecer, mantenham as juntas em movimento, mantenham-nas flexíveis. E isso é igual­mente verdadeiro no plano espiritual. Acaso, todos nós já não vimos pessoas que, ao serem molestadas por alguma provação, assumem uma certa pose? Sentem pena de si mesmas, e querem que o resto do mundo também tenha pena delas. "Deixem de lado essa pose", diz este homem. "Larguem disso, levantem as mãos cansadas, forta­leçam os joelhos desconjuntados, levantem a cabeça. Lembrem que são adultos; tenham domínio próprio". Esta é a hora de fazer isso; não no começo. Fazemos isso depois de receber a instrução e depois de passar pela fase de desprendimento.

E o que mais? A resposta está no versículo treze: "E fazei veredas direitas para os vossos pés, para que o que manqueja se não desvie inteiramente, antes seja sarado". "Fazei veredas direitas para os vossos pés". Por que? O argumento é muito razoável. Se a vereda não é plana e direita, a articulação doente pode se deslocar, mas se fizermos uma vereda plana e direita para os mancos andarem, vai ajudá-los a serem curados. Percebemos então a importância de uma vereda direita. Mas o que significa espiritualmente? Signi­fica que, tendo feito tudo o que consideramos até aqui, dizemos a nós mesmos: "Sim, eu me desviei. Preciso voltar ao caminho estreito''. Então traçamos novamente o caminho da santidade, vol­tamos à estrada de Deus, compreendemos mais uma vez a necessi­dade de disciplina: decidimos parar de fazer certas coisas, fazemos uma vereda direita para os nossos pés. E então, ao trilharmos novamente este caminho da santidade, descobriremos que nossos joelhos trôpegos estão sendo fortalecidos e todo o nosso sistema é revigorado como que por um tônico.

A última instrução está no versículo quatorze: "Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor." Esta palavra "segui" não é suficientemente forte. O que o autor realmente diz é "persegui" — "persegui a paz", "persegui santi­dade", ou, numa expressão mais forte ainda, ele diz: "cace a paz, cace a santidade" — lute por isso. Não entendo como alguém que já leu as Escrituras pode aceitar e adotar qualquer idéia de passivi­dade com respeito ao caminho da santidade. Aqui está um homem que nos diz que devemos ansiar por santidade com todas as nossas forças até que a alcancemos, que devemos seguí-la, perseguí-la, caçá-la — paz e santidade, paz com outras pessoas, sim, e tudo o que pudermos fazer para sermos santos e sermos como Deus. Esses são os exercícios mediante os quais Deus nos faz passar em Seu ginásio; esse é o meio que Deus usa para nos fazer realmente Seus filhos.

Quero terminar com uma palavra de encorajamento. "Toda a correção, no presente, não parece ser de gozo. senão de tristeza, mas depois produz um fruto pacífico de justiça". Este processo é muito doloroso no momento; mas ouçam a promessa: "Mas depois produz um fruto pacífico de justiça". Não se preocupem com a dor, continuem a mover esses músculos enrijecidos, e vão descobrir que eles logo se tornarão flexíveis. Continuem com os exercícios, porque depois produzirão "um fruto pacífico de justiça". Quanto mais formos treinados nesse ginásio, melhor, porque Deus está nos preparando não somente para esta vida, mas para a eternidade. Exercícios físicos são proveitosos apenas por um tempo, e nossos pais   terrenos  nos   disciplinam   por  apenas   alguns   anos  enquanto estamos nesta terra; mas nossa vida neste mundo é uma preparação para a eternidade. Não é este mundo que importa, é o que está por vir; não é o aqui e agora que é importante, mas o eterno. Deus está nos preparando nesta vida para bênção e glória eterna.

Lembrem-se também, em conexão com isso, a quem estamos indo: "A santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor". Se queremos ver a Deus, é melhor que façamos os exercícios neste ginásio com toda a dedicação. "A santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor" — versículo quatorze — e Deus está nos fazendo passar por estes exercícios para nos tornar santos. Se nós, portanto, não prestarmos atenção a esse tratamento que Deus está nos dando, isso significa que não compreendemos realmente quem somos, ou significa que nem somos filhos de Deus. Se realmente queremos encontrar a Deus e ir para o céu, precisamos nos submeter e fazer exatamente o que Ele nos diz, porque Ele está nos fazendo passar por esse processo com o propósito de promover nossa santificação. É tudo para o nosso proveito, para que possamos nos tornar parti­cipantes da Sua própria santidade.

Finalmente, e acima de tudo para o nosso encorajamento, olhemos para Aquele que Se submeteu a tudo isso, embora não tivesse necessidade de fazê-lo — "Olhando para Jesus, autor e consumador da fé, o qual pelo gozo que lhe estava proposto su­portou a cruz, desprezando a afronta". Ele sabia o que significava, e disse: "Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia não seja como eu quero, mas como tu queres". Ele suportou tudo pela alegria que Lhe estava proposta, e por nossa salvação. Então, quando sentirmos que a disciplina é demais e que é muito dolorosa, além de tudo o que eu já disse, olhemos para Ele; vamos continuar olhando para Ele e seguindo-O. E ao fazermos isso, certamente descobriremos que aquilo que no momento parecia tão difícil e doloroso acabará por trazer, mesmo nesta vida e neste mundo, e ainda mais na glória, este fruto maravilhoso de saúde e justiça, de paz e do gozo de Deus. Não sei o que vocês sentem, mas ao meditar recentemente nesta grande palavra, eu digo honestamente na pre­sença de Deus, que não há nada que me dá maior conforto e conso­lação do que isso, de saber que estou nas mãos de Deus, e que Ele me ama tanto, e está tão determinado a me levar à santificação e ao céu, que se eu não prestar atenção à Sua Palavra nem seguí-la, Ele tratará comigo de outra forma. Ele me fará chegar lá. É alar­mante, mas também glorioso. "Nada nos separará do amor cie Deus que está em Cristo |esus nosso Senhor". Tome os exercícios meu amigo, corra para o ginásio, faça o que Ele mandar, examine-se a si mesmo, ponha tudo em prática, custe o que custar, não importa quão grande seja a dor, e "entre no gozo do seu Senhor".

 

19. A PAZ DE DEUS

"Não estejais inquietos por coisa alguma: antes as vossas petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplicas, com ação de graças. E a paz de Deus, que excede todo o entendi­mento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus".

Filipenses 4:6-7

Esta é, sem dúvida, uma das declarações mais nobres e mais consoladoras que pode ser encontrada em qualquer peça literária já escrita. Somos tentados a dizer isso a respeito de muitas passa­gens das Escrituras, mas do ponto de vista de nossa vida pessoal neste mundo, e do ponto de vista da experiência prática, não há declaração que ofereça mais conforto para o povo de Deus, do que estes dois versículos. Neles o apóstolo continua com o que é não só o tema deste quarto capítulo de Filipenses, mas o tema principal de toda a epístola. Ele está preocupado com a felicidade e a alegria dos membros da igreja em Filipos, e escreveu-lhes a exortação específica de que deviam "regozijar-se sempre no Senhor" — e repetiu a exortação, dizendo: "E outra vez vos digo: rego­zijai-vos". Em seu grande desejo de ver essas pessoas experimen­tando e mantendo esse constante regozijo no Senhor, o apóstolo considerou várias forças e fatores que tendem a roubar a alegria do cristão, levando-o a um nível inferior de vida cristã. Ele tinha dito: "Seja a vossa equidade notória a todos os homens. Perto está o Senhor". Ele mostrou como um espírito irrequieto, um desejo frenético de seguir nosso próprio caminho, muitas vezes pode roubar a nossa alegria.

Nestes versículos Paulo prossegue considerando outro fator que talvez seja mais problemático do que qualquer um dos demais que tendem a roubar nossa alegria no Senhor, e é o que podemos chamar "a tirania das circunstâncias", as coisas que nos acontecem.

Quão numerosas são. e com que frequência nos acometem! Aqui o apóstolo trata da questão duma forma definitiva. É notável observar, com que frequência este assunto é considerado na Bíblia. Temos uma boa base para declarar que todas as espístolas do Novo Testamento abordam este problema, e foram designadas a ajudar os cristãos primitivos a vencer a tirania das circunstâncias. Eles viviam num mundo cheio de dificuldades, e tinham que sofrer e suportar muitas coisas; e estes homens chamados por Deus escre­veram as epístolas para lhes mostrar como vencer essas coisas. É o grande tema do Novo Testamento; mas também é encontrado no Velho Testamento. Por exemplo, os Salmos três e quatro expres­sam isso com perfeição. O grande problema da vida, num certo sentido, é deitar-se para descansar e dormir. "Eu me deitei e dormi", diz o salmista. Qualquer pessoa pode se deitar, mas a pergunta é: ela pode dormir? O salmista conta que estava cercado por inimigos, e por dificuldades e provações, e o seu poderoso testemunho é que, apesar de tudo isso, ele podia se deitar e dormir, e acordar seguro e confiante de manhã, porque confiava no Senhor. Por que? Porque o Senhor estava com ele, guardando-o.

Esse é o tema de tantas passagens da Bíblia, tanto do Velho como do Novo Testamento, que é obviamente um assunto de su­prema importância. Sinto às vezes que não há teste maior da nossa fé e da nossa posição cristã. Ê uma coisa dizer que endossa­mos a fé cristã, e, tendo lido a Bíblia e absorvido a sua doutrina, dizer: "Sim. eu creio em tudo isso, é a fé pela qual eu vivo". ,as é outra coisa completamente diferente, permitir que essa fé nos conduza em vitória e triunfo, e mantenha nossa alegria, quando tudo parece estar contra nós, quase nos levando ao desespero. É um teste delicado e sutil da nossa posição, por ser tão essencial­mente prático, tão longe da mera teoria. Estamos na posição, estamos na situação, essas coisas estão acontecendo a nós, e a questão é: qual é o valor da nossa fé nessa situação? Ela nos diferencia das pessoas que não têm fé? Isso obviamente é uma questão de grande importância, não só para nossa paz e consolo, mas também, especialmente numa época como esta, é importante do ponto de vista do nosso testemunho cristão. As pessoas hoje nos dizem que são realistas e práticas. Dizem que não estão inte­ressadas em doutrina, não estão muito interessadas em ouvir o que temos a dizer, mas se elas vêem um grupo de pessoas que parecem possuir algo que as capacita a triunfar na vida, elas ime­diatamente  ficarão interessadas.   Isso  porque sentem-se  infelizes, frustradas, inseguras e temerosas. Se, estando nessa situação, vêem pessoas que parecem ter paz, calma e tranquilidade, então estarão prontas a prestar atenção ao que essas pessoas têm a dizer. Por­tanto, convém que consideremos cuidadosamente o que o apóstolo tem a dizer nestas declarações magistrais sobre como tratar da tirania das circunstâncias e situações — não só para nossa felici­dade e contínua alegria no Senhor, mas também para nosso teste­munho nestes dias difíceis.

A questão parece se dividir a si mesma de forma bastante simples. Antes de tudo, o apóstolo diz que há certas coisas que devemos evitar. "Não estejais inquietos por coisa alguma." Essa é uma injunção negativa — algo a evitar. E precisamos entender bem o sentido desta expressão — "não estejais inquietos". É assim que a Edição Revista e Corrigida traduz o texto; mas a Edição Revista e Atualizada o expressa ainda melhor: "Não andeis ansio­sos". "Inquieto" significa "sem quietude" — sem tranquilidade, cheio de nervosa ansiedade, com a tendência de se preocupar ou ponderar demais as coisas. É a mesma palavra que o Senhor usou no sermão do monte, na passagem de Mateus, capítulo seis: "Não andeis cuidadosos. . ." Significa que não devemos andar ansiosos, preocupados, que não devemos ponderar ou meditar demais nas circunstâncias, não ter essa nervosa solicitude a respeito da situa­ção. Esse é o significado desse termo.

A propósito, é importante compreender que em nenhum lugar a Bíblia ensina que não devemos cuidar das nossas necessidades diárias ou que não devemos usar de bom senso. Ela jamais enco­raja a preguiça. Ao escrever à igreja de Tessalônica, Paulo disse que "se alguém não quiser trabalhar, não coma também". Esta palavra, "inquietos", portanto, não significa "tomar providências sábias"; ela fala de ansiedade, de preocupação desgastante e ator­mentadora. É isso que o apóstolo diz que devemos evitar a todo custo.

Mas ele não termina com essa injunção negativa. Temos aqui uma porção profunda de psicologia bíblica. O apóstolo mostra como tendemos a cair nesse estado de ansiedade mórbida, e deixa claro que é tudo devido à atividade do coração e da mente — "E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus". Ou, como diz a Edição Revista e Atualizada: "Guardará os vossos corações e as vossas mentes em Cristo Jesus". O problema está na mente e no coração; são eles que tendem a produzir esse estado de ansiedade, de preocupação e solicitude mórbida.

Esta, como eu já disse, é uma porção profunda de psicologia, e estou enfatizando isso porque mais adiante vamos ver como é importante compreender a explicação psicológica do apóstolo a respeito desta condição, para aplicar a nós mesmos a solução que ele oferece. O que Paulo está dizendo, em outras palavras é que podemos controlar muitas coisas em nossa vida, e muitas das circunstâncias ao nosso redor, mas não podemos controlar nosso coração e nossa mente. "Este estado de ansiedade", Paulo diz, algo que de certa forma está fora do controle; acontece apesar de nós mesmos". Como isso é verdadeiro na experiência! Pro­curem lembrar uma ocasião em que vocês estiveram nessa condi­ção de ansiedade. Lembrem-se como não podia ser controlada? Vocês ficaram acordados, e teriam dado tudo para poder dormir.. Mas suas mentes não os deixaram dormir, seus corações não os deixaram dormir. O coração e a mente estão fora de controle. Daríamos tudo para conseguir com que o coração e a mente paras­sem de pensar, ponderar e girar em torno de um assunto, man­tendo-nos acordados. Temos aqui uma profunda verdade psicoló­gica, e o apóstolo não hesita em usá-la. Aqui mais uma vez nos deparamos com o maravilhoso realismo das Escrituras, sua abso­luta honestidade, seu reconhecimento do homem como ele é. O apóstolo nos diz que desta maneira o coração e a mente, ou, se preferirmos, as profundezas do nosso ser, tendem a produzir esse estado de ansiedade. Aqui o "coração" não significa apenas a sede das emoções; significa a parte central da nossa personali­dade. A "mente" pode ser traduzida, se preferirmos, pelo termo "pensamento". Todos experimentamos esta condição, e sabemos exatamente do que o apóstolo está falando. O coração tem senti­mentos e emoções. Se uma pessoa querida adoece, como o coração começa a trabalhar! Nossa preocupação, o próprio amor que sen­timos pela pessoa, é a causa da nossa ansiedade. Se não sentísse­mos nada pela pessoa, não ficaríamos ansiosos. Vemos aqui como o coração e as afeições nos influenciam. Não só isso, mas também a imaginação! Que causa prolífica de ansiedade é a imaginação! Somos confrontados por uma situação mas se fosse apenas isso, provavelmente nos deitaríamos e dormiríamos sem problemas. Mas a imaginação começa a funcionar, e começamos a pensar: "E se tal coisa acontecer? Tudo está razoavelmente sob controle hoje, mas e se amanhã de manhã a febre subir, ou se esse problema causar outra condição?" E ficamos pensando nisso por horas, agitados por essas imaginações. E assim, nossos corações nos mantém acor­dados.

Ou então, não tanto no setor da imaginação, mas no setor da mente e do pensamento em si, começamos a considerar possibili­dades e imaginar situações e tratar delas e analisá-las, pensando: "Se tal coisa acontecer, precisaremos tomar estas providências, ou teremos de fazer isto ou aquilo". Vejam como funciona. O coração e a mente estão no controle. Somos vítimas dos pensamentos; nesta condição de ansiedade, somos as vítimas; são o coração e' a mente, esses poderes dentro de nós que estão fora do nosso controle, que exercem senhorio, tirania mesmo, sobre nós. O apóstolo diz que isso é algo que precisamos evitar a todo custo. Não preciso me deter muito na razão para isso. Creio que todos temos conheci­mento dela por experiência. Neste estado de ansiedade, passamos o tempo todo raciocinando e argumentando e correndo atrás de imaginações. E somos inúteis quando estamos nessa condição! Não queremos falar com outras pessoas. Podemos dar a impressão de estar ouvindo o que dizem numa conversa, mas nossa mente está debatendo todas essas possibilidades; e assim, nosso testemunho é ineficaz; não somos de nenhuma valia para os outros, e acima de tudo perdemos nossa alegria no Senhor.

Todavia, passemos para o segundo princípio. O que precisa­mos fazer para evitar esse tumulto interior? O que o apóstolo nos ensina aqui?

É aqui que passamos para o que é peculiar e especificamente cristão. Se eu não fizer outra coisa, eu espero poder mostrar a diferença eterna entre a forma cristã de tratar da ansiedade, e o método psicológico de tratar dela. Alguns amigos meus acham que sou um pouco crítico, em relação à psicologia, mas quero defender meu ponto de vista. Creio que a psicologia é um dos perigos mais sutis em conexão com a fé cristã. Às vezes as pessoas pensam que estão sendo sustentadas pela fé cristã, quando na verdade o que está em operação é um mero mecanismo psicoló­gico; e esse mecanismo falha quando uma crise real se apresenta. Não pregamos psicologia — pregamos a fé cristã.

Quero então mostrar a diferença entre o meio cristão de tratar da ansiedade, e este outro método. O que o apóstolo diz que devemos fazer quando ameaçados pela ansiedade? Ele não se limita a dizer: "Parem de se preocupar". Isso é o que o senso comum e a psico­logia nos dizem: "Parem de se preocupar, tenham domínio próprio." O apóstolo não diz isso, pela simples razão que é inútil dizer a uma pessoa nessa condição que pare de se preocupar. A propósito, também não é boa psicologia. Isso é o que chamam de repressão. Se alguém é uma pessoa de vontade forte, pode eliminar essas coisas da sua mente consciente, mas o resultado é que elas passam a operar na sua mente subconsciente, e isso é que se chama repressão. É uma condição pior do que a própria ansie­dade. Mas não só isso — é perda de tempo, dizer à pessoa comum que pare de se preocupar. É por isso que digo que a psicologia de Paulo é tão importante. Pois esta é exatamente a coisa que não podem fazer. Gostariam de poder, mas não podem. É como dizer a um alcoólatra consumado que pare de beber. Ele não pode, porque é prisioneiro desse vício, dessa paixão. Da mesma forma, a Bíblia não diz: "Não se preocupe, isso talvez nunca aconteça". Este é um slogan psicológico popular, e as pessoas pensam que é maravilhoso — "Por que se preocupar? Talvez nunca venha a acontecer!" Mas se alguém me diz isso quando estou nesse estado, minha reação é: "Sim, mas pode acontecer. Esse é meu problema. Que faço, se acontecer? Essa é a essência do meu problema, então não me ajuda dizer que talvez nunca venha a acontecer".

A terceira negativa é esta. Alguns tendem a dizer a essas pobres pessoas infelizes que estão ansiosas e preocupadas: "Não deve se preocupar, meu amigo, a preocupação é pecado, e toda a preocupação do mundo não vai fazer qualquer diferença". Isso é verdade, e é bom senso, sadio e correto. Os psicólogos, por sua vez, dizem: "Não desperdice suas energias. A sua preocupação não vai afetar a situação de maneira nenhuma". "Ah, sim", eu digo, "está muito bem, sei que isso é verdade; mas, sabe, não toca a fonte do meu problema, por uma simples razão. Estou preo­cupado com o que pode acontecer. Concordo com o que você diz, que a preocupação não vai mudar em nada a situação, mas a situa­ção permanece, e é ela que está me causando esta ansiedade. O que você está dizendo é verdade, mas não resolve o meu pro­blema particular". Em outras palavras, todos estes métodos não conseguem resolver a situação, porque eles nunca entenderam o poder daquilo que Paulo chama de "coração" e "mente" — estas coisas que nos controlam. É por isso que nenhum desses métodos da psicologia e do senso comum são de qualquer valia.

O que, então, o apóstolo nos diz? Ele apresenta a solução na forma de uma injunção positiva. "Vossas petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus". Essa é a resposta. Mas é de importância vital que saibamos precisamente como tratar disso. O apóstolo diz: "Vossas petições sejam conhecidas diante de Deus". "Ah", dizem muitos sofredores, "mas eu já tentei, eu já orei; e não encontrei a paz de que você fala. Não obtive resposta. Não adianta me dizer para orar". Felizmente para nós, o apóstolo tam­bém entendeu isso, e deixou-nos instruções específicas sobre como cumprir sua exortação. "Não estejais inquietos por coisa alguma; antes as vossas petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplicas, com ação de graças". O apóstolo estaria apenas amontoando palavras aqui, ou estaria falando ponderada­mente? Posso mostrar que ele na verdade está falando pondera­damente e com sabedoria, ao nos mostrar como tornar nossas petições conhecidas diante de Deus.

Como devemos fazer isso? Primeiro ele diz que devemos orar. Ele estabelece uma diferença entre oração, súplica e ação de graças. O que ele quer dizer com oração? Este é o termo mais geral, e significa adoração e louvor. Se têm problemas que parecem inso­lúveis, se estão sujeitos a ficarem ansiosos e preocupados, e alguém lhes diz para orar, não corram a Deus com suas petições. Esse não é o caminho certo. Antes de tornar suas petições conhecidas diante de Deus, orem, louvem, adorem. Entrem na presença de Deus, e esqueçam os seus problemas por um pouco. Não comecem com eles. É só lembrar que estão face a face com Deus. Essa idéia de "face a face" está imbuída no próprio sentido da palavra "oração". Vocês entram na presença de Deus, tomam consciência da Sua presença, e ponderam na Sua presença — esse sempre é o primeiro passo. Mesmo antes de tornar suas petições conhecidas diante de Deus, vocês tomam consciência que estão face a face com Deus, que estão em Sua presença, e derramam seus corações em adoração. Esse é o começo.

Mas depois da oração vem a súplica. Agora estamos avançan­do. Depois de adorar a Deus porque Ele é Deus, tendo oferecido nossa adoração e louvor de forma geral, passamos agora ao parti­cular, e o apóstolo aqui nos encoraja a apresentar as nossas súpli­cas. Ele diz que podemos apresentar necessidades específicas a Deus, que a petição é uma parte legítima da oração. Então traze­mos nossas petições, aquelas coisas que estão nos preocupando de forma particular.

Estamos agora chegando perto de tornar as nossas petições conhecidas a Deus. Mas, um momento — ainda há uma coisa antes: "pela oração e súplicas, com ação de graças". Esse é um dos termos mais vitais desta lista. E é exatamente neste ponto que tantos se desviam quando estão nessa situação de que o apóstolo está tratando. Creio que não é necessário discorrer sobre o fato que, em conexão com estes passos, o apóstolo não estava simples­mente interessado em fórmulas litúrgicas. Que tragédia, que tantas pessoas se interessam pela adoração meramente num sentido litúr­gico. O apóstolo não está preocupado com isso. Ele não está inte­ressado em formalidades e cerimónias; está interessado em adora­ção, e ação de graças é absolutamente essencial, pela seguinte razão. Se, ao orar, temos qualquer ressentimento contra Deus em nosso coração, não temos o direito de esperar que a Sua paz guarde nosso coração e a nossa mente. Se caímos de joelhos, sentindo que Deus está contra nós, é melhor nos levantarmos. Devemos nos aproximar dEle "com ação de graças". Não pode­mos ter qualquer dúvida em nosso coração sobre a bondade de Deus. Não pode haver qualquer indagação ou desconfiança; deve­mos ter razões positivas para dar graças a Deus. Temos nossos problemas e dificuldades, mas quando estamos de joelhos, deve­mos nos perguntar: "Pelo que posso dar graças a Deus?" Preci­samos fazer isso deliberadamente, e é algo que podemos fazer. Devemos nos lembrar disso, e dizer: "Estou com problemas neste momento, mas posso dar graças a Deus por minha salvação, porque ele enviou Seu Filho para morrer na cruz por mim e por meus pecados. Estou enfrentando um problema terrível, eu sei, mas Ele fez isso por mim. Dou graças a Deus por ter enviado Seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, a este mundo. Agradeço a Ele por ter levado meus pecados em Seu corpo sobre a cruz, e por ter ressuscitado por minha justificação. Vou derramar meu coração em ação de graças por isso. E vou agradecer a Ele pelas muitas bênçãos que recebi no passado". Precisamos trazer à nossa mente razões para agradecer e louvar a Deus. Devemos nos lembrar que Ele é nosso Pai, que nos ama tanto, que até os cabelos da nossa cabeça estão contados. E depois de nos lembrarmos destas coisas, devemos derramar nosso coração em ação de graças. Pre­cisamos ter um relacionamento acertado com Deus. Devemos com­preender a verdade a Seu respeito. Portanto, devemos entrar em Sua presença com amor, louvor, adoração e fé confiante, e então tornar nossas petições conhecidas diante dEle. A oração que Paulo está pleiteando, em outras palavras, não é um grito desesperado no escuro, não é um apelo frenético a Deus, sem raciocínio ou ponderação. Não! Primeiro nós entendemos e nos lembramos de que estamos adorando um bendito, glorioso Deus. Adoramos pri­meiro, e então tornamos nossas petições conhecidas.

Apressemo-nos para o terceiro grande princípio, que é a gra­ciosa promessa de Deus a todos que fazem isso. Vimos o que precisamos fazer, fomos instruídos sobre como devemos tratar da questão, e agora vem a graciosa promessa a todos que fazem o que o apóstolo diz. Isto, obviamente, é o melhor de tudo, mas precisamos aprender como olhar para isso. Observaram a pro­messa, observaram seu caráter, observaram que nem sequer men­ciona as coisas que nos preocupam? Esse é o aspecto peculiar a respeito do método cristão de tratar da ansiedade. "Em tudo", diz o apóstolo — essas coisas que nos preocupam — devemos tornar as nossas petições conhecidas, e Deus irá removê-las todas? Não, Paulo não diz isso. Ele nem sequer as menciona, não diz uma palavra a respeito. Para mim essa é uma das coisas mais notá­veis da vida cristã. A glória do evangelho é esta, que ele está preocupado conosco, e não com nossas circunstâncias. O triunfo final do evangelho pode ser visto nisto, que não importa quais sejam nossas circunstâncias, podemos estar em paz e seguros. Não menciona nossa condição, não fala a respeito destas coisas que estão nos perturbando e nos deixando perplexos, não diz uma palavra a respeito delas. Elas tanto podem acontecer como não acontecer. Eu não sei. Paulo não diz que aquilo que tememos não vai acontecer — ele diz que seremos guardados, quer acon­teça ou não. Graças a Deus, essa é a vitória! Sou transportado acima das circunstâncias, sou triunfante apesar delas.

Esse é o grande princípio. Todos temos a tendência de per­mitir que as circunstâncias nos tiranizem, porque dependemos delas, e gostaríamos de poder governá-las e controlá-las, mas essa não é a maneira que as Escrituras tratam da situação. O que o apóstolo diz é isto: "Tornem as suas petições conhecidas a Deus, e a paz de Deus que excede todo entendimento guardará seus corações e suas mentes". Ele manterá vocês a salvo destas coisas que os mantêm acordados e os impedem de dormir. Serão man­tidas à distância, e vocês serão mantidos em paz, apesar delas.

Quero enfatizar mais uma vez que o apóstolo nunca diz que, se orarmos, nossa oração em si fará com que nos sintamos melhor. É uma desgraça que pessoas. possam orar por essa razão. Essa é a maneira dos psicólogos usarem a oração. Eles nos dizem que, se estamos perturbados, a oração nos fará bem — boa psicologia, péssimo cristianismo. Oração não é auto-sugestão.

Tampouco o apóstolo diz: "Orem, porque enquanto vocês estiverem orando, não vão pensar nesse problema, e assim terão alívio temporário". Novamente, boa psicologia, péssimo cristia­nismo.

Ele também não diz: "Se vocês encherem as suas mentes com pensamentos a respeito de Deus e de Jesus Cristo, esses pensa­mentos expulsarão as outras coisas". Outra vez, muito boa psico­logia, mas que não tem nada a ver com cristianismo.

Nem ele está dizendo — e afirmo isso ponderadamente: "Orem, porque a oração muda as coisas". Não, não muda. A ora­ção não "muda coisas". Não é isso que o apóstolo está dizendo; isso, novamente, é psicologia que nada tem a ver com o evangelho. O que o apóstolo diz é isto: "Orem e tornem os seus pedidos conhecidos diante de Deus, e Deus fará alguma coisa". No é a sua oração que vai fazer algo, nem vocês que vão fazer alguma coisa acontecer — é Deus. "A paz de Deus, que excede todo entendimento" — Ele, em e através de tudo, "guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus".

Preciso dizer uma palavra a respeito dessa expressão "guar­dará". Significa "pôr guarda à volta". Traz um quadro à nossa mente. O que vai acontecer, é que esta paz de Deus vai andar em volta dos muros e das torres da nossa vida. Nós estamos dentro, e as atividades da mente e do coração estão produzindo essas ansiedades e perturbações do lado de fora. Mas a paz de Deus as manterá do lado de fora, e nós mesmos, do lado de dentro, estaremos em perfeita paz. É Deus que faz isso. Não somos nós, não é a oração, não é algum mecanismo psicológico. Tornamos nossas petições conhecidas diante de Deus, e Deus faz isso por nós e nos mantém em perfeita paz.

Que diremos desta frase: "A paz de Deus, que excede todo o entendimento"? Não podemos entender esta paz, não podemos imaginá-la, de certa forma nem podemos crer nela, e no entanto está acontecendo, e podemos experimentá-la e usufruir dela. É a paz de Deus que está em Cristo Jesus. O que Ele quer dizer com isso? Ele está nos dizendo que esta paz de Deus opera apresen­tando-nos o Senhor Jesus Cristo, e lembrando-nos dEle. Para colo­cá-lo nos termos do argumento da Epístola aos Romanos: "Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida" (Romanos 5:10). "E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto. . . Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como nos não dará também com ele todas as coisas?" (Romanos 8: 28, 32). "Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Romanos 8: 38-39). O argumento é que se Deus fez a coisa suprema por nós, na morte de Seu Filho na cruz, Ele não vai nos abandonar agora, Ele não nos deixará no meio do caminho, por assim dizer. Assim, a paz de Deus, que excede todo entendimento guarda nossos corações e nossas mentes através, ou em, Cristo Jesus. Dessa forma Deus garante a nossa paz e nos mantém livres da ansiedade.

Quero terminar com uma palavra a respeito do último prin­cípio, que é a abrangência da promessa. "Não estejais inquietos por coisa alguma — mas em tudo..." Não importa o que seja, não há limites nessa promessa. Amado cristão, seja o que for que está querendo desanimá-lo, e torná-lo vítima da ansiedade, desse cuidado mórbido, perturbando e prejudicando sua vida e seu testemunho cristão, o que quer que seja, leve-o ao conheci­mento de Deus dessa forma, e se fizer isso, tem a garantia abso­luta de que a paz de Deus, que excede todo entendimento, vai guardar, vai "patrulhar em volta" do seu coração e da sua mente. Esse tumulto de coração e mente dentro de você não poderá afetá-lo. Como o salmista, você vai se deitar e dormir, experimentando Sua perfeita paz. Você tem essa experiência, você tem essa paz? Isso é apenas mais uma teoria, ou realmente acontece em sua vida? Eu assevero que quase dois mil anos de história cristã — a história da Igreja cristã — proclamam que isto é um fato. Leia as histórias dos santos e dos mártires da Igreja. E temos a mesma evidência em histórias contemporâneas. Ouvi recentemente uma experiência contada por John George Carpenter, que até poucos anos atrás foi o General do Exército de Salvação. Contou-me que ele e a esposa tiveram que se separar da filha, uma jovem linda e amorosa, de quem tinham muito orgulho e a quem amavam pro­fundamente, e que havia dedicado sua vida ao trabalho missioná­rio no oriente. Subitamente ela caiu doente de febre tifóide. Natu­ralmente eles começaram a orar, mas o casal sentiu, de alguma forma, ainda que não pudessem explicá-lo, que não deviam orar pela recuperação da filha. Continuaram a orar, mas sua oração era: "Tu podes curá-la, se quiseres". Não conseguiam pedir especi­ficamente que Deus a curasse — somente "Tu podes, se quiseres". Não conseguiam ir além disso. Continuaram assim por seis sema­nas, e então a filha morreu. Na manhã em que ela faleceu, John Carpenter disse à esposa: "Sabe, tenho consciência de uma pro­funda calma interior", e a Sra. Carpenter respondeu: "Sinto exa­tamente a mesma coisa". E continuou: "Isso deve ser a paz de Deus". E era a paz de Deus. Era a paz de Deus mantendo o cora­ção e a mente tranquilos, no sentido de que não podiam pertur­bar a pessoa. Ali estavam eles, tinham levado suas petições a Deus da forma correta, e para seu assombro e perplexidade — eles estavam quase se repreendendo a si mesmos por causa disso — essa imensa paz e calma veio sobre eles. Não conseguiam enten­der, e essa era a única explicação — "deve ser a paz de Deus". E era. Graças a Deus por ela. Você e eu não podemos explicar estas coisas, elas nos subjugam; mas Ele é todo-poderoso. Com oração e súplica e ação de graças, portanto, tornemos as nossas petições conhecidas diante dEle, e Ele, através da Sua paz em Cristo, guardará nossos corações e nossas mentes em descanso e paz.

 

20. APRENDENDO A SER CONTENTE

"Ora, muito me regozijei no Senhor por finalmente reviver a vossa lembrança de mim; pois já vos tínheis lembrado, mas não tínheis tido oportunidade. Não digo isto como por necessidade, porque já aprendi a contentar-me com o que tenho. Sei estar abatido, e sei também ter abundância; em toda a maneira, e em todas as coisas estou instruído, tanto a ter fartura, como a ter fome, tanto a ter abundância como a padecer necessidade".

Filipenses 4:10-12

Temos nas palavras de Filipenses 4:10-12 uma dessas passa­gens das Escrituras que sempre me fazem sentir que a única coisa correta e apropriada a fazer, depois de sua leitura, é pronunciar a bênção! Quase que estremecemos ao nos aproximarmos de tão nobres palavras, que trazem à nossa mente um dos pontos altos da experiência cristã do grande apóstolo dos gentios. Todavia, é nosso dever, ainda que nos aproximemos desta passagem com temor e tremor, tentar analisar e expor o que ela diz. No nono versículo deste capítulo o apóstolo chegou ao fim das exortações que estava ansioso por endereçar aos membros da igreja de Filipos. Ele termi­nou de expor a doutrina, mas não pode ainda terminar a carta; precisa fazer mais uma coisa, ou seja, expressar a sua profunda gratidão aos membros da igreja de Filipos pela oferta pessoal que haviam enviado a ele quando estava aprisionado em Roma, através do seu amigo e irmão Epafrodito.

De certa forma, essa é a razão porque Paulo estava lhes escre­vendo. A igreja filipense tinha lhe enviado uma oferta. Não sabemos exatamente do que se tratava, se foi em dinheiro ou bens, mas eles tinham lhe enviado uma oferta por seu emissário Epafrodito. Agora Epafrodito ia voltar para lá, e Paulo envia a carta com ele; e tendo terminado a exposição da doutrina, quer agradecer a expressão do amor e cuidado deles para com ele em seu sofrimento e prisão. E é isso que ele passa a fazer nestes dez versículos se­guintes, do versículo dez ao versículo vinte. Sinto que não há nada mais interessante nesta epístola, do que observar em detalhes a maneira como o apóstolo agia e como ele apresenta seus agradeci­mentos aos membros da igreja em Filipos é cheia de instrução e interesse. É óbvio que a questão de apresentar seus agradecimentos aos filipenses por sua oferta e seu carinho apresentava um problema para o apóstolo. Seria de se pensar que certamente não podia haver qualquer problema em agradecer a um grupo de pessoas que foi amável e generoso; no entanto, era obviamente um problema para Paulo. Ele leva dez versículos pala fazer isso. Podemos vê-lo muitas vezes tratando de uma poderosa doutrina em um versículo ou dois, mas quando se trata de simplesmente agradecer aos membros da igreja de Filipos por sua bondade e generosidade, ele precisa de dez versículos. Observamos também que ele se repete. "Não digo isto como por necessidade". E mais adiante: "Não que procure dádivas". Ele tem um argumento aqui, mas parece lutar para en­contrar as palavras certas.

O problema de Paulo provavelmente era este. Ele estava ansio­so por agradecer à igreja de Filipos por sua generosidade. Mas ao mesmo tempo ele estava igualmente ansioso, ou talvez até mais ansioso, por lhes mostrar que não estivera esperando com impaciên­cia, ou aguardando esta expressão da sua generosidade, e ainda mais, que ele de forma alguma estava dependendo da sua bondade e generosidade. Dessa maneira, ele estava enfrentando um problema. Precisa fazer estas duas coisas ao mesmo tempo: precisa expressar sua gratidão aos membros da igreja em Filipos, mas tem que fazer isso de um modo que não deprecie nem diminua a realidade da sua experiência de um-homem cristão dependente de Deus. Por isso ele usa dez versículos para fazer isso. Era o problema de um cavalheiro cristão, sensível aos sentimentos dos outros, tentando conciliar estas duas coisas. E que grande cavalheiro era este apóstolo — como se preocupava com os sentimentos dos outros! Como cava­lheiro ele está ansioso por expressar sua profunda gratidão e fazê-los saber que a bondade deles realmente o comoveu; no entanto, ele está preocupado em deixar bem claro que não havia passado o tempo imaginando por que não tinham pensado em suas necessidades, sofrendo devido não terem lhe enviado nada enquanto estava ali na prisão, pensando por que as igrejas não tinham enviado recursos para aliviar seu sofrimento. Ele queria deixar perfeitamente claro que esta não havia sido a sua condição, e o que temos nestes dez versículos é o método do apóstolo resolver esse problema particular.

Ora, o fato que precisamos captar a respeito da verdade cristã, é que ela governa toda a nossa vida. O evangelho cristão domina toda a vida do cristão. Controla seu pensamento, como vemos no oitavo versículo; controla suas ações, como está no nono versículo. E agora, nestes dez versículos, vemos como um cristão, mesmo numa questão como esta, de agradecer uma gentileza, faz isso de uma forma e maneira que é diferente de uma pessoa que não é cristã. O cristão não pode fazer coisa alguma, mesmo numa questão como esta, exceto de uma forma verdadeiramente cristã. Então aqui, o apóstolo mostra ao mesmo tempo sua gratidão aos seus amigos, e sua gratidão ainda maior ao Senhor. Paulo tinha zelo pela reputação do Senhor, e temia que, ao agradecer aos filipenses por sua oferta, ele de alguma forma desse a impressão de que o Senhor não era suficiente. Isso era prioritário. Ele amava os filipenses, e estava profundamente grato a eles. Mas amava o seu Senhor ainda mais, e temia que, ao lhes agradecer, podia de alguma forma dar-lhes uma sugestão que fosse de que o Senhor não era suficiente para ele, ou que estava dependendo dos filipenses, em última análise.

Nesta poderosa passagem, o apóstolo passa a mostrar com estas afirmações espantosas e notáveis, a primazia e toda-suficiência do Senhor, enquanto que ao mesmo tempo expressa sua gratidão e seu amor aos filipenses por sua manifestação de cuidado e solicitude pessoal a seu respeito. A essência da questão é encontrada nos versículos onze e doze. Aqui temos a doutrina: "Não digo isto como por necessidade, porque já aprendi a contentar-me com o que tenho. Sei estar abatido, e sei também ter abundância: Em toda a maneira, e em todas as coisas estou instruído, tanto a ter fartura, como a ter fome, tanto a ter abundância como a padecer necessi­dade".

Precisamos examinar esta grande doutrina que Paulo apresenta desta forma. Temos dois grandes princípios aqui. O primeiro, é claro, é a condição à qual o apóstolo chegou. O segundo é a maneira como ele chegou a essa condição. Estes princípios constituem o tema desta grande declaração.

Vamos primeiro examinar a condição que o apóstolo alcançou. Ele a descreve com a palavra traduzida aqui como "contente" — "porque aprendi a viver contente em toda e qualquer situação". Mas é importante que captemos o sentido exato e preciso desta palavra. A palavra "contente" não oferece uma explicação completa; na verdade, significa que ele é "auto-suficiente", independente das circunstâncias, acontecimentos ou condições — "ter suficiência em si mesmo". Esse é o sentido real da palavra traduzida como "con­tente". "Já aprendi a viver contente em toda e qualquer situação; sou auto-suficiente, independente das circunstâncias, independente dos acontecimentos ou condições que me cercam". A afirmação feita pelo apóstolo é que ele chegou a um ponto em que pode dizer, com toda sinceridade, que ele não depende de sua posição, das circunstâncias, do ambiente ou de qualquer coisa que possa lhe acontecer. E que isso não era simples declaração retórica por parte do apóstolo torna-se evidente através dos registros que temos da vida deste homem em inúmeras partes do Novo Testamento. Temos um exemplo interessante disso no capítulo 16 do livro de Atos dos Apóstolos, descrevendo a ocasião da primeira visita de Paulo a Filipos, onde viviam os destinatários desta carta. Paulo e Silas tinham sido presos, açoitados e jogados na prisão com seus pés presos ao tronco. As condições físicas dificilmente poderiam ter sido piores; no entanto tiveram tão pouco efeito sobre Paulo e Silas que "perto da meia noite, Paulo e Silas oravam e cantavam hinos a Deus" (Atos 16:25). Independente das circunstâncias, con­tente em qualquer situação, auto-satisfeito, sem depender do que o cercava. Também encontramos a mesma atitude na famosa pas­sagem da Segunda Epístola aos Coríntios, capítulo doze, onde Paulo nos conta como aprendeu a ser independente do "espinho na carne" — auto-suficiente, apesar dele.  Lembrem-se também como ele exortou Timóteo a se apropriar deste princípio, dizendo: "Mas é grande ganho a piedade com contentamento" (I Timóteo 6:6). "Não há nada igual; se você tem isso, você tem tudo", ele diz, com efeito. Paulo já era velho nessa época, e escreve ao jovem Timóteo dizendo: "A primeira coisa que você precisa aprender é a viver independente das circunstâncias e condições — grande ganho é a piedade com contentamento". Estas são apenas algumas de muitas ilustrações semelhantes que poderíamos mencionar.

Todavia, o ensino do Novo Testamento não só afirma que isso era real na vida de Paulo, mas também deixa claro que é uma posição que todos deveríamos alcançar como cristãos. Lembrem-se como. o Senhor enfatizou este ponto no capítulo seis do Evangelho de Mateus: "Não vos inquieteis pois pelo dia de amanhã" — não fiquem ansiosos e preocupados com alimento e vestuário e coisas desse tipo. Essa é a gloriosa independência do que possa nos acon­tecer, e que todos deveríamos conhecer e experimentar em nossa vida. É auto-suficiência no bom sentido.

Mas é extremamente importante que tenhamos uma compreen­são clara em nossas mentes quanto ao que isso significa. A palavra "contente" tende a provocar concepções erradas do que o apóstolo está ensinando. Esta declaração de Paulo pode ser interpretada de tal forma que chegue até a justificar a acusação levantada contra o evangelho cristão, de que ele nada mais é do que o "ópio do povo". É uma característica desta geração em que estamos vivendo, o fato de que grande número de pessoas tende a pensar que o evangelho cristão tem sido um obstáculo à marcha do progresso da humanidade, que tem sido um estorvo ao avanço do progresso, que tem sido nada mais que "o entorpecente do povo". Dizem que é uma doutrina que ensinou as pessoas a suportar todo e qualquer tipo de condições, por mais injustas ou infames que fossem. Tem havido uma violenta reação política contra o evangelho de Cristo porque muitas pessoas interpretaram dessa forma errônea passagens como esta, expressando-as assim:

O rico em seu castelo,

O pobre ao seu portão,

Deus os criou, exaltados ou humildes,

E determinou o seu quinhão.

Ora, isso é um absurdo, e é uma negação total do que o apóstolo está ensinando aqui. E no entanto, quantas vezes já foi interpretado assim! É uma lástima que o mesmo homem que pôde escrever o hino: "Há uma colinha distante", podia ser culpado de uma tal violação dos ensinos da Bíblia: "O rico em seu castelo, o pobre ao seu portão". Acaso, foram os homens destinados a ser assim, e assim permanecer para sempre? A Bíblia não ensina isso; não diz que o homem deve se contentar em permanecer na pobreza, que nunca deve se esforçar para melhorar sua situação. Não há nada na Bíblia que conteste a proposição de que. todos os homens são iguais aos olhos de Deus, e que todos têm direito a oportunidades iguais. Muito dano já foi feito à Igreja de Cristo porque declarações como esta do texto que estamos considerando foram mal interpre­tadas dessa forma.

E também não significa indiferença às circunstâncias. Isso seria a resignação negativa de um estoicismo pagão, sem qualquer relação com a posição cristã. O que, então, significa? Para colo­cá-lo positivamente, o que o apóstolo está dizendo aqui é que ele não era controlado ou governado por circunstâncias. Se podemos melhorar nossas circunstâncias por meios legítimos e justos, certa­mente devemos fazê-lo; mas se não pudermos, e tivermos que permanecer numa posição difícil e penosa, não devemos permitir que ela nos governe, nem que nos desanime ou controle; não deve­mos permitir que essa situação determine nossa alegria ou miséria. "Vocês devem chegar a um ponto em que não são mais controlados por sua situação, qualquer que ela seja", diz o apóstolo. Isto é o que ele afirma de si mesmo. "Quaisquer que sejam minhas cir­cunstâncias ou condições", ele na verdade está dizendo, "eu estou no controle. Sou senhor da situação, não sou governado por ela, sou livre; minha felicidade não depende do que está acontecendo comigo. Minha vida, minha felicidade, minha alegria e minha experiência são independentes das coisas que estão acontecendo à minha volta, ou até mesmo das coisas que estão acontecendo comigo". Gostaria de mencionar novamente que Paulo estava na prisão, provavelmente acorrentado a um soldado à sua direita e outro à sua esquerda, quando escreveu estas palavras, e no entanto, mesmo nessas condições, ele pode dizer que não dependia das suas circunstâncias. "Minha vida", ele diz, "não é controlada nem determinada pelas coisas que estão acontecendo comigo; estou numa situação em que posso me elevar acima delas. Estas coisas não são fatores determinantes na minha vida e experiência".

Essa é sua reivindicação, e ele está ansioso por enfatizar que é uma reivindicação que abrange tudo. Observem novamente suas palavras. Tendo feito a declaração geral, ele agora a amplia: "Sei estar abatido, e sei também ter abundância; em toda a maneira e em todas as coisas estou instruído" — novamente ele volta a isso — "tanto a ter fartura como a ter fome, tanto a ter abundância como a padecer' necessidade". Ele queria tornar a extensão e o alcance da sua reivindicação perfeitamente claro. Vejam os para­doxos. Ela sabia como estar abatido, ter fome e padecer necessidade; por outro lado, ele sabia como ter fartura, como ter abundância. Seria interessante discutir as dificuldades relativas a essas duas situações. O que é mais difícil — estar abatido, ou ter abundância, sem perder o contentamento? Não sei se realmente podemos res­ponder essa pergunta. Ambos são extremamente difíceis, e creio que um é tão difícil quanto o outro. Posso estar abatido sem ficar ressentido, preocupado ou ansioso? Posso sofrer a falta de alimento e vestuário, posso ser diminuído em minha profissão ou trabalho, posso de uma forma ou outra ser humilhado e ainda permanecer em meu espírito exatamente como era antes? Como isso é difícil — assumir um lugar inferior, ser magoado, ser insultado, ver outros sofrendo da mesma forma, ou sofrer necessidade ou dor física — saber como estar abatido, ter fome ou sofrer necessidade de alguma forma. Uma das maiores tarefas da vida é descobrir como sofrer alguma ou todas essas coisas sem ficar amargurado ou ressentido, sem reclamações, aborrecimento ou amargura de espírito, e descobrir como não ficar preocupado ou ansioso. Paulo nos diz que aprendeu como fazer isso. Ele experimentou todo tipo de provas e tribulações, e no entanto não se deixou afetar por elas. Vamos então examinar o outro lado. "Sei ter abundância", diz Paulo. "Sei como ter fartura, como ser honrado". E isso também é difícil! Como é difícil para a pessoa rica não sentir completa independência de Deus. Quando somos ricos e podemos arranjar e manipular tudo, tendemos a nos esquecer de Deus. A maioria se lembra dEle quando está abatido. Quando estamos em necessidade, começamos a orar, mas quando temos tudo, como é fácil esquecer de Deus! Vou deixar com vocês a decisão sobre qual das duas situações é mais difícil. O que Paulo está dizendo é que ele é completamente livre, em qualquer destas posições. A pobreza não o abate, a riqueza não o exalta ou leva a perder sua firmeza. Ele diz que não depende nem de uma nem de outra, que é auto-sufi­ciente neste sentido, que sua vida não é controlada por essas coisas, que ele é o que é à parte delas. Quer ele tenha abundância ou sofra necessidade, não tem qualquer importância.

Mas ele não se limita a isso; prossegue, dizendo: "Em toda a maneira e em todas as coisas". Ou seja em cada coisa, em detalhe; em todas as coisas, em conjunto. E Paulo faz esta distinção delibe­radamente. Ele diz que não há limite no que está declarando: "Em cada e qualquer coisa, eu sou assim". Então ele acrescenta: "E agora vou colocá-las todas juntas — em todas as coisas, o que quer que aconteça comigo, eu sou auto-suficiente, não dependo das circunstâncias; minha vida, minha felicidade e alegria não são determinadas ou controladas por elas".

Essa, de acordo com o apóstolo, é a maneira correta de viver — isso é a vida cristã. É bom que confrontemos esta poderosa declaração. Estamos vivendo em dias de incerteza, e pode ser que a primeira e maior lição que todos tenhamos que aprender é saber como viver sem permitir que as circunstâncias afetem nossa paz e alegria interior. E no entanto, talvez não tenha havido outra época na história quando foi tão difícil aprender esta lição, como hoje em dia. Tudo na vida é organizado de tal forma atualmente que se torna quase impossível viver esta vida cristã auto-suficiente. Mesmo no sentido natural todos dependemos tanto das coisas que são feitas por nós e para nós e ao nosso redor, que se tornou extremamente difícil viver a nossa própria vida. Ligamos o rádio ou a televisão, e gradualmente nos tornamos dependentes deles, e o mesmo acontece com os jornais, o cinema, e nossos meios de diversão. O mundo tem se incumbido de organizar a nossa vida em todos os aspectos, e mais e mais nos tornamos dependentes dele. Temos uma boa ilustração disso nos dias iniciais da Segunda Guerra Mundial, quando os regulamentos do "blackout" foram impostos sobre o povo da Inglaterra. Falava-se de algo chamado "o tédio do blackout". Muitas pessoas descobriram que era quase impossível para elas, passar noites em seguida em suas próprias casas, sem fazer nada. Tinham se tornado dependentes do cinema, do teatro, e várias outras formas de diversão, e quando estas coisas lhes foram tiradas, ficaram sem saber o que fazer consigo mesmas — "o tédio do blackout". Essa é a própria antítese do que Paulo está descrevendo aqui. Mas está se tornando mais e mais a tendência na vida do homem moderno; mais e mais nos tornamos dependentes do que outros fazem por nós. É o oposto absoluto do que Paulo está ensinando aqui.

Ah, mas isto não acontece apenas com o mundo em geral — está acontecendo também com o povo cristão! Eu sou de opinião que um dos maiores perigos que confrontamos, num sentido espiritual, é o de nos tornarmos dependentes de reuniões. Uma espécie de "mania de reuniões" tem se desenvolvido entre os cristãos, e há os que parecem estar sempre em alguma reunião. Ora, reuniões são de grande valor, sem dúvida. Ninguém me entenda mal, pen­sando que sou de opinião que apenas se deve ir a um lugar de adoração no domingo. Reuniões são uma coisa muito boa, excelente mesmo, mas devemos ser cuidadosos para não nos tornarmos tão dependentes delas que, se um dia adoecermos e ficarmos de cama, não saibamos o que fazer conosco mesmos. Podemos nos tornar dependentes demais até mesmo de reuniões cristãs — ou de uma atmosfera cristã. Alguém estava discutindo comigo há algum tempo o que é conhecido como o "vazamento" que acontece entre os membros de certas organizações cristãs que se concentram no tra­balho entre os jovens. Temos um problema muito real aqui. En­quanto estão na atmosfera daquela organização cristã, esses jovens são dedicados e interessados, mas em poucos anos eles estão per­didos para a Igreja. Qual é a causa desse "vazamento"? Frequente­mente é que eles se tornaram dependentes demais de uma certa atmosfera ou ambiente, e de forma que, quando saem para o mundo, ou mudam para outro local onde já não estão cercados por toda aquela comunhão cristã, eles subitamente vacilam e caem. É sobre isso que o apóstolo está nos advertindo, entre outras coisas. Precisamos nos precaver do perigo de depender de fontes de apoio, até mesmo no serviço e testemunho cristão. Por isso Paulo nos exorta a alcançar aquela posição em que não dependemos do que acontece ao nosso redor, até mesmo nesta área. Devemos cultivar tal gloriosa auto-suficiência.

O professor Whitehead expressou uma grande verdade quando disse em sua definição de religião, que "religião é o que o homem faz com sua própria solidão". Você e eu, em última análise, somos o que somos quando estamos sozinhos. Confesso que para mim, em certo sentido, é mais fácil pregar de um púlpito do que estar sozinho em meu escritório; provavelmente é mais fácil para a maioria dos cristãos apreciar a presença do Senhor em companhia de outros cristãos do que quando estão sozinhos. Paulo quer que venhamos a usufruir do que ele desfrutava. Ele tinha um amor a Deus que o libertava de tudo que estava acontecendo, ou podia vir a acontecer a ele — em tudo, em todas as coisas, onde quer que estivesse, o que quer que estivesse acontecendo, ele estava contente. Humilhado ou honrado, em necessidade ou fartura, não tinha importância — ele tinha essa vida, essa vida escondida com Cristo.

Vamos considerar brevemente a segunda questão que temos aqui, ou seja, como o apóstolo alcançou esta condição. Novamente ele faz uma declaração muito interessante. Notem que ele diz: "aprendi", ou melhor, "cheguei a aprender". Dou graças a Deus que Paulo disse isso. Ele não foi sempre assim, como também nós não somos. Ele "chegou a aprender". E também encontramos outra palavra interessante. Ele diz: "Em toda a maneira e em todas as coisas estou instruído, tanto a ter fartura como a ter fome". Todos os estudiosos concordam que o que Paulo realmente está dizendo aqui é: "Eu fui iniciado, fui admitido ao mistério, aprendi o segredo".

Paulo diz que ele aprendeu como chegar a esta condição. E temos várias sugestões no Novo Testamento de que isso foi particularmente difícil para ele. Paulo era uma pessoa sensível, era orgulhoso por natureza, e, além disso, era um homem extremamente ativo. Nada podia ser mais irritante para alguém assim do que ficar preso. Ele tinha sido criado como um cidadão romano, mas aqui está ele, suportando escravidão, não passando seus dias com grandes intelectuais, mas entre escravos. Como ele consegue isso? "Ah", ele diz, "eu cheguei a aprender. Fui admitido ao mistério, aprendi o segredo".

Mas como ele aprendeu? Vou tentar responder esta pergunta. Em primeiro lugar, foi por pura experiência." Basta chamar sua atenção para a Segunda Epístola aos Coríntios, capítulo doze, especialmente os versículos nove e dez, sobre o "espinho na carne". Paulo não gostava daquilo. Lutou contra ele, e três vezes orou para que fosse removido. Mas não foi removido. Ele não conseguia se reconciliar com a idéia. Era impaciente, estava ansioso por continuar pregando, e esse espinho na carne o estava abatendo. Mas então recebeu a lição do Senhor: "A minha graça te basta". Paulo aprendeu como resultado da experiência do tratamento de Deus. Ele tinha que aprender, e a experiência nos ensina a todos. Alguns de nós somos muito lentos em aprender, mas Deus, em Sua bondade, pode nos mandar uma doença, às vezes Ele pode até nos abater — qualquer coisa para nos ensinar esta grande lição e nos levar a esta abençoada condição.

Mas não foi somente por experiência, Paulo veio a aprender esta grande verdade, elaborando um grande argumento. Quero apresentar alguns passos desse argumento que vocês podem testar por si mesmos. Creio que a lógica do apóstolo seguiu esta linha de pensamento. Ele disse a si mesmo:

  1. Circunstâncias e condições estão sempre mudando; portanto não devo depender delas.
  2. O que é de importância suprema e vital é o meu relaciona­mento com Deus — esta é a coisa prioritária.
  3. Deus está preocupado comigo, como meu Pai, e nada acontece comigo que Deus não saiba. Até os cabelos da minha cabeça estão contados. Nunca devo esquecer isso.
  4. A vontade de Deus e os Seus caminhos são um grande mistério, mas eu sei que tudo o que Ele decreta ou permite é necessariamente para o meu bem.
  5. Cada situação na vida é o desenrolar de alguma manifesta­ção do amor e da bondade de Deus. Portanto é meu dever procurar essas manifestações peculiares da Sua bondade, e estar preparado para bênçãos e surpresas, porque "os pensamentos dEle não são os meus pensamentos, nem os Seus caminhos os meus caminhos". Qual, por exemplo, foi a grande lição que Paulo aprendeu na questão do espinho na carne? Foi esta: "Quando estou fraco, então sou forte". Paulo aprendeu através da fraqueza física esta manifes­tação da graça de Deus.
  6. Portanto não devo considerar condições e circunstâncias em e por si mesmas, mas como parte dos tratamentos de Deus comigo, na obra de aperfeiçoar minha alma e me trazer à perfeição final.
  7. Quaisquer que sejam minhas condições neste momento, elas são apenas temporárias, são passageiras, e jamais podem me roubar a alegria e a glória que me aguardam com Cristo.

Penso que Paulo raciocinou e argumentou dessa forma. Ele enfrentou condições e circunstâncias à luz da verdade cristã e do evangelho cristão, e elaborou estes passos e estágios. E tendo feito isso, ele diz "Aconteça comigo qualquer coisa que alguém possa imaginar — eu permaneço exatamente na mesma posição. O que quer que aconteça comigo, eu me mantenho firme".

O grande princípio que emerge claramente é que ele aprendera a encontrar seu regozijo e sua satisfação em Cristo, sempre e somente em Cristo. Esse é o aspecto positivo da questão. Precisamos aprender a depender dEle, e para que isso aconteça, precisamos conhecê-lO, ter comunhão com Ele, e encontrar nosso gozo e alegria nEle. Para falar claro, o perigo que corremos às vezes é passar tempo demais lendo a respeito dEle! O dia pode chegar — e na verdade chegará — em que não seremos capazes de ler. Então vem o teste. Ainda seremos felizes? Vocês O conhecem tão bem que, ainda que fiquem cegos ou surdos, esta fonte ainda vai jorrar, vai continuar aberta? Vocês O conhecem tão bem que podem falar com Ele, ouvir Sua voz, e se deleitar nEle sempre? Tudo estará bem porque vocês sempre foram tão dependentes do seu relacio­namento com Ele que nada mais realmente importa? Essa era a posição do apóstolo. Sua intimidade com Cristo era tão profunda e tão grande que ele havia se tornado independente de qualquer outra coisa.

Finalmente, creio que o que mais o ajudou a aprender esta lição foi olhar para o grande e perfeito exemplo do próprio Cristo. "Olhando para Jesus, autor e consumador da fé, o qual pelo gozo que lhe estava proposto suportou a cruz, desprezando a afronta" (Hebreus 12:1-4). Paulo olhou para Ele, e viu Seu perfeito exemplo, e o aplicou à sua própria vida. "Não atentando nós nas coisas que se vêem mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas" (II Coríntios 4:18).

"Tenho aprendido, qualquer que seja a situação em que me encontre, a ser auto-suficiente e independente das circunstâncias".

Cristãos, vocês podem dizer isso, vocês conhecem essa condi­ção? Que isto seja uma prioridade para nós, que seja nossa ambição, que empenhemos toda a nossa energia e façamos tudo ao nosso alcance para chegar a esta bendita condição. A vida talvez nos force a chegar a esse ponto, mas mesmo que as circunstâncias não o façam, o dia vai chegar, ou mais cedo ou mais tarde, quando a terra e tudo que é terreno vai passar, e na solidão final da alma estaremos sozinhos enfrentando a morte e a eternidade. A coisa suprema da vida é poder dizer, como o próprio Cristo, naquela hora: "Mas não estou só porque o Pai está comigo" (João 16:32).

Que Deus, em Sua infinita graça, nos capacite a aprender esta lição vital, e para chegar a isso, que aprendamos a proferir com frequência a oração de Augustus Toplady:

Quando eu exalar meu último suspiro,

E meus olhos se fecharem na morte,

Quando eu me elevar por caminhos desconhecidos,

E Te contemplar no Trono do Juízo,

Rocha eterna, ferida por mim,

Que eu possa me refugiar em Ti.

 

21. A CURA FINAL

"Posso todas as coisas naquele que me fortalece".

Filipenses 4:13

Aqui somos confrontados por uma dessas admiráveis decla­rações que são encontradas com tanta profusão nas epístolas deste grande e poderoso apóstolo dos gentios.

Não há nada mais enganador, ao se ler as cartas do apóstolo Paulo, do que presumir que, depois de terminar o assunto que o levou a escrever, ele ao mesmo tempo terminou de proferir coisas grandes e poderosas. Devemos sempre examinar com atenção os pós-escritos deste apóstolo. Nunca se sabe quando ele vai incluir uma jóia preciosa. Em qualquer lugar, em todo lugar, desde a introdução até os pós-escritos de suas cartas, há em geral um discernimento espantoso da verdade, ou alguma profunda revela­ção doutrinária.

Estamos aqui, de certa forma, olhando para o pós-escrito desta carta. O apóstolo terminou o assunto que se propusera a apresentar no final do versículo nove, e agora está apresentando seus agradecimentos pessoais aos membros da igreja de Filipos por sua bondade para com ele pessoalmente, pela oferta que tinham enviado. Mas como já vimos, o apóstolo não podia fazer isso sem imediatamente se envolver em doutrina. Por mais ansio­so que estivesse para lhes agradecer, ele está ainda mais ansioso por lhes mostrar, e mostrar a outros, que sua suficiência estava em Cristo, e quer fosse lembrado ou esquecido pelos homens, ele sempre estava completo no Senhor. E é em relação a isso que chegamos neste versículo treze.

Afirmo que esta é uma declaração assombrosa: "Posso todas as coisas naquele que me fortalece". É uma declaração caracteri­zada ao mesmo tempo por um tom de triunfo e de humildade. Ele parece estar se vangloriando, mas se examinarmos esta declaração a fundo, perceberemos que é um dos tributos mais gloriosos e notáveis que Ele rendeu ao seu Senhor e Mestre. É uma dessas afirmações paradoxais em que este apóstolo parecia se deleitar; de fato, é a simples verdade, afirmar que a verdade cristã sempre é essencialmente paradoxal. Ela ao mesmo tempo nos exorta a nos regozijarmos e gloriarmos, e no entanto a sermos humildes e mo­destos. E não há contradição, porque a glória do cristão não está em si mesmo, e sim no Senhor.

Paulo gostava de dizer isso. Vejamos, por exemplo, sua decla­ração em Gálatas 6:14: "Mas longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo". Ou, em outra passagem: "Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor". Aqui temos a exortação, por um lado, para que nos gloriemos; sim, mas sempre e somente nEle.

Ora, esta declaração pertence a essa categoria particular, e talvez a melhor maneira de a examinarmos, é citar uma outra tradução. A Edição Revista e Corrigida é, de certa forma, bastante correta, mas realmente não comunica a nuança particular de sen­tido que o apóstolo queria transmitir. Ela diz: "Posso todas as coisas naquele que me fortalece". Mas sugiro que uma tradução melhor do texto seria: "Sou forte para todas as coisas naquele que constantemente me infunde força". Isso nos dá o sentido exato — "Sou forte, ou sou fortalecido para todas as coisas na­quele que constantemente me infunde força". Isso nos dá o sen­tido exato — "Sou forte, ou sou fortalecido para todas as coisas naquele que constantemente me infunde força". O que o apóstolo realmente está dizendo não é tanto que pode fazer certas coisas, ele mesmo, mas que ele é capacitado a fazer certas coisas, na verdade todas as coisas, por Aquele que lhe infunde a Sua força. Em outras palavras, temos neste versículo a explicação completa e final do que Paulo estava dizendo nos versículos precedentes, onde afirma: "Já aprendi a contentar-me com o que tenho. Sei estar abatido, e sei também ter abundância; em toda a maneira, e em todas as coisas estou instruído, tanto a ter fartura, como a ter fome, tanto a ter abundância como a padecer necessidade". Vimos que nessa passagem o apóstolo estava dizendo que chegara a aprender. Nem sempre fora capaz de fazer isso. Paulo teve que aprender como viver contente em qualquer situação, como ser auto-suficiente, como ser independente das circunstâncias e do ambiente. Ele teve que aprender, e na verdade diz que fora "ini­ciado" no segredo de como fazer isto. Esse é o sentido de "estou instruído", e vimos algumas das formas em que o apóstolo tinha sido guiado. Vimos que ele veio a ter esse conhecimento pela experiência, por raciocínio e argumentação lógica de sua fé cristã, e mediante cultivo de um conhecimento pessoal íntimo do Senhor, olhando para Ele e Seu exemplo grandioso.

Entretanto, é aqui neste versículo treze que temos a explica­ção final e definitiva. O segredo real, Paulo diz, que eu descobri, é que sou forte, ou sou fortalecido para todas as coisas naquele que constantemente me infunde a Sua força. Essa é a explicação definitiva. E nem preciso lembrar que esse é o ponto ao qual o apóstolo sempre retorna. Paulo nunca desenvolveu um argu­mento sem voltar a isso. Esse é o ponto ao qual ele sempre traz cada argumento e discussão, tudo sempre acaba e se concentra em Cristo e com Cristo. Ele é o ponto final. Ele é a explicação da existência de Paulo e de toda a sua perspectiva de vida. Essa é a doutrina que ele nos apresenta e recomenda aqui. Em outras palavras, ele está nos dizendo que Cristo é todo-suficiente para cada circunstância, para cada eventualidade e para cada possibi­lidade. E naturalmente, ao dizer isso, ele está nos apresentando aquela que, de muitas formas, pode ser descrita como a doutrina fundamental do Novo Testamento. Afinal, a vida cristã é uma vida, é um poder, é uma atividade. Temos a tendência de nos esquecermos disso. Não é apenas uma filosofia, não é um ponto de vista, não é um ensino ou doutrina que adotamos e tentamos pôr em prática. É tudo isso, mas é algo infinitamente mais. A própria essência da vida cristã, de acordo com os ensinos do Novo Testamento, é que ela é um imenso poder que entra em nós; é uma vida, se preferirem assim, que está pulsando em nós. É uma atividade, e uma atividade que vem de Deus.

O apóstolo já enfatizou isso em diversos lugares desta epís­tola mesmo. Quero mencionar alguns. No primeiro capítulo ele diz que está confiante "que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até o dia de Jesus Cristo" (versículo 6). "Quero que pensem"; Paulo está dizendo, "a respeito de si mesmos como cristãos dessa maneira. Vocês são pessoas em quem Deus começou a operar; Deus entrou em vocês, e está operando em vocês". Isso é o que os cristãos realmente são. Não são apenas pessoas que ado­taram uma certa teoria e estão tentando colocá-la em prática; é Deus fazendo algo neles e através deles. Ou então, vejam o capí­tulo dois, versículos doze e treze: "Operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade". É segundo a Sua boa vontade que Deus está operando em nós tanto o querer como o efetuar — nossos pensamentos mais elevados, nossas aspirações mais nobres, nossa tendência à justiça, vem de Deus, é algo que é trazido à existência em nós pelo próprio Deus. É a atividade de Deus, não nossa, e é por isso que Paulo nos diz, no capítulo três, versículo dez que sua ambição suprema na vida era "conhecê-lo, e o poder da sua ressurreição..." O tempo todo ele está interes­sado nesta questão do poder e da vida.

Podemos vê-lo dizendo exatamente a mesma coisa em outras epístolas. Qual é a grande oração de Paulo pelos efésios? Ele ora para que eles possam conhecer "a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos mortos" (Efésios 1:19-20). Ele continua no capítulo dois, versículo dez, dizendo que "somos feitura sua, criados em Cristo Jesus". E não podemos esquecer a grande declaração no fim do capítulo três: "Àquele que é poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos, segundo o poder que em nós opera". Isso é doutrina típica e característica do Novo Testamennto, e se não a captamos, certamente estamos perdendo uma das coisas mais gloriosas a respeito da vida e da posição cristã. O cristão, essencialmente, é uma pessoa que rece­beu uma nova vida. Voltamos ao que nunca me canso de citar, ou seja, a definição favorita de John Wesley do que é um cristão. Ele a encontrou num livro de Henry Scougal, um escocês que viveu no século dezessete, e no próprio título do livro: "A vida de Deus na alma do homem". Isso é o que faz um cristão. O cristão não é apenas um homem bom, decente e moral; a vida de Deus entrou nele, há uma energia, um poder, uma vida nele, e é isso que o torna peculiarmente e especificamente um cristão, e é exata­mente o que Paulo está nos dizendo aqui.

Quero começar colocando-o negativamente. O apóstolo não está dizendo neste grande versículo que se tornou um estóico; nem está dizendo que, como resultado de auto-disciplina, ele desen­volveu uma indiferença ao mundo e tudo que o cerca, e que como resultado da disciplina ele finalmente foi capaz de ver que podia fazer todas as coisas, ou enfrentar todas as coisas. Não é isso. Lembrem-se que os estóicos podiam fazer isso. Estoicismo não era apenas uma teoria, era de fato um estilo de vida para muitas pessoas. Se lerem as vidas de alguns estóicos, descobrirão que como resultado desta perspectiva eles desenvolveram um tipo de indiferença passiva em relação ao que pudesse acontecer no mundo. Da mesma forma talvez tenham ouvido ou lido a respeito dos faquires indianos, homens que desenvolveram de tal forma o poder da mente que podem controlar seus corpos físicos, e concentrando-se na cultura da mente, podem desenvolver esse tipo de imuni­dade ou indiferença ao que possa estar acontecendo a eles ou ao redor deles. É também o grande princípio que caracteriza muitas religiões orientais, tais como o hinduísmo e o budismo. Todas essas religiões são basicamente religiões designadas a ajudar as pessoas a morrer para as circunstâncias e a desenvolver uma indi­ferença ao mundo que está ao seu redor, a atravessar a vida sem serem afetadas pelo que acontece. Ora, o ponto que quero enfa­tizar, é que o apóstolo não está ensinando tal doutrina. Paulo não está dizendo que devemos nos tornar como os místicos orientais, nem que ele desenvolveu essa filosofia estóica ao ponto que nada pode afetá-lo.

Por que estou preocupado com esta ênfase negativa? A razão que me compele a fazer isso, é que tais ensinos não oferecem esperança, todas essas religiões são basicamente pessimistas. Estoi­cismo, em última análise, era nada mais que um profundo pessi­mismo. Na verdade se resumia nisto, que este mundo não tem esperança, que nada pode ajudar, e aquilo que temos que fazer, então, é passar pela vida da melhor forma possível, recusando-se a permitir que ela nos magoe. As religiões orientais são, é claro, inteiramente pessimistas. Consideram a própria matéria em si como má; consideram a carne como sendo essencialmente má; tudo, eles dizem, é mau, e a única coisa que se pode fazer é atravessar a vida com um mínimo de dor, e com a esperança de que, numa encarnação subsequente, possam se livrar dela de uma vez e final­mente serem absorvidos e perdidos para sempre no absoluto e eterno, cessando de ser uma personalidade separada.

Ora, isso é a própria antítese do evangelho cristão, que não é negativo, mas essencialmente positivo. Não encara a matéria como essencialmente má, nem o mundo como essencialmente mau em si mesmo, num sentido material. Mas rejeitamos totalmente esse ponto de vista negativo acima de tudo por esta razão: ele não dá glória e honra ao Senhor Jesus Cristo. Esse é o ponto a respeito do qual Paulo está mais preocupado. Ele quer que vejamos que sua vitória está baseada em sua associação com Cristo. Em outras palavras, voltamos mais uma vez à nossa definição original — ser um cristão não é apenas crer nos ensinos de Cristo e praticá-los; não é somente tentar seguir o padrão e o exemplo de Cristo; é estar relacionado com Cristo de uma forma tão vital que Sua vida e seu poder estão operando em nós. É estar "em Cristo", é Cristo estar em nós. E estes são termos do Novo Testamento — "em Cristo", "Cristo em vós, a esperança da glória". São termos encon­trados em todo lugar nestas epístolas do Novo Testamento.

Em outras palavras, podemos colocar nossa doutrina desta forma. O que Paulo está dizendo aqui é que Cristo infunde tanta força e energia nele, que ele é forte e capaz para todas as coisas. Ele não foi deixado sozinho, não está lutando em vão contra essas forças poderosas. É o grande poder do próprio Cristo que está entrando, e entrou, em sua vida, e está ali como um dínamo, uma energia e força. "Nisto", diz Paulo, "eu estou capacitado para todas as coisas".

Esta, certamente, é uma das mais gloriosas declarações que ele fez. Aqui está um homem na prisão, um homem que já sofreu muito em sua' vida, um homem que sabe o que é sentir-se desapon­tado de tantas maneiras — perseguido, tratado com escárnio e zombaria, desapontado muitas vezes, como ele conta no primeiro capítulo, até com seus companheiros de ministério, ali na prisão em condições capazes de provocar depressão e desânimo no coração mais forte e corajoso, enfrentando talvez um cruel martírio — todavia, ele é capaz de enviar este poderoso desafio. "Sou capaz de ficar firme, de suportar todas as coisas, naquele que constan­temente me infunde a Sua força".

Estou ansioso por expressar esta doutrina da seguinte forma neste ponto. Há os que sentem que, numa época como esta, é o dever do pregador cristão e da Igreja Cristã estar constante­mente comentando a respeito da situação em geral. Há muitas pessoas que perguntam: "Está tratando de questões de experiência pessoal enquanto o mundo se acha na condição em que está? Isso não é se alienar da vida? Você não tem lido seu jornal, ou acom­panhado o noticiário no rádio e na televisão? Você não percebe a situação do mundo? Por que não faz um pronunciamento sobre a situação mundial ou a condição das nações?" Minha resposta simples a tais indagações é esta: o que eu, ou um número de pregadores, ou toda a Igreja Cristã, possa dizer a respeito da situação mundial provavelmente não a afetará em nada. A Igreja tem falado sobre política e a situação econômica há muitos anos, sem qualquer efeito aparente. Esse não é o dever do pregador cristão. O propósito da pregação cristã é apresentar esta mensagem às pessoas: neste mundo incerto, onde experimentamos duas guer­ras mundiais num quarto de século, e onde talvez tenhamos que enfrentar mais uma, e talvez coisas piores, aqui está a pergunta que importa: como você vai enfrentar isso tudo, como pode fazer frente a tudo isso? Dar meu ponto de vista a respeito da política internacional não vai ajudar ninguém; mas graças a Deus há uma outra coisa que posso fazer. Posso lhes falar de algo, posso lhes apresentar um caminho que, se vocês o seguirem e praticarem, os capacitará, como o apóstolo Paulo, a dizer: "Sou forte, posso enfrentar qualquer coisa que venha a me acontecer, seja paz ou guerra, seja liberdade ou escravidão, seja o tipo de vida que conhe­cemos há tanto tempo, ou uma vida completamente diferente, estou preparado!" Não significa, repito, uma aquiescência passiva, negativa ao que está errado. Não é isso — mas significa que estamos preparados para enfrentar o que quer que possa acontecer.

Seríamos capazes de falar a linguagem do apóstolo Paulo? Já passamos por certos testes e provações, e talvez mais estejam a caminho. Podemos dizer, como este homem, que temos tal força e poder que estamos preparados para enfrentar qualquer circuns­tância? O apóstolo tinha um poder que o capacitava a enfrentar qualquer coisa que pudesse acontecer. Como podemos obter esse poder?

Existe muita confusão a respeito disto, e tudo que quero fazer é tentar diminuir essa confusão.

Existem muitas pessoas que passam sua vida toda tentando alcançar este poder, e no entanto parece que nunca o obtêm. Dizem: "Conheci cristãos que possuem isto, mas parece que está sempre fora do meu alcance". Ou: "Eu daria tudo neste mundo se tão somente pudesse ter este poder na minha vida. Como posso conseguí-lo?" Passam sua vida toda tentando obtê-lo, todavia nun­ca o alcançam. Por quê? Creio que o problema principal é que não compreendem nem reconhecem a correspondência correta das posições do "eu" e "dEle" — ou o "Aquele" que é mencionado pelo apóstolo. "Posso todas as coisas", ou "Sou capaz para todas as coisas através daquele que está constantemente infundindo Sua força em mim"; ou, para colocá-lo nas palavras da Edição Revis­ta e Corrigida: "Posso todas as coisas naquele que me fortalece". Esse é o ponto crucial de toda a questão: o relacionamento correto e o equilíbrio apropriado entre o "eu" e "Cristo".

Existe muita confusão neste ponto. A primeira causa de con­fusão é enfatizar o "eu" apenas. De certa forma já tratei disso. Ê o que o estóico faz, é o que o budista ou o hindu faz, é o que as pessoas que aderem à "cultura da mente" estão fazendo cons­tantemente. E já vimos que isso é inadequado. Mas talvez a razão definitiva porque é inadequado, é por ser um tipo de ensino possível somente para pessoas que têm grande força de vontade, e têm tempo para cultivar essa força de vontade. Na verdade, eu concordo inteiramente com o que G. K. Chesterton disse ser a sua objeção maior à "vida simples" — ou seja, que é preciso ser um milionário para poder vivê-la. Precisa de tempo, e se precisa trabalhar, ele não tem nem o tempo nem a oportunidade — precisa ser um milionário para poder viver a "vida simples". Não seria exatamente o mesmo, ou talvez até mais, com respeito a esse outro ensino? Se o indivíduo é uma pessoa muito intelectual, e tem o tempo e a oportunidade, então pode dedicar seus dias e semanas à concentração e à cultura da sua mente e do seu espí­rito. Isso não é evangelho para a pessoa que não tem o tempo nem a energia, e especialmente não é para aqueles que não têm a inteligência necessária. Não podemos enfatizar demais o "eu".

Esse é um erro, mas existe outro, que é o extremo oposto. Assim como há os que enfatizam demais o "eu", há os que ten­dem a obliterar, o "eu". Quero colocar isso em termos de algo que li recentemente numa publicação religiosa. Esta era sua definição de um cristão.

O cristão, dizia o artigo, é:

Uma mente através da qual Cristo pensa, Uma voz através da qual Cristo fala, Um coração através do qual Cristo ama, E mãos através das quais Cristo ajuda.

Minha resposta a isso, nos termos do meu texto, é: tolice! E não é apenas uma tolice, mas também uma caricatura do ensino cristão. Se o cristão é uma mente através da qual Cristo pensa, uma voz através da qual Cristo fala ,um coração através do qual Cristo ama e mãos através das quais Cristo ajuda, onde está o "eu"? O "eu" desapareceu, foi obliterado, não está mais presente, é inexistente. O ensino representado por essa citação é que o cristão é uma pessoa cuja personalidade deixou de existir, enquan­to Cristo está usando suas faculdades e seus poderes. Não usando a pessoa, mas usando sua voz, usando sua mente, usando seu coração, usando suas mãos. Mas não é isso que Paulo diz. Ele afirma: "Posso todas as coisas naquele que me fortalece". Ou, lembrando o que ele disse no segundo capítulo da Epístola aos Gálatas: "E vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim". Existe nestes versículos uma obliteração do "eu"? "E vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim". O "eu" ainda está presente.

Precisamos, portanto, se vamos fazer justiça a esta doutrina, salvaguardar a verdadeira posição. A vida cristã não é uma vida que eu mesmo vivo, por meu próprio poder; nem é uma vida em que sou obliterado e Cristo faz tudo. Não — "posso todas as coisas naquele que me fortalece". Acho que posso explicar isso melhor contando como um velho pregador, famoso no século pas­sado, certa vez o expressou ao pregar sobre este texto. Aqueles velhos pregadores costumavam às vezes pregar de forma bastante dramática. Elaboravam uma espécie de diálogo com o apóstolo no púlpito. Então esse velho pregador começou a pregar sobre este texto, desta forma: "Posso todas as coisas naquele que me fortalece". "Um momento, Paulo — o que foi que você disse?" "Posso todas as coisas". "Paulo, isso é vanglória! Você está de­clarando que é uma espécie de super-homem?" "Não, não, posso todas as coisas". Bem, o velho pregador continuou com o diálogo. Ele interrogou Paulo e citou todas as declarações feitas pelo após­tolo, em que ele dizia que era o menor de todos os santos, etc. "Você geralmente é tão humilde, Paulo, e agora vem me dizer que pode todas as coisas. Você não está se vangloriando?" E então finalmente Paulo diz: "Posso todas as coisas através de Cristo". Oh, desculpe-me, disse o velho pregador; "Oh, perdão, Paulo; eu não tinha entendido que havia dois aí". Ora, acho que isso expli­ca tudo de forma perfeita. "Posso todas as coisas naquele que me fortalece". São dois, na verdade. Não apenas eu, não apenas Cristo; eu e Cristo, Cristo e eu, somos dois.

Muito bem, então, vamos expressar a doutrina assim: qual é a forma correta de abordar esta questão do poder? Como posso obter este poder que Paulo diz que estava sendo infundido nele e que o tornou forte e capaz de enfrentar todas as coisas?

Posso sugerir uma analogia? Faço isso com hesitação e trepi­dação, porque não há analogia que seja perfeita neste assunto, e no entanto usar uma pode nos ajudar a captar a verdade. A ques­tão vital em relação a isso é a abordagem, ou, se preferirem um termo militar, a estratégia. Em nenhuma outra situação é a estra­tégia da "abordagem indireta" mais importante do que aqui. Sa­bemos que na estratégia militar, nem sempre vamos direto ao objetivo. Às vezes podemos até dar a impressão de estarmos indo na direção oposta, mas sempre voltamos. Essa é a estratégia da abordagem indireta; e é a estratégia necessária aqui.

Quero, então, colocar isso em termos de uma ilustração. A questão do poder na vida cristã é como a questão da saúde, da saúde física. Há muitas pessoas neste mundo que passam a sua vida toda em busca de saúde. Gastam todo o seu tempo e dinheiro indo de clínica em clínica, cie tratamento a tratamento, de médico em médico. Estão em busca de saúde. Quando encontramos essas pessoas, elas imediatamente começam a falar da sua saúde. A grande questão da sua vida é a saúde, e no entanto parecem nunca estar bem. Qual é o problema? Às vezes o problema é devido ao fato de que se esquecem de alguns princípios básicos, e a causa da sua condição é simplesmente que comem demais ou não fazem exercício suficiente. Estão vivendo de forma contrária às leis da natureza; por exemplo, por comerem demais, seu organismo pro­duz certos ácidos, e esses ácidos causam problemas que exigem tratamento. O que precisam, é que alguém lhes diga que comam menos, ou se exercitem mais, ou qualquer que seja o caso. Seu problema nem teria surgido, se não tivessem se esquecido desses princípio básicos, as regras fundamentais de uma vida saudável. Por causa disso, desenvolvem uma condição que exige tratamento. E estou sugerindo que isso é análogo a toda esta questão do poder na vida de um cristão. Saúde é algo que resulta de um estilo de vida correto. Não pode ser obtida diretamente ou imediatamente ou por si mesma. Num certo sentido, digo mesmo que a pessoa nem devia pensar em sua saúde como tal. Esta é resultado de viver corretamente, e digo exatamente a mesma coisa a respeito desta questão de poder em nossa vida cristã.

Permitam-me usar outra ilustração. Consideremos a pregação. Não há assunto mais discutido do que poder na pregação. "Oh, se eu tivesse poder na pregação", diz o pregador, e então cai de joelhos e ora por poder. Acho que isso é errado. Certamente é, se for a única coisa que o pregador faz. O caminho para ter poder na pregação é preparar sua mensagem com cuidado, estudando a Palavra de Deus, analisando-a, fazendo o melhor possível. Essa é a mensagem que Deus provavelmente mais vai abençoar — a abordagem indireta, em vez da direta. É exatamente a mesma coisa nesta questão de poder e capacidade para viver a vida cristã. Além de orar por poder e capacidade, precisamos obedecer certas regras e leis básicas e primárias.

Posso, portanto, resumir o ensino desta forma. O segredo do poder é descobrir e aprender do Novo Testamento o que nos é possível em Cristo. O que eu devo fazer, é ir a Cristo. Devo gastar tempo com Ele, meditar nEle, aprender a conhecê-10. Essa era a ambição de Paulo: "Para conhecê-lo". Preciso manter contato e comunhão com Cristo, preciso me esforçar por conhecê-10.

O que mais? Devo fazer exatamente o que Ele me diz. Devo evitar coisas que possam representar um empecilho. Para usar minha ilustração, não devo comer demais, não devo permanecer numa atmosfera que me é prejudicial, não devo me expor ao frio, se quero permanecer saudável. Da mesma forma, se não manti­vermos e seguirmos as regras espirituais, podemos orar sem cessar por poder e nunca o receberemos. Não há atalhos na vida cristã. Se em meio a perseguições, queremos nos sentir como Paulo se sentiu, precisamos viver como ele viveu. Devo fazer o que Cristo me mandar fazer, e evitar o que Ele disser que não devo fazer. Devo ler a Bíblia, e colocá-la em prática, devo viver a vida cristã em toda a sua plenitude. Em outras palavras, devo cumprir o que Paulo ensinou nos versículos oito e nove. Esta, como eu a entendo, é a doutrina do Novo Testamento quanto a permanecer em Cristo. Ora a palavra "permanecer" faz com que as pessoas fiquem sentimentais. Pensam em "permanecer" como algo passivo, uma atitude de apego, mas permanecer em Cristo é fazer o que Ele mandar, positivamente, e orar sem cessar. Permanecer é algo tremendamente ativo!

"Bem", diz o apóstolo, "se vocês fizerem tildo isso, Ele vai infundir sua força em vocês". Que idéia maravilhosa! É uma espé­cie de transfusão de sangue espiritual — isso é o que Paulo está ensinando aqui. Aqui está um paciente que perdeu muito sangue, por uma razão ou outra. Está débil e ofegante. Não adianta lhe dar remédios, porque ele não tem sangue suficiente para absor­vê-los ou aproveitá-los. O homem é anêmico. A única coisa que podemos fazer por ele é dar-lhe uma transfusão de sangue — infundir sangue no seu corpo. Isso é o que Paulo diz que o Senhor Jesus Cristo estava fazendo por ele. "Sinto que estou muito fraco", Paulo diz, "minha energia parece se esvair, e às vezes sinto que não tenho sangue nenhum em mim. Mas, sabem, por causa deste relacionamento, Ele o infunde em mim. Ele conhece meu estado, minha condição, e sabe exatamente o que eu, preciso. Oh, e quanto Ele me dá! Ele diz: "A minha graça te basta", e por isso posso dizer: "Quando estou fraco, então sou forte". Às vezes tenho consciência de um grande poder; outras vezes não espero coisa alguma, mas Ele me dá tudo".

Esse é o romance da vida cristã. E em nenhum outro lugar ele pode ser experimentado mais do que num púlpito cristão. Certamente há romance na pregação. Já afirmei muitas vezes que o lugar mais romântico da terra é o púlpito. Subo as escadas do púlpito domingo após domingo; e nunca sei o que vai acontecer. Confesso que, por várias razões, muitas vezes chego sem esperar coisa alguma; mas de repente o poder é dado. Em outras ocasiões, vou pensando que tenho muito, por causa de toda a minha prepa­ração; mas descubro que não há poder algum. Graças a Deus que é assim! Faço o melhor que posso, mas ele controla os recursos e o poder, e Ele o infunde. Ele é o médico celestial e conhece todas as variações da minha condição. Ele observa a minha pele, sente o meu pulso; sabe como minha pregação é inadequada, Ele co­nhece todas as coisas. "É isso", diz Paulo; "sou capaz para todas as coisas através daquele que está constantemente infundindo Sua força em mim".

Essa, então, é a receita. Não agonize, meu irmão, em oração, implorando que Ele lhe dê poder. Faça o que Ele mandou você fazer. Viva a vida cristã. Ore, medite nEle. Gaste tempo com Ele e peça que Ele Se manifeste a você. E se você fizer isso, pode deixar o resto com Deus. Ele lhe dará forças — "como os teus dias, assim será a tua força". Ele nos conhece melhor do que nós conhecemos a nós mesmos, e de acordo com nossa necessi­dade será a nossa provisão. Faça isso, e você poderá dizer, com o apóstolo: "Sou capaz (fortalecido) para todas as coisas através daquele que infunde a Sua força em mim".

 

SOBRE O LIVRO

"Por que estás abatida, ó minha alma? e por que te perturbas dentro de mim?" Esta declaração, que aparece tanto no Salmo 42 como no 43, descreve com clareza a condição de muitos — uma condição conhecida como depressão espiritual. Neste livro, o Dr. Martyn Lloyd-Jones discute suas causas, e a forma como deve ser tratada e superada. A Bíblia aborda este tema com muita frequência, e como parece ser um problema que afetou muitos do povo de Deus, e ainda afeta os cristãos de hoje, este livro certamente será de grande ajuda para esclarecer o que a Bíblia ensina sobre este assunto. Oferece também exemplos de como Deus tratou com eles, aliviando a tensão de suas mentes oprimidas.

O autor está credenciado para tratar de problemas dessa natureza, não só devido ao conhecimento adquirido em seu minis­tério cristão, mas também em virtude de sua experiência no campo da medicina. Suas obras anteriores são bem conhecidas, especial­mente sua profunda exposição sobre o Sermão do Monte.

 

SOBRE O AUTOR

O Dr. D. Martyn Lloyd-Jones formou-se em medicina, e exer­ceu a profissão de médico por vários anos, antes de ingressar no ministério. Depois de exercer o pastorado por onze anos no País de Gales, mudou-se para Londres, onde foi Pastor adjunto do falecido Dr. Campbell Morgan, na Capela de Westminster. Foi sucessor do Dr. Morgan, pastoreando a Capela de Westminster por três décadas, até ser chamado para um ministério mais extenso.

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